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A perspectiva marginalizada do Sul Global na cobertura jornalística brasileira da crise climática

As respostas à crise devem considerar e valorizar as perspectivas, saberes e experiências dos povos do Sul, permitindo que essas vozes ocupem um papel central na construção de soluções climáticas

17 de outubro de 2024
  • Clara Aguiar

    Estudante de Jornalismo da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS

  • Eloisa Beling Loose

    Professora da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), pesquisadora e vice-líder do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).

O artigo “Em busca da perspectiva do Sul na cobertura do clima: uma contribuição dos estudos críticos do discurso”, desenvolvido por Eloisa Loose, integrante  do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS), em parceria com a pesquisadora Viviane Resende, da Universidade de Brasília, analisa o discurso da cobertura jornalística das mudanças climáticas em um meio alternativo, comprometido com a pauta ambiental. O foco central está na dicotomia entre o Norte e o Sul Globais e como suas causas e soluções para a crise climática são representadas ou silenciadas, mesmo em veículos de comunicação que, teoricamente, teriam maior liberdade para questionar o status quo. O estudo revela que, apesar da importância crescente da crise climática para as regiões mais vulneráveis, as perspectivas do Sul ainda são marginalizadas, e as soluções amplamente divulgadas continuam refletindo o pensamento dominante do Norte Global. 

“O termo ‘Norte Global’ refere-se a países desenvolvidos, geralmente localizados no hemisfério norte, com economias avançadas e alta qualidade de vida. Esses países fazem parte de um grupo de nações com influência econômica e política significativa no cenário internacional. Por outro lado, o ‘Sul Global’ refere-se a países em desenvolvimento ou emergentes, muitos deles localizados no hemisfério sul, que enfrentam desafios econômicos e sociais.”

O artigo destaca que a cobertura jornalística sobre mudanças climáticas tende a ser centrada em especialistas e atores políticos do Norte, principalmente em momentos como a divulgação de relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) e as Conferências das Partes (COP). Essa abordagem limita as vozes do Sul, cujas vulnerabilidades são mais graves, pois países da América Latina e África, por exemplo, são altamente dependentes de recursos naturais e enfrentam desafios sociais e econômicos significativos. Ainda assim, a cobertura midiática ignora frequentemente essas especificidades locais.

Há uma discrepância entre os países que mais sofrem com eventos climáticos extremos e aqueles que mais contribuem para as emissões de carbono. Dados do Índice Global de Risco Climático (Germanwatch) apontam que oito dos dez países mais afetados entre 1998 e 2017 são nações em desenvolvimento de baixa renda, revelando a disparidade nas consequências da crise. À vista disso, o artigo critica essa visão eurocêntrica, que historicamente exclui outras formas de saber, particularmente das regiões do Sul Global, como América Latina e África. As autoras sublinham que a crise climática, embora global, afeta desigualmente diferentes partes do mundo. As respostas políticas e econômicas à crise climática refletem essa assimetria, favorecendo as nações desenvolvidas.

Um exemplo próximo que pode ser citado é o caso da universidade holandesa que recebeu R$ 7,3 milhões da prefeitura de Porto Alegre para a realização de uma consultoria técnica diante das enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul nos meses de abril e maio de 2024. O governo do estado solicitou a colaboração dos especialistas holandeses para analisar a situação e sugerir medidas de prevenção e controle. No entanto, surge a questão: não temos especialistas igualmente capacitados no próprio estado para realizar tal trabalho?

Consideramos o fato pertinente para levantar um debate sobre a valorização de especialistas locais em situações de emergência. O Rio Grande do Sul possui uma comunidade acadêmica e técnica bem desenvolvida em áreas como hidrologia, engenharia civil e gestão de riscos de desastres. Diversas universidades e centros de pesquisa, como a UFRGS, já realizam estudos sobre desastres ambientais e sistemas de prevenção de enchentes.

Entendemos que o convite a especialistas internacionais, como os da Holanda, pode ser justificado por diferentes motivos. O país é mundialmente reconhecido por sua expertise em gestão de águas, especialmente em relação à construção de diques e sistemas de controle de enchentes, dado o seu contexto geográfico de vulnerabilidade. Acreditamos que o intercâmbio de conhecimentos é bem-vindo e poderia complementar o trabalho dos especialistas gaúchos. Porém, muitas vezes, governos recorrem a especialistas estrangeiros não apenas pela sua expertise, mas também pela dimensão política-econômica, visando fomentar parcerias internacionais inclusive em outras áreas de atuação.

Geralmente, a resolução da questão climática costuma ficar limitada a atores políticos, setores produtivos, especialmente empresários, e especialistas com conhecimento técnico-científico baseado em uma perspectiva eurocêntrica. No entanto, há uma clara diferença nas garantias e condições entre os países do Norte e do Sul. O artigo parte dessa crítica ao pensamento colonial, que negligencia ou subestima os saberes e práticas oriundos das experiências dos povos do Sul. Embora o pensamento do Sul, centrado na reparação dos danos causados pelo capitalismo colonial, ocasionalmente surja na cobertura analisada, ele não consegue se opor de forma eficaz ao discurso neoliberal. 

Para romper com essa lógica, é essencial que, em vez de enfatizarmos apenas a globalidade da crise climática, passemos a evidenciar as desigualdades e responsabilidades que a acompanham. Devemos desafiar a ideia de que as soluções precisam ser impostas de cima para baixo, exclusivamente por aqueles que detêm o conhecimento técnico-científico do Norte. As respostas à crise devem considerar e valorizar as perspectivas, saberes e experiências dos povos do Sul, permitindo que essas vozes ocupem um papel central na construção de soluções climáticas. A situação envolvendo a consultoria técnica holandesa no Rio Grande do Sul levanta uma questão crucial sobre a marginalização das análises de especialistas do Sul Global, que, infelizmente, não foi amplamente questionada pela imprensa. Os jornais, no geral, parecem ter aceitado a narrativa eurocêntrica sem contestação. Essa omissão não apenas silencia as vozes e conhecimentos das comunidades acadêmicas e técnicas da região, mas também perpetua a desigualdade de representação na discussão sobre soluções para crises climáticas, enfatizando a necessidade urgente de um debate mais crítico e inclusivo sobre as capacidades locais e a valorização do saber que emerge das próprias realidades afetadas.

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