É trágico assistir mais uma vez a perda de vidas humanas, em função dos deslizamentos e inundações. O pior é que esta realidade se repete de norte a sul do país.
Neste momento é compreensível que, como em todos os anos chuvosos em que tragédias se repetem, perguntemos sobre qual é o limite entre a fatalidade e a irresponsabilidade. Para responder, há vários aspectos a considerar.
No verão de 2021-2022 temos a tempestade climática perfeita, com a conjunção de fenômenos como La Niña, a Zona de Convergência do Atlântico Sul, um corredor de umidade que potencializa o índice de chuvas continente adentro.
A constatação de que os eventos episódicos como estes serão potencializados pelas alterações climáticas é conhecida da ciência. No Brasil, já registramos um aumento da temperatura média, desde a revolução industrial, em 1,7 grau centígrado, conforme noticiou o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) ao Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC).
Para exemplificar do ponto de vista econômico, a atual escalada da intempestividade climática do ano de 1900 até 2021, segundo dados do CDP Worldwild, significou um custo ao Brasil, na reparação de danos por chuvas e secas, de cerca de US$ 22,7 bilhões. De acordo com a pesquisa, as chuvas ceifaram cerca de 2.893 vidas no período e deixaram meio milhão de desabrigados.
Ocorre que a maior parte dos danos ocorreu entre 2011 e 2021, ou seja, na última década. De forma incompreensível, neste mesmo período o governo estadual paulista investiu na prevenção de inundações apenas metade dos valores aprovados pela Assembleia Legislativa, enquanto o município de São Paulo, em 2021, utilizou apenas 48% da verba reservada no orçamento para essa mesma finalidade.
O segundo ponto a refletir é sobre como a sociedade irá enfrentar as mudanças climáticas e as crescentes vulnerabilidades decorrentes da má ocupação do território, da precariedade das moradias e da falta de obras de contenção e drenagem.
As mudanças climáticas não retiram as responsabilidades dos governos, só fazem reforçar a falta de ações e o descaso do poder público. Isso porque, do ponto de vista técnico, para a ocupação urbana de áreas instáveis ou inundáveis, a geotecnologia tem dado, até o momento, as respostas corretas.
No Estado de São Paulo não há área de risco que não esteja mapeada, demonstrando que a realidade dramática que assistimos ocorre, de fato, não no desconhecimento dos problemas, mas sim no nível de desconformidades que crescem debaixo de uma criminosa ineficácia governamental.
O Brasil não tem feito sua lição de casa. O governo de Jair Bolsonaro vem sucateando o sistema de monitoramento meteorológico, o Inpe. Em São Paulo, o Instituto Geológico (IG) foi extinto pelo governo Dória. O IG detinha todo o conhecimento e mapeamento do território paulista. Hoje os técnicos encontram-se precariamente lotados no Instituto de Pesquisas Ambientais (IPA), onde pesquisas sobre mudanças climáticas, antes realizadas pelo IG, encontra-se paralisadas.
As Cartas de Risco geradas por especialistas do IG apontam as medidas necessárias para fazer frente às situações existentes, assim como há metodologia para o preparo da Defesa Civil e da Gestão de Risco. Portanto, não há desconhecimento dos riscos atuais pelas autoridades públicas, seja para orientar aspectos preventivos ou corretivos. Há falta de responsabilidade e de investimento.
De outro lado convivemos com a ilegalidade da ocupação urbana desordenada, motivada por exclusão social e especulação imobiliária criminosa. Some-se a isso a crise econômica que se instalou em função da incompetência dos últimos governos, levando ao aumento de ocupação das áreas de risco.
Após anos de leniência governamental, estamos entrando em uma rota perigosa e sem retorno. O sexto relatório do IPCC (IR6) apontou, nos dias que antecederam a COP26, em novembro do ano passado, que a incidência de eventos extremos vem apresentando um processo de crescimento maior do que o esperado, à razão de 38 vezes mais a cada período de 50 anos.
De outro lado, a contenção de lançamento dos Gases Efeito Estufa (GEE), especialmente pelos países mais ricos e poluidores do G20, tem sido insuficiente para deter o aquecimento global.
A realidade climática exige um novo e eficiente modelo de governança. Além de considerar os aspectos sociais e econômicos, há de se promover programas habitacionais que proporcionem segurança à população, além de intensificar a fiscalização para que as pessoas não venham a habitar as verdadeiras armadilhas que são as áreas de risco.
Quando o poder público faz vistas grossas para as situações de risco, passa uma sensação de falsa segurança para aqueles que ali habitam. Assim, não existe no cenário atual qualquer imprevisibilidade que justifique a inação. A ciência aponta o cenário e prediz a vulnerabilidade. A tragédia decorre da inação, de um estado de inércia e irresponsabilidade governamental.
O cenário vai piorar, diz o IPCC, mas, em um Estado democrático como o Brasil, quem irá decidir se os governos federal, estaduais e municipais irão piorar será a própria sociedade. Mesmo se não houver estadistas no comando das instituições, à altura de empreender de forma prioritária a proteção da sociedade, resta cobrar na justiça as garantias constitucionais de proteção à vida.
Este é o momento e o limite para que a sociedade organizada atente para o estado crescente das vulnerabilidades e dos riscos decorrentes do descaso governamental potencializados pelas mudanças climáticas — e para que o Ministério Público e a Defensoria Pública se apropriem dessas agendas fundamentais para o bom exercício e cumprimento de suas funções.
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