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A bolha climática

Os efeitos climáticos apontam quão irracional pode ser o sistema de gestão financeiro com relação à contenção e adaptação das mudanças climáticas

23 de agosto de 2024
  • Carlos Bocuhy

    Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam)

Há alguns anos, integrantes do grupo de humor britânico Monty Python satirizavam, em impagável e imaginária peça, a realidade provocada por agentes financeiros de Wall Street e a lógica de mercado que resultou na bolha imobiliária que atingiu os Estados Unidos em 2008.

Com humor crítico, abordavam o superfaturamento de papéis negociados por agentes financeiros, em fundos batizados com nomes mirabolantes que, na realidade, tinham por lastro hipotecas sobre residências de pouco ou nenhum valor, como, por exemplo, casebres do Alabama.

Era a lógica da bolha do subprime, ou “hipotecas de maior risco ou de segunda linha, financiadas pelo excesso de liquidez no mercado internacional nos últimos anos, onde bancos e financeiras dos Estados Unidos passaram a financiar a compra de casas a juros baixos para pessoas com histórico de crédito ruim, tendo o próprio imóvel como única garantia”.

Ao contrário da bolha imobiliária que provocou recessão global em 2008, hoje está se configurando uma bolha climática imobiliária. Já se instalam, gradualmente, impactos climáticos que não deixam casas e bens para recuperar valor ao longo do tempo, como demonstra a tragédia que se abateu sobre áreas do Rio Grande do Sul. Áreas inundáveis tendem a ser cada vez mais vulneráveis, sujeitas à reincidência diante da intensificação dos eventos climáticos.

O setor imobiliário brasileiro tende a sofrer duros ataques com o aumento de áreas sob vulnerabilidade. Especialmente o setor ligado aos seguros residenciais, que parece não ter se dado conta da realidade que vem se instalando com a proliferação de inundações e deslizamentos, sem perspectiva de reversão da tendência. A depender da crescente intempestividade climática, será menor a possibilidade de seguros patrimoniais em crescentes regiões sob risco, trazendo inevitáveis e proibitivas elevações de valor nas apólices de seguro.

Na pior das hipóteses, especialmente em regiões mais vulneráveis, isso poderá levar ao colapso o mercado hipotecário, fator vivenciado hoje especialmente pelo sistema imobiliário norte-americano: os bancos não emitirão hipotecas sobre casas que não podem obter cobertura de seguro.

Jeff Masters, ex-cientista de furacões da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA), recentemente chamou o potencial colapso do mercado imobiliário em estados propensos a inundações e incêndios de “provavelmente uma grande perturbação econômica causada pela mudança climática nos próximos anos”.

Casa atingida por árvore após temporal que atingiu a cidade de Porto Alegre. Foto: Edu Andrade/Fatopress/Folhapress.

De outro lado, com preocupação social, o cientista climático Michael Mann explica, em seu último livro, que os impactos das mudanças climáticas serão apocalípticos para muitas nações e pessoas – particularmente aquelas que não são ricas e brancas. “Pessoas e comunidades com menos recursos tendem a ser as primeiras e mais atingidas pelas mudanças climáticas, não apenas porque as pessoas e comunidades mais pobres são inerentemente mais vulneráveis aos impactos de qualquer desastre, mas também porque os extremos induzidos pelas mudanças climáticas tendem a ser piores nos trópicos e subtrópicos, lar de muitas nações pobres”.  

Movimentos sociais e especialistas em mudanças climáticas têm envidado esforços para comprovar a existência (óbvia) da injustiça climática, reafirmando que os mais vulneráveis são os mais atingidos, e que nossas abordagens sobre justiça climática raramente colocam em primeiro plano a experiência afetiva (vivida, emocional, incorporada, psíquica) das mudanças climáticas.

Obviamente, desastres climáticos representam muito mais que perdas materiais. “Esses impactos são sentidos no corpo e na mente, manifestando-se como estresse térmico, dificuldades respiratórias, ataques de pânico, ansiedade climática e muito mais. Eles também são sentidos por coletivos intermediários, à medida que as comunidades lidam com as consequências socioemocionais das crises compostas… e os mais desfavorecidos são forçados a suportar as piores consequências da crise climática”, afirma a educadora climática Blanche Vertie, autora do e-book “Aprendendo a viver com as mudanças climáticas: da ansiedade à transformação”, que reflete sobre as possibilidades e desafios de considerar os sentimentos climáticos e a justiça climática juntos.  

A ironia de Monty Python sobre irracionalidade do mercado e efeitos climáticos aponta quão irracional pode ser o sistema de gestão financeiro com relação à contenção e adaptação das mudanças climáticas. Por exemplo, a ambiciosa sanha imobiliária tem pressionado a liberação, em planos diretores municipais, de mais e mais áreas inundáveis, como áreas de várzea e costeiras. Até os anteparos naturais, como restingas, são objeto de ataques em sua proteção, mesmo que a ciência alerte sobre a intensificação das ressacas destrutivas.  

Estudo da Marinha do Brasil aponta que, no ano passado, houve 19 avisos de ressaca no estado do Rio de Janeiro. Em 2024, até maio, o número chegou a dez. “A cidade cresce muito em direção às praias. Às vezes, avança tanto que suprime a ‘área ativa’, em que o mar se regenera… Existe o lado perverso da engenharia costeira porque às vezes se ganha muito para reconstruir”, explica Eduardo Bulhões, geógrafo da UFF.  

Estudo da FAPESP mostra a extensão da vulnerabilidade da costa paulista, onde mais de 300 km têm ocupações humanas em áreas vulneráveis: 235 km perto de praias e 67 km próximos a manguezais e margens estuarinas. A pesquisa ainda mostra que 55% da extensão de praias do litoral de São Paulo possui áreas urbanizadas dentro de apenas 100 metros de distância da faixa de areia. Na Baixada Santista e no Litoral Norte, essa cifra sobe, respectivamente, para 81% e 74% das praias.  

Assim, o conceito de mais valia dos imóveis “pé na areia” acabará sendo relativizado em função dos riscos crescentes. A bolha climática imobiliária é impiedosa. Não atingirá só condições subprime. Democrática, atingirá ricos e pobres.

O fato é que o ordenamento territorial brasileiro deverá regrar com maior clareza essas áreas de risco. Será preciso implementar a legislação existente e a capacidade de mapeamento diante de cenários realistas esperados com as alterações climáticas. Aí repousa o perigo de subestimar os avanços do aquecimento global, visto que não há sinalização firme de que se avance em multilateralismo colaborativo, nem por parte das nações mais responsáveis pelo aquecimento global, nem do universo dos combustíveis fósseis para sua imediata redução.

No momento, a tendência aponta a realidade de cenários mais negativos prognosticados pela ciência, como se retrata em prognósticos do IPCC e da NASA. Isso deve estimular o Brasil a perseguir um vigoroso plano de adaptação climática, com aspectos preventivos focados nas áreas vulneráveis.  

A Teoria de Eficiência de Mercado é cada vez mais colocada em xeque pela Mudança Climática, reforçando a tese de que será preciso realçar anomalias e contradições no mundo financeiro, fator amplamente discutido entre pesquisadores para refutar a eficiência de mercado. Pseudo-eficiência que, depois de plantar tragédias com a ocupação de áreas de risco, recorre aos fundos públicos, onde a conta é paga, ao final, pelos contribuintes.

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