Tudo indicava que o plano de manejo da Área de Proteção Ambiental (APA) da Baleia Franca, no litoral catarinense, estava condenado à vala comum, em que são enterrados todos os problemas ambientais com os quais o poder público simplesmente “não quer lidar agora”. Iria se tornar mais uma unidade de conservação que não sai do papel. Mas uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal e pela ONG IWC/Brasil (Coalizão Internacional da Vida Silvestre) pode ter vindo para salvar o dia.
A APA da Baleia Franca
Criada por decreto federal em 14 de setembro de 2000, a Área de Proteção Ambiental da Baleia Franca tem como objetivo principal “proteger, em águas brasileiras, a baleia franca austral, Eubalaena australis (atualmente na Lista Oficial de Espécies da Fauna Brasileira Ameaçados de Extinção, editada pelo Ibama), ordenar e garantir o uso racional dos recursos naturais da região, ordenar a ocupação e utilização do solo e das águas, ordenar o uso turístico e recreativo, as atividades de pesquisa e o tráfego local de embarcações e aeronaves”.
Com 156.100 hectares e cerca de 130 quilômetros de extensão, ela se estende da ponta Sul da Praia da Lagoinha, do Leste da Ilha de Santa Catarina até o Balneário do Rincão, ao Sul do Cabo de Santa Marta, abrangendo nove municípios da costa catarinense: Florianópolis, Palhoça, Paulo Lopes, Garopaba, Imbituba, Laguna, Tubarão, Jaguaruna e Içara. Ela visa conservar, na costa brasileira, as condições ambientais necessárias para que essa espécie de cetáceo possa utilizar as nossas águas para se reproduzir.
Além disso, sob a responsabilidade do Ibama, a APA deveria servir como pólo de educação ambiental e assegurar a sobrevivência das comunidades de pescadores artesanais da região, cada vez mais sujeitos às pressões impostas pelo crescimento na taxa de ocupação das áreas litorâneas e da diminuição dos estoques pesqueiros pela degradação ambiental marinha. Tais objetivos, no entanto, até o momento, não vêm sendo cumpridos. Como acontece com grande parte das unidades de conservação (UCs) criadas no país por motivos eleitoreiros ou mero desencargo de consciência, embora a APA da Baleia Franca tenha sido criada há mais de cinco anos, ela permanece sem quaisquer condições de funcionamento, graças à inércia do poder público.
A inoperância do Ibama
Os obstáculos são inúmeros. Por exemplo: o Ibama estabeleceu uma chefia na cidade de Imbituba, sede da APA. Até aí, tudo bem. Mas essa chefia não possui condições de trabalho. Apesar de o Ibama ter conseguido uma casa para instalar esse grupo – graças à insistente mobilização da IWC/Brasil, que obteve junto à Prefeitura Municipal de Imbituba a cessão gratuita do imóvel – esta continua sem a mínima infra-estrutura, que deveria ter sido providenciada pelo órgão. Hoje, a equipe que trabalha na APA resume-se a uma chefe, um analista ambiental e uma pessoa de apoio administrativo – isso para gerir e fiscalizar uma unidade de conservação que, vale a pena lembrar, tem mais de 156 mil hectares de área. São 52 mil hectares aos cuidados de cada um.
E esse sequer é o maior dos problemas enfrentados pela APA. O pior deles é que a APA ainda não possui um plano de manejo. Sem ele, nada pode ser feito em uma unidade de conservação. E o que é ainda mais grave: nada pode ser proibido. Esse plano, segundo a Lei 9.985/2000, que estabelece o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc), deve dispor sobre a UC em si, os corredores ecológicos e a forma como ela se integra à vida econômica e social das comunidades vizinhas. E tem que ser elaborado no prazo de cinco anos a partir da data de sua criação.
Há, portanto, disposição legal que obriga o Ibama – órgão gestor da APA da Baleia Franca – a elaborar o seu plano de manejo em um prazo que, diga-se de passagem, estende consideravelmente os limites do razoável. Esse prazo expirou em setembro do ano passado, quando a APA completou cinco anos de inexistência. E, segundo informações dadas pelo próprio Ibama ao presidente da IWC/Brasil, José Truda Palazzo, colunista de O Eco, a elaboração desse plano sequer tem data certa para começar. A justificativa: falta de dotação orçamentária. Enquanto o dinheiro não vem, a APA vem sofrendo pressões de todos os lados. Invadida e mal utilizada a cada dia que passa indefesa e desarmada.
A saída
Diante da absoluta falta de iniciativa do Ibama, a IWC/Brasil e o Ministério Público Federal ajuizaram uma ação civil pública contra o Ibama e a União Federal, para obrigá-los a – entre outras coisas – elaborar imediatamente o plano de manejo da APA da Baleia Franca e a organizar uma equipe de fiscalização adequada para a área, visando coibir, no período de elaboração do plano, a deterioração do seu patrimônio ambiental.
Confrontado com tamanha aberração lógica, o juiz federal Jurandi Borges Pinheiro, da Vara Ambiental e Agrária de Florianópolis, no último dia 17 de fevereiro, deu ao Ibama 30 dias para viabilizar um grupo de trabalho e contratar consultoria para elaboração do Plano de Gestão da APA da Baleia Franca, em cronograma específico de até um ano, sob multa de 100 mil reais em caso de descumprimento. A decisão ainda ordena que o Ibama, também em 30 dias, providencie a organização e operação de uma equipe de fiscalização, composta por, no mínimo, quatro fiscais para atendimento exclusivo da área de abrangência da APA, até a efetiva implementação do plano de manejo.
Ainda é cedo para comemorar, pois o Ibama e a União podem recorrer da decisão. Provavelmente vão. Mas, convenhamos, vai pegar mal.
Na verdade, essa demanda, fosse o Brasil um país sério, não teria razão de existir. Ao que me parece, não é razoável que um órgão governamental tenha que ser compelido pela população, através do Poder Judiciário, a cumprir uma obrigação que ele reconhece ser sua, com a qual sabe estar inadimplente e cujas graves conseqüências conhece. Ver a União Federal e um de seus maiores órgãos ambientais recorrerem para não ter que cumprir uma decisão assim será motivo de chacota.
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