A Taxonomia e o tamanho da sua tarefa
A despeito do que a sociedade acredita, o encontro de novas espécies é extremamente corriqueiro. Isso ocorre porque a diversidade biológica é fenomenal. Existem diferentes estimativas de quantas espécies existem no planeta. Tais estimativas sugerem que entre 2 e 100 milhões de espécies podem existir na Terra. Já o número de espécies descritas gira em torno de 1,8 milhões. Independentemente das diferentes estimativas de diversidade existentes na literatura científica, uma coisa é evidente: não sabemos a resposta para a pergunta mais básica sobre a vida no nosso planeta. Não sabemos quantas espécies existem na Terra.
Conhecer minimamente a diversidade biológica é essencial para entendermos o funcionamento dos sistemas naturais, incluindo aí o nosso papel nos processos biológicos. Todo taxonomista, em qualquer parte do mundo, possui espécies novas depositadas nos museus, aguardando uma descrição formal em uma revista científica, essencial para que a entidade biológica possa ser cientificamente reconhecida.
Por outro lado, quantos taxonomistas existem em atividade para cada diferente grupo de organismos no Brasil? Quantos especialistas em besouros existem em atividade no País? E de ácaros? Mesmo considerando vertebrados, o país ainda é carente em especialistas, especialmente quando levamos em conta o tamanho da nossa diversidade.
Faltam Taxonomistas
Mas porque temos tão poucos taxonomistas no mundo e no Brasil? Essa pergunta tem diversas respostas. A formação de um taxonomista é demorada, é pouco remunerada e tem menos apelo junto a estudantes que outras áreas da Biologia, como a Biotecnologia. Se aparentemente uma coleção científica possui menos glamour que um grande laboratório de Biologia Molecular, por outro lado a Taxonomia é uma das áreas do conhecimento onde o pesquisador tem oportunidade de trabalhar e integrar diversas áreas da Biologia, como demonstra a recente revolução da sistemática filogenética e seus efeitos sobre nossa percepção sobre a diversidade biológica. Desta forma, o desinteresse sobre a Taxonomia está mais associado à falta de divulgação junto aos estudantes que à sua aparente (e falsa) inércia científica.
Além disso, a carreira científica, a despeito da exigência acadêmica e do longo período de estudos e dedicação, é pouco reconhecida e remunerada. Muitos profissionais acabam preferindo abandonar a carreira científica para se dedicarem a outras opções, como prestar concurso para nível médio no Poder Legislativo e ganhar um salário bem maior que o recebido por um doutor que chefia um laboratório em uma universidade e orienta em uma pós-graduação. A realidade é que fazer ciência no Brasil é uma opção de vida escolhida mais por paixão que por juízo…
O desafio das espécies crípticas
Porque um taxonomista deve ser bem treinado? Primeiramente ele deve mergulhar e gostar profundamente do grupo com o qual trabalha (incluindo diversidade, anatomia, história natural e ecologia), estar familiarizado com a literatura pertinente e diferentes técnicas de estudo, conhecer museus e coleções científicas, ver muitos animais (em quantidade e em diversidade), ir bastante para o campo, participar de congressos e simpósios e ler, ler muito. Além disso, a colaboração entre colegas é cada vez mais necessária e incentivada.
Com esta bagagem e experiência acumuladas é possível ao taxonomista perceber diferenças sutis entre populações que ocultam a existência de diferentes espécies. Estas são as chamadas espécies crípticas, espécies proximamente aparentadas e muito semelhantes umas às outras, que podem ser identificadas com base em discretas diferenças morfológicas, ecológicas, comportamentais e/ou moleculares, as quais podem passar despercebidas sem uma análise mais criteriosa.
Muitas espécies novas já foram descritas após uma avaliação mais cuidadosa de uma série maior de indivíduos. Durante muitos anos, a perereca-das-cachoeiras (Bokermannohyla pseudopseudis), presente em diversas localidades do Cerrado, era considerada apenas uma espécie. No entanto, duas espécies diferentes estavam sendo tratadas com o mesmo nome. Com isso, algumas populações foram identificadas como uma espécie ainda não descrita, já em processo de descrição formal. Exemplos como esse são extremamente comuns na literatura zoológica, em diversos grupos animais.
Espécies crípticas podem indicar a existência de eventos de especiação relativamente recentes e uma diversidade biológica bem superior à suspeitada no passado, quando os taxonomistas não possuíam muitas das ferramentas analíticas disponíveis hoje, nem os museus continham muitos exemplares para comparação. Quanto mais semelhantes as espécies, maior deve ser o número de ferramentas utilizado para diferenciá-las. Por causa disso, muitos especialistas costumam usar o termo “grupo de espécies” quando se deparam com uma espécie que não pode ser inicialmente classificada com segurança com base apenas na primeira avaliação.
Qual é a coleção ideal?
No entanto, muitas vezes um pesquisador não dispõe de muitas informações, nem de um número suficiente de exemplares para comparação, não sendo possível julgar com segurança se aquele material pertence realmente a outra espécie ou se é apenas uma variação regional de uma espécie já conhecida. Nestes casos, a real diversidade de uma área pode ser subestimada, com claros efeitos nas políticas de conservação.
Os órgãos ambientais responsáveis pela emissão de licenças, por outro lado, possuem a difícil tarefa de ponderar os anseios de pesquisadores e a pressão de ecochatos. No entanto, quando um técnico de um órgão ambiental reduz de forma pouco criteriosa o número de exemplares que um pesquisador solicita para o trabalho, ele está dizendo para ele voar baixo e devagar. Pouco ou nada pode ser feito com poucos exemplares. Na verdade, coletar poucos exemplares significa tão somente que esses animais serão mortos para nada. É como diz o ditado popular: De boas intenções, o inferno está cheio…
A interferência pouco criteriosa, baseada mais em “achismos” do que em dados técnicos, traz mais prejuízo à conservação e ao conhecimento dos animais do que os ajudam. Muitos pesquisadores já deixaram de realizar suas pesquisas porque o número de exemplares liberados para coleta nas licenças inviabilizava o estudo devido ao poucos dados que iriam ser gerados.
Pesquisadores não vão para o campo coletar bichinhos novos para compor sua coleçãozinha ou de exemplares repetidos para “jogar bafo” com seus coleguinhas de profissão. Pesquisadores vão para campo coletar informações sobre a diversidade biológica e sua variação em termos de ecossistemas, espécies, populações e suas relações. Um técnico de um órgão não está julgando se um garotinho pode pegar muitas ou poucas figurinhas para completar o álbum. Esse é um assunto muito mais sério, onde o conhecimento da biodiversidade está em jogo. Ações recentes, como o Sisbio, melhoraram bastante a relação entre os pesquisadores e os órgãos ambientais, mas muito ainda precisa ser feito. Muitos gestores ambientais precisam ser lembrados que a academia e os pesquisadores são os parceiros naturais das áreas protegidas e já brigavam pela conservação muitos anos antes do assunto virar moda.
As críticas sem sentido
Já ouvi críticas absurdas de que coleções científicas são meramente coleções de selos mantidas por pesquisadores vaidosos da raridade dos seus itens colecionados. Coleções científicas são os locais que guardam a informação biológica. Sem coleções e sem seu acervo, é impossível manter o conhecimento que a humanidade possui sobre a biodiversidade. É nas coleções científicas que as espécies novas são efetivamente reconhecidas, comparadas e analisadas. É onde os exemplares que “ancoram” as espécies estão depositados. Sem coleções científicas, o conhecimento acumulado durante anos de pesquisas biológicas sobre a vida no planeta ruirá.
Outros críticos acusam os pesquisadores de matarem animais indefesos, como se pesquisadores fossem assassinos cometendo crimes qualificados e abomináveis. Calma lá… Nenhum pesquisador sério mata animais para aplacar sua sede de sangue. Nenhum pesquisador que honre sua profissão se satisfaz com a morte ou com o sofrimento dos animais. Muito pelo contrário. Quando coletas são realmente indispensáveis, os animais são mortos utilizando métodos que visam minimizar o seu sofrimento.
O bom pesquisador é extremamente ético em relação aos animais utilizados em estudos. As sociedades científicas são eficientes em identificar desvios de conduta e são extremamente exigentes em relação à ética no trato dos organismos. Além disso, possuem comitês responsáveis pelo acompanhamento da aplicação das diretrizes quanto ao uso e manejo de organismos. A cada dia as pesquisas são mais balizadas por avaliações de comitês de ética e abusos são considerados inaceitáveis por pesquisadores e sociedades científicas sérias e comprometidas.
O material biológico coletado e depositado em uma coleção científica é de extremo valor. Esse material, quando corretamente armazenado e conservado, servirá para apoiar uma quantidade enorme de estudos e pesquisas. Irá ajudar a formar novos profissionais. Irá contar a história da pesquisa em biodiversidade no País. Pode ser o único local onde ainda podem ser observados exemplares de uma espécie extinta. É um patrimônio extremamente valioso, mas ainda pouco valorizado. Museus de Zoologia no País possuem pouca atenção do governo e vivem com restrições críticas de dinheiro e de pessoal. Muitas vezes estão acondicionados em edificações pouco adequadas. Tragédias, como a perda de grande parte do acervo da coleção herpetológica do Instituto Butantan, poderiam ter sido evitadas.
Taxonomistas precisam coletar animais
Todos grandes pesquisadores coletaram animais. Muitos dos animais coletados por Charles Darwin podem ser vistos no British Museum. Outros importantes pesquisadores que trabalharam no Brasil, como Helmut Sick, Alípio de Miranda-Ribeiro, Paulo Vanzolini, Werner Bokermann, Henry Bates, Spix, Alfred Wallace, também coletaram animais que foram usados para descrever novas espécies, criar importantes teorias e desvendar processos ecológicos e evolutivos responsáveis pela criação e manutenção da diversidade biológica. Por outro lado, não existe nenhum registro de que uma coleta científica tenha causado a extinção de animais. A população dos animais possui dinâmicas que permitem a substituição de indivíduos removidos em um prazo temporal relativamente curto, repondo os exemplares coletados durante o evento pontual da pesquisa. Nenhum pesquisador que conheço possui interesse em exterminar espécies, tão pouco matar animais raros, ameaçados ou de especial interesse para a conservação. Zoólogos, ecólogos, fisiologistas, dentre outros, não são cientistas loucos.
A sociedade brasileira, de modo geral, é extremamente tolerante com atividades humanas que removem grandes porções de hábitat natural (e aí sim, causando extinções locais relevantes), mas é extremamente agressiva quando um pesquisador coleta uma ave, por exemplo. É compreensiva quando uma população humana caça animais até a extinção, mas repudia um pesquisador que captura animais para entender sua ecologia.
Este texto não é uma defesa incondicional da coleta científica. É um texto em defesa do trabalho dos taxonomistas, das coleções científicas e uma lembrança aos gestores ambientais do valor do trabalho destes pesquisadores para o manejo, conservação e conhecimento da biodiversidade. É um chamado acerca da necessidade e da importância das coletas e das coleções científicas. É uma lembrança que a pesquisa em biodiversidade no Brasil, o país da megadiversidade, não pode voar baixo e devagar.
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