Mais uma vez, o governo nos ameaça com a possibilidade de editar uma Medida Provisória para autorizar o plantio da safra de soja transgênica, antes da promulgação da Lei de Biossegurança. E o faz menos de um ano depois de a própria Ministra da Agricultura, Marina Silva – que cada vez mais parece pertencer à legião de órfãos do PT pré-presidência – prometer que esse erro não se repetiria.
A edição de Medida Provisória para esse fim é, sim, uma ameaça e também um erro, no qual arriscamos a reincidência. As Medidas Provisórias são criação da atual Constituição, que vieram para substituir os Decretos-Leis tão utilizados como instrumento de manipulação econômica e repressão política pelos governos militares. São prerrogativa do Presidente da República e podem ser adotadas em caso de relevância e urgência.
Urgência, no caso do plantio da próxima safra de soja transgênica, não há. A não ser para os grandes produtores que, ansiosos para entrar no maravilhoso mundo novo da manipulação genética, se anteciparam, mais uma vez, à aprovação do Projeto de Lei de Biossegurança e fizeram altíssimos investimentos em algo incerto. Agora esses produtores, que já haviam feito o mesmo na safra anterior, pressionam o governo, através da bancada ruralista, por uma solução relâmpago para os seus problemas.
Para a população em geral, o plantio de grãos transgênicos traz mais riscos do que benefícios. A experiência internacional, de países como os Estados Unidos, mostra isso. Os grãos transgênicos não chegam às prateleiras por um preço mais baixo e não oferecem vantagens em termos de qualidade ou nutrição. Por outro lado, exigem uma aplicação mais intensa de agrotóxicos e representam, até que se prove o contrário, uma grande fonte de risco para o meio ambiente e para a saúde de quem os consome.
Até o momento, a manipulação genética de grãos – a soja inclusive – conseguiu criar, para a produção em larga escala, vegetais que são resistentes a herbicidas ou a certos vírus. A soja geneticamente modificada, que nossos agricultores esperam plantar, com a Medida Provisória do governo, é do primeiro tipo.
A vantagem que a soja resistente a herbicidas traz para os produtores é a praticidade. Ela lhes permite borrifar suas plantações com produtos capazes de matar toda e qualquer espécie de vegetais, parasitas ou não, sem que a própria lavoura morra. Nesse segmento, a gigante internacional Monsanto saiu na frente. Ela desenvolveu um poderosíssimo herbicida – o Roundup – e, concomitantemente, os grãos resistentes a ele – ou “Roundup ready” -, sobre cujo processo de desenvolvimento detém a patente.
E já vem criando polêmica. A Suprema Corte do Canadá julgou um caso bastante curioso e ilustrativo. A própria Monsanto, que detém a patente sobre o processo de desenvolvimento da canola – uma espécie de grão, a partir do qual se produz um óleo – geneticamente modificada para resistir ao Roundup, processou um agricultor por infringir sua patente. E ganhou. No entanto, muitas questões foram levantadas.
No caso, um fazendeiro teve a sua plantação contaminada pela canola da Monsanto e tirou proveito disso. Desconfiando da contaminação, o agricultor Percy Shmeiser – que se tornou um notório ativista contra os organismos geneticamente modificados – borrifou parte da sua plantação com o herbicida da Monsanto. Vendo que cerca de 60% da canola onde o produto foi aplicado sobreviveu, ele colheu as plantas resistentes. Na lavoura seguinte, ele utilizou as sementes preparadas da canola resistente.
A Monsanto, que mantém olheiros para controlar o uso indevido de sua patente, constatou que a plantação de Shmeiser continha as suas sementes, e o processou pelo uso da patente. Quem quiser plantar as sementes da Monsanto deve assinar um contrato, comprometendo-se a não replantá-las, a usar o herbicida da Monsanto e a permitir que técnicos da companhia inspecionem suas lavouras, a fim de assegurar o cumprimento do acordo.
À parte da discussão patentária, sobre se é possível, ou não, patentear os chamados seres vivos superiores, resta uma certeza: a de que a contaminação da vegetação em torno de lavouras geneticamente modificadas é inevitável. Tanto inevitável quanto inaceitável.
Quando se cria uma vaca ou um rato geneticamente modificado, o risco de contaminação é praticamente inexistente. É muito fácil controlar a reprodução de um animal. Basta separar as “meninas” dos “rapazes” e pronto. Uma vaca mutante dificilmente cruza sem que ninguém veja.
Com vegetais, a coisa é bem diferente. É muito difícil controlar a dispersão de seu material genético. Pássaros, insetos e o próprio vento se encarregam disso. E a lambança está feita. Iniciada a contaminação do ecossistema, o processo é uma bola de neve, autêntica reação em cadeia.
A humanidade já fez inúmeras besteiras como essa. Introduzimos diversos animais e plantas, em diferentes ecossistemas, apenas para assistir, depois, incrédulos, à sua transformação em pragas descontroladas, que muitas vezes levaram à extinção de espécies originais.
As lebres, introduzidas pelos europeus na região da Patagônia, são um exemplo. Pouco tempo após a sua chegada no continente, livres de seus predadores naturais, elas se tornaram uma praga, e o governo teve que promover verdadeiros genocídios anuais para controlar o seu número. Os teiús, um lagarto que foi levado para Fernando de Noronha para acabar com os ratos, tomaram conta da ilha, onde agora convivem com ratos, porque preferem comer ovos de aves marinhas. Outro exemplo bem brasileiro é o capim colonião – que leva o sugestivo nome científico Panicum maximum. Trazido da África, é considerado uma peste em nosso solo.
Enfim, histórias não nos faltam de contaminações desastrosas de ecossistemas. Mas, aparentemente, está difícil aprender com os erros do passado. A Medida Provisória nº 131/03, editada para autorizar o plantio da última safra de soja transgênica, foi uma verdadeira temeridade nesse sentido. Vaga e sem impor limites à quantidade ou à espécie de soja geneticamente modificada que autorizava, era um exemplo de irresponsabilidade e falta de conhecimento biológico.
Outro requisito autorizador das Medidas Provisórias, a relevância, também não é muito clara nesse caso. Os riscos para o meio ambiente, e para a população em geral, são muito maiores do que os eventuais benefícios que podem advir dos alimentos geneticamente modificados. Além do mais, o Brasil já sobreviveu tempo demais sem a soja transgênica para tentar transformar sua aprovação em uma sangria desatada.
Vale lembrar, ainda, que as Medidas Provisórias são, como sua denominação deixa claro, provisórias. Isso quer dizer que, após editadas, devem ser submetidas ao congresso para regulamentação. Caso sejam rejeitadas, seus efeitos devem ser passíveis de anulação. Não é o caso.
A adoção de alimentos geneticamente modificados é algo muito sério, e com conseqüências profundas demais para ser regulamentada, às pressas, por uma simples medida provisória. Sua implementação deve ser cercada de todos os cuidados possíveis, pois seus efeitos podem ser graves e, em certos casos, irreversíveis.
A Medida Provisória, portanto, nesse caso, não é apenas uma impropriedade em termos constitucionais, visto que lhe faltam os requisitos para a adoção, como também uma ameaça ecológica. Portanto, se o governo ceder, mais uma vez, às pressões de um setor da sociedade, interessado apenas em não ver seus imprudentes investimentos irem por água abaixo, estará fazendo um desfavor ao Brasil. Mais um.
Lembre-se que Lula e o PT eram os grandes críticos do número de Medidas Provisórias editadas pelo governo anterior. E do número de viagens do antigo Presidente.
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