Colunas

A tragédia gerou o herói e o mito, mas ariranha não mata gente

A ariranha é um carnívoro que vive em rios nos quais nada, pesca, brinca e vozeira. Ela só ataca quando sente que a família está em perigo – como acontece com muitos animais, até com os humanos

12 de agosto de 2025
  • Otávio Maia

    Médico veterinário, doutor em Desenvolvimento Sustentável, divulgador científico vinculado ao Laboratório de Informação para a Sustentabilidade do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia - Ibict

Na manhã de 27 ago. 1977, Sílvio, 33 anos, sargento do exército, saiu de casa “alegre e confiante para [a última] prova no curso de agronomia da UnB. […] já era formado em educação física desde 1969 pela Universidade de Porto Alegre, estava prestes a concluir mais um curso de nível superior”. Na hora do almoço, Sílvio arbitrou a disputa de ‘par ou ímpar’ entre os filhos para decidir o destino do passeio da tarde: Água Mineral (Parque Nacional de Brasília), praça da Torre de Televisão ou zoológico. “A tarde transcorria normalmente. Sílvio comprou sorvetes e pipocas para os garotos, chamando sempre a atenção deles para a beleza das árvores. Estava decidido que não passariam pelo fosso das ariranhas, embora esses animais fossem os preferidos pelo Sílvio Júnior. Acontece que houve uma mudança de local. O garoto chegou a perguntar a um dos guardas onde era que elas estavam” (Correio Braziliense, 6 set. 1977). O que parecia ser uma tarde comum terminou com uma tragédia de grande repercussão nacional. “Quando já iam saindo [do zoo], Sílvio foi despertado pelos gritos” vindos justamente do recinto não visitado das ariranhas (Pteronura brasiliensis). “Parei o carro sem atender ao apelo da minha esposa que pedia para eu ficar, e entrei no tanque das ariranhas. Eu não podia deixar uma criança ser devorada, sem fazer nada” (Correio Braziliense, 30 ago. 1977).

À direita, inauguração do recinto das ariranhas em 1975. Fotografia: Histórias de Brasília. À esquerda, uma das protagonistas dos ataques no Zoo de Brasília em 1977. Fotografia de Tadashi Nakagomi, reprodução licenciada por D.A Press.

“Eu estava brincando no alambrado que protege o público dos animais, quando fui puxado por uma ariranha. Quando caí, os outros animais correram todos para onde eu estava e começaram a me devorar. Depois não me lembro bem, mas sei que entrou uma pessoa e atraiu a atenção das ariranhas e elas me deixaram em paz”, narrou Adilson Florêncio da Costa (Correio Braziliense, 30 ago. 1977), 13 anos. Ele caiu dentro do fosso com água ao tentar se equilibrar na grade de proteção que cercava o recinto das ararinhas. Segundo testemunhas, ele e os amigos brincavam na estrutura. “Um dos companheiros […] conta que viu quando os colegas, habituados a visitar o viveiro das ariranhas, iniciaram uma brincadeira perigosa. Adilson foi o primeiro a atravessar a grade que [cerca e] divide o viveiro ao meio, procurando se equilibrar acrobaticamente e se exibindo para a assistência. O grupo gostava de ver os animais pescarem e saírem da água para se espreguiçarem na terra, imitando os miados de gato. Quando o garoto já estava no meio da travessia, os companheiros começaram a balançar a grade e ele perdeu o equilíbrio”. “O zelador do zoológico de Brasília afirma ser muito provável que haja filhotes no viveiro onde caiu o sargento Hollenbach” (Manchete, 17 set. 1977). As ariranhas estavam em período reprodutivo, com filhotes no grupo, e reagiram instintivamente à presença inesperada e abrupta do menino. Interpretaram como ameaça e atacaram. “Para o Zoológico, as ariranhas não são perigosas” (Correio Braziliense, 31 ago. 1977).

Sílvio pulou para dentro do recinto e conseguiu resgatar o menino, que levou algumas poucas mordidas das ariranhas. Mas, ao tentar sair do fosso, ele foi puxado por uma delas. Após cinco minutos tentando se defender do ataque de seis ariranhas, que lhe deram pelo menos cem mordidas nas pernas, braços e rosto, Joel da Mata Oliveira, tratador de animais que estava de plantão na administração do zoo, também se atirou no recinto: “Foram lá e me avisaram o que ocorria. Subi no carro e fui a toda velocidade. Lá chegando, pulei dentro do viveiro e comecei a gritar, pedindo que alguém jogasse um pedaço de pau para enfrentar os animais, mas ninguém ligava, até que depois de algum tempo apareceu um pedaço de pau de pude tirar os bichos de cima do sargento” (Correio Braziliense, 31 ago. 1977). Joel conseguiu afastar as ariranhas e ambos foram retirados do fosso. Sílvio foi levado ao Serviço de Emergência do Hospital das Forças Armadas – HFA. “E o menino, salvei o menino?” Essas teriam sido as primeiras palavras de Sílvio ao recobrar a consciência após o atendimento médico. “Pouca coisa ele conversaria depois.  […] Tu me amas?”, perguntou a esposa. Ele, gesticulando a cabeça, respondeu afirmativamente. Morreu três dias depois na unidade de terapia intensiva (Correio Braziliense, 6 set. 1977). O laudo assinado pelo legista conclui que a morte foi provocada por “Septicemia das feridas corto-contusas infectadas pelas mordeduras de animais” (feridas corto-contusas são lesões que resultam da combinação de um agente cortante e um agente contundente, geralmente causando um ferimento com bordas irregulares e fundo irregular). O sepultamento foi em Porto Alegre, com honras militares – toque de silêncio e salva de 21 tiros. A família ficou devastada.

“Triplicou nos últimos dois dias o número de pessoas que visitam o Jardim Zoológico e um rígido esquema de segurança foi montado […] principalmente no viveiro onde se encontram as ariranhas. O administrador […] considera natural o aumento de pessoas […] pela curiosidade que o assunto despertou em toda a população e por grande parte das pessoas por não conhecerem o animal. […] O movimento de pessoas verificado ontem no Zoológico estava todo concentrado no viveiro das ariranhas. […] Era visível a preocupação de algumas mães que para lá se dirigiram acompanhadas de seus filhos. […] Existem atualmente no Zoológico de Brasília, dez animais desta espécies, que se alimentam de peixes que são retirados do lago […]. Dois guardas da segurança permanecem agora durante todo o tempo junto ao local onde ficam as ariranhas” (Correio Braziliense, 1 set. 1977).

Ariranhas se alimentando no Zoo de Brasília após a tragédia: “A aparência inocente pode esconder a ferocidade da ariranha” (Correio Braziliense, 1 set. 1977). Fotografia de Tadashi Nakagomi, reprodução licenciada por D.A Press.
“A cerca baixa, um perigo permanente que precisa ser eliminado” (Correio Braziliense, 1 set. 1977).
“Triplicou nos últimos dois dias o número de pessoas que visitam o Jardim Zoológico […] principalmente no viveiro onde se encontram as ariranhas” (Correio Braziliense, 5 set. 1977). A grade da qual Adilson caiu dividia o recinto. Fotografia de Tadashi Nakagomi, reprodução licenciada por D.A Press.

“O ato de abnegação e de sacrifício de seu marido, Sargento Sílvio Delmar Hollenbach, comoveu a todos nós e constituiu edificante exemplo de altruísmo e de coragem. Venho trazer à senhora e a seus filhos, em nome de minha família, a expressão de meu profundo pesar”, telegrafou o presidente Ernesto Geisel à Eni Teresina (Correio Braziliense, 1 set. 1977).  “Foi uma fatalidade. Ninguém é culpado, acho que isso pode acontecer com qualquer um de nós. Se há algum culpado, na minha opinião, é o zoológico, que não manteve a segurança nem para os animais e nem para os visitantes”, disse Ademar, pai de Adilson e funcionário da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, à reportagem (Correio Braziliense, 30 ago. 1977). “Ele enviou ao […] diretor do Hospital das Forças Armadas, carta datada de 29.8.77 […] elogiando e agradecendo a atitude do militar que salvou seu filho” (Correio Braziliense, 31 ago. 1977).

Notas e reportagens publicadas pelo Correio Braziliense em 31 ago., 1, 2, 3 e 5 set. 1977. As edições de 28 e 29 ago. não estão disponíveis. Fonte:memoria.bn.gov.br

As ariranhas não são animais ferozes, mas atacaram o menino porque uma fêmea tinha dado cria a cinco filhotes e se sentiu ameaçada. Esta espécie de mamífero habita a Região Amazônica e se alimenta de peixes” (Primeira página da Folha de S. Paulo, 31 ago. 1977)

À esquerda, notícia publicada pelo Jornal do Brasil, 31 ago. 1977. À direita, pelo Diário de Natal, 31 ago. 1977.

O incidente gerou uma onda de comoção e outra de homenagens ao herói. “A campanha, além de ser um gesto de solidariedade humana, seria o mínimo que esta população poderia fazer em prol daqueles que perderam o seu pai ainda na tenra idade. A grandeza do gesto do sargento não acrescenta ao sustento dos filhos o necessário para que eles tenham um futuro assegurado. É preciso que a sociedade saiba retribuir o exemplo de amor e de respeito pela vida do próximo, tão espontaneamente dado pelo militar” (Correio Braziliense, 3 set. 1977). Em 5 set., o governador do Distrito Federal assinou decreto alterando o nome do zoo para  Jardim Zoológico de Brasília Sargento Silvio Delmar Hollenbach (a homenagem foi reiterada por meio da Lei n. 1.009/1996); o mesmo aconteceu com o Zoo de Belo Horizonte, três meses após o incidente – passou a se chamar Jardim Zoológico Sargento Sílvio Hollenbach. Em 6 set., ocorreu “cerimônia de abertura de uma caderneta de poupança em nome da viúva […], de que participarão todas as empresas-públicas do Distrito Federal. […] que estará aberta também à contribuição de particulares [pessoas físicas e jurídicas] […] para garantir um futuro tranquilo para a família Hollenbach”. Em 9 set., a Presidência da República enviou ao Congresso Nacional projeto de lei pertinente à promoção post morten do 2º Sargento ao posto de 2º Tenente, “a contar da data do seu falecimento, ocorrido após a prática de atos meritórios que lhe custaram o sacrifício da própria vida”. Em 10 set., Eni Hollenbach recebeu “pecúlio a que ela fazia jus” do Clube dos Subtenentes e Sargentos do Exército. Ainda no mês de set., o presidente Geisel concedeu a Medalha de Distinção de 1ª Classe a Hollenbach. A medalha honorífica é uma condecoração civil criada em 1889, com o objetivo de reconhecer serviços extraordinários prestados à humanidade. Na exposição de motivos apresentada ao presidente, o Ministro da Justiça, Armando Falcão, escreveu: “[…] De todo o Brasil surgiram e ainda chegam manifestações de reverente admiração e respeito pelo sacrifício do bravo Sargento Hollenbach. O seu gesto de puro heroísmo custou-lhe a própria vida. Sua morte abalou os sentimentos de todos nós que, nesse holocausto, vimos um belo, dramático e edificante exemplo de altruísmo, coragem e solidariedade humana” (Correio Braziliense, 2 set. 1977). O ato de coragem também rendeu ao sargento a Medalha do Pacificador com Palma – distinção reservada a civis e militares que praticaram ato de bravura em benefício de terceiros, com risco da própria vida.

“O gesto de grandeza e de solidariedade do sargento Hollenbach oferece novo exemplo que deverá ser proclamado em toda parte e pode ir para as antologias e as notícias que honram o nosso povo, de onde surge, inopinadamente, essa figura romântica, estoica e espartana, e também um brasileiro que, para orgulho nosso, não deverá ser esquecido jamais. Esta Casa do povo não deveria, por isso mesmo, ficar indiferente e impermeável a esse acontecimento, numa hora em que o egoísmo, a inveja, o ódio, o embuste, a hipocrisia e todo o cortejo de forças e qualidades negativas vão-se alastrando, e solapando as lídimas virtudes. Mas, aí está a resposta através deste sargento do Exército, símbolo de coragem e de amor não só para brasileiros, mas para todo o mundo. Morreu para que um menino vivesse. Que Deus proteja a este, pelos tempos afora, para que ele venha a ser o testemunho vivo e palpitante do ato heroico que há de conclamar, sempre e sempre, o porvir à prática do bem, do altruísmo e da solidariedade”, discursou o senador Benjamim Farah, do MDB do Rio de Janeiro, que recebeu apoio das lideranças dos dois partidos, do senador Franco Montoro, também do MDB do Rio de Janeiro – “toda a população brasileira está a render homenagem ao sargento Hollenbach, que vai servir de exemplo às futuras gerações” – , e do senador Virgílio Távora, da Arena do Ceará – “o seu gesto testemunha os sentimentos básicos que formam a cultura e a bravura do soldado brasileiro” (Correio Braziliense, 2 set. 1977).

“Nos atuais dias em que o homem procura solucionar os problemas pessoais, esquecendo-se do semelhante e dos ensinamentos milenares de solidariedade humana, avulta, acresce o exemplo pelo paradoxo gritante do usual comportamento. […] para o estigma do exemplo que deflui do heroico ato, é insuficiente a ostentação do nome. Este representaria uma homenagem póstuma de agradecimento, é claro. Mas o que importa é deixar para o futuro, indelével, a marca de um procedimento a ser imitado. E para isto, entendemos nós, o busto do homenageado há de emergir do palco que lhe ceifou a vida, com resumido histórico de bravura. Ali, as crianças de hoje e de amanhã, aguçadas pela curiosidade, terão no feito um exemplo sempre atual a ditar-lhes o caminho do amor ao próximo, do sacrifício extremo, da solidariedade”

Crédito: Trecho da carta do Sindicato dos Publicitários e do Sindicato dos Comerciários ao governador do Distrito Federal (Correio Braziliense, 2 set. 1977).

Ao lado, busto em homenagem a Hollenbach no Zoo de Brasília (Fotografia de Otávio Maia).

O Departamento de Ensino e Pesquisa do Ministério do Exército assegurou “aos filhos do desafortunado Sargento, quando aprovados em concurso e independente da existência de vagas, matrícula em um dos colégios militares subordinados àquele alto órgão”. A Lei nº 6.499/1977 assegurou aos filhos de  Sílvio Hollenbach a instrução, em níveis de 1º e 2º graus e superior. A educação dos filhos – Júnior, 7, Paulo Henrique, 6, Bárbara Cristina, 4, e Débora Cristina, 1 ano – merecia atenção especial de Sílvio. “Era ele quem levava os meninos ao colégio, ajudava-os na elaboração dos deveres, ia ao pediatra, comandava as brincadeiras”. Sílvio Delmar Hollenbach Júnior tornou-se otorrinolaringologista; Paulo Henrique, analista de sistemas no Banco Regional de Brasília (BRB); Bárbara Cristine, analista no Ministério Público do Rio Grande do Sul, e Débora Cristina, doutora em direito, especialista em Direito da Criança e do Adolescente, Socioeducação e Justiça Restaurativa. “Acredito que não se deve esquecer o gesto que foi feito […]; com o tempo, as coisas tendem a ser esquecidas. Eu me senti muito honrado de ter sido convidado”, afirmou Paulo Henrique na cerimônia realizada para homenagear seu pai, em nov. 2018, no Zoo de Brasília, promovida pela turma formada na Escola de Sargentos das Armas em 1977, batizada com o nome Sílvio Hollenbach. 

“Lembro de tudo. Do meu pai saindo do carro, pulando no fosso e retirando o menino. Não fui ao enterro por ser pequeno. Na verdade, soube da morte dele pelo Jornal Nacional” — contou Sílvio Júnior em entrevista publicada em 2016. Ele se formou em Porto Alegre – cursou o fundamental e o médio no Colégio Militar – e fez residência no HFA. “Quando concluiu o curso de medicina pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, uma coincidência e uma deferência trouxeram Silvio Hollenbach Júnior de volta a Brasília: ‘Meu irmão estava no quartel e encontrou um general. Ao ver o sobrenome dele, o general perguntou: Você é filho do sargento Hollenbach? Ele respondeu que sim e contou sobre minha formação. Logo, o general informou que viria dirigir o HFA no ano seguinte e que me queria na equipe’. Vinte anos depois da tragédia, Sílvio voltava ao HFA, onde há uma homenagem ao pai no auditório da unidade [o auditório leva o nome do sargento]” (Correio Braziliense, 25 jun. 2016). 

Em 29 nov. 1977, foi instaurado inquérito policial para apurar as causas da tragédia, que tramitou por dez anos na 4ª Vara Criminal de Brasília. “O Ministério Público concluiu que não houve circunstância de natureza dolosa ou culposa por parte de terceiros” e o juiz sentenciou o caso em poucas linhas: “A morte do sargento Silvio Delmar Hollenbach, decorrente de um ato de bravura e heroísmo foi lamentada por toda Brasília. Arquive-se os autos”. Por duas vezes, a polícia tentou ouvir o menino Adilson, mas os pais pediram ao delegado que o dispensasse pois estava traumatizado. “Um dos depoimentos mais contundentes do inquérito é de Joel da Mata Oliveira […] Disse que, ao chegar no recinto, deparou-se com uns oito ou nove animais atacando violentamente um cidadão que já se encontrava inteiramente dominado. Vendo a situação, ele diz ter pulado no fosso e, com os pés, tentava afastar os bichos do homem que já estava caído na água. Num determinado momento, alguém lhe jogou uma vara, com a qual ele afastou as feras. Só então, conseguiu retirar a vítima e levá-la ao hospital” (Memória do Inquérito Policial n. 941/78, Episódios inesquecíveis, TJDFT).

Adilson Florêncio da Costa escapou das ariranhas, mas não das garras da Polícia Federal. Em 2016, o ex-diretor financeiro do ‘Postalis’ foi detido, acusado de gestão fraudulenta de instituição financeira, que teria causado perdas na casa das dezenas de milhões aos segurados do Instituto de Previdência Complementar – criado para garantir benefícios previdenciários complementares aos empregados dos Correios – e da Petros – fundos de pensão dos funcionários da Petrobras. Em 2020, Adilson foi condenado pelo Tribunal de Contas da União.

Como não há nada tão ruim que não possa piorar, a desgraceira foi além da morte de Hollenbach, cuja coragem foi reverenciada pelo jornalista Lourenço Diaféria (1933-2008) na crônica “Herói, Morto. Nós”, publicada em sua coluna no jornal Folha de São Paulo em 1 set. 1977. Diaféria vivenciou sua própria tragédia ao ser preso pelo Polícia Federal para responder a inquérito determinado pelo ministro da Justiça — a pedido do ministro do Exército — sobre o teor da crônica que constituía violação de dispositivos da Lei de Segurança Nacional. O cronista ficou preso entre 15 e 21 set. 1977 por ter, nas palavras de congressistas afiliado ao partido Arena, criticado “às Forças Armadas, que têm tido um comportamento de dignidade através da História, na defesa dos mais altos interesses do País”; “é legítima, em defesa de todos os membros da instituição, numa em que se procura denegrir as Forças Armadas que, no Brasil, sempre cumpriram seu papel constitucional, de garantir a segurança do País”; “estou totalmente solidário com o ministro […]. As instituições nacionais não podem ficar à mercê de insultos dos irresponsáveis. Os brasileiros têm nas suas instituições, entre as quais as Forças Armadas, não apenas a defesa de sua tranquilidade, mas a guardiã da honra nacional” (Folha de São Paulo, 10 set. 1977). Diaféria escreveu: “[…] E todavia. Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias. O Duque de Caxias é um homem a cavalo, reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na praça Princesa Isabel. Onde se reúnem os ciganos e as bombas do entardecer. Oxidou-se no coração do povo. O povo está cansado de espadas e de cavalos. […] O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta, o herói de bronze irretocável e irretorquível. Como as enfadonha, lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar. O povo quer o herói sargento que seja como ele: povo. […] Esse sargento não é do grupo do cambalacho. […] Duvido, e faço pouco, que esse pobre sargento morto fez revoluções de bar, na base do uísque e da farolagem, e duvido que em algum instante ele imaginou que apareceria na primeira página dos jornais. […]”.

A morte de Sílvio Hollenbach fez com que as ariranhas passassem a carregar os estigmas da agressividade e da periculosidade letal. No incidente – excepcional e atípico –, as ariranhas atacaram para defender seu território e seus filhotes. “A tragédia aconteceu porque o menino estava onde não devia”. Expressões sensacionalistas presentes nas reportagens em 1977 contribuíram para criar e perpetuar o mito das “ariranhas assassinas”: “animal perigoso”, “rosnar odioso”, “ferozes animais”, “uma ariranha mais feroz”, “todos não evitaram uma expressão de repúdio aos animais”, “todos queriam ver as feras”, “fúria das ariranhas”, “quase foram devorados”, “o garoto […] que estava sendo devorado por aqueles animais”, “seu corpo, mutilado pelas ariranhas assassinas”, “estava sendo devorado pelas ariranhas”, “ameaçado de ser devorado pelas ariranhas”, “só depois do episódio fatal as autoridades do parque descobriram que são perigosas”, “A ariranha ataca em grupo e destrói suas vítimas com rapidez”, “Criança e militar quase devorados por seis ariranhas”. Desserviço para chamar a atenção e chocar a opinião pública. 

O menino sobreviveu ao ataque, a família do sargento sofreu desolada. Hollenbach tornou-se símbolo de altruísmo, absorvido como narrativa de heroísmo; Joel da Mata Oliveira, que o resgatou, foi esquecido. A tragédia gerou um herói; a imprensa, um mito. Mas, para a zoologia e zoológicos, “ariranha não mata gente”.

Pintura naturalista de Joseph Wolf (1820–1899), publicada em Proceedings of the Scientific Meeting of the Zoological Society of London, em 1868. “A pele da ariranha é, como a da lontra, muito apreciada como tapete ou agasalho, principalmente quando caçada no inverno, porque então lhe cresce o reforço de pelos curtos e densos, que torna macia, e, ao ser beneficiada, ainda se lhe arrancam os pelos mais grossos. As ariranhas gostam de viver em bandos e nadam pelo rio, não raro fazendo uma grande barulheira, semelhante à dos gatos, cuja voz imitam. […] É preciso ser bom atirador para poder com algum sucesso ir à caça das ariranhas […] antes de poder ele disparar o tiro, a ariranhas some de todos nas profundezas e quando, algum tempo depois, reaparece, por um instante apenas, para respirar rapidamente, ainda uma vez o tiro resvala na água” (Correio Braziliense, 30 ago. 1977)

“Em referência à alimentação da ariranha, pouco tenho a dizer. Sei com segurança, que vivem nos rios e lagos à procura, sobretudo, de peixes, que são o seu principal alimento. Caça também aves e pequenos mamíferos que comem. Em cativeiro aceita de preferência peixe, mas come carne de vaca, galinha, pequenos mamíferos, pão, mandioca cozida, com muito pouco sal. Posto que aceite estes alimentos, e talvez outros, será sempre necessário dar-lhes peixes. Sei que quer a ariranha, quer a lontra com facilidade se a mansão, notadamente quando são capturadas novas. Quanto à pergunta se há conveniência ou não em criar estes animais, parece que envolve o sentido da conveniência econômica. Neste ponto nada poderei dizer, uma vez que nada sei a tal propósito, pois ignoro quem crie em tais animais visando o ponto econômico”.

Crédito: “Os ‘pequenos’ mamíferos ‘grandes’ inimigos da ‘pequena’ criação”, artigo de vulgarização zoológica, por Eurico Santos, publicado na revista Chácaras e Quintaes, em 15 jun. 1955.

Ariranha é uma espécie de lontra, que chega a ter até dois metros de comprimento. Sua pele é uma boa fonte de renda para os caçadores e um charme em agasalhos.
A ariranha vive em grupos, é sociável, barulhenta, irrequieta. Mas totalmente indefesa.
A ariranha está condenada à extinção.  E, como ela, mais quarenta espécies de aves e quase trinta de mamíferos atingiram mesmo um ponto crítico. E dificilmente escaparão do desaparecimento. Entre outros artigos, a GEOGRÁFICA deste mês apresenta uma longa e séria matéria sobre a preservação dos animais do Brasil. Um assunto emocionante, que questiona inclusive o nosso próprio conceito de civilização”
.

Crédito: Anúncio da edição 32 da Revista Geográfica Universal, publicada há quase 50 anos, em maio de 1977.

Em 1992, o médico e naturalista Jorge Schweizer divulgou os resultados de mais de dez anos de observações sobre a ecologia e o comportamento das ariranhas no Pantanal. A obra traz belíssimos desenhos da arquiteta Isabel Spiller.

“A causa precípua porém desse desinteresse pelas coisas do Brasil começa desde os bancos escolares, onde a criança aprende a ler histórias ilustradas de elefantes, girafas, camelos, rinocerontes, leões e hienas, ignorando por completo o que seja um tapir, uma ariranha, um guará, um tamanduá ou mesmo um banalíssimo tatu. Essa falha da educação nacional não cabe, por certo, aos meninos, que fogem da sua pátria estando dentro dela, mas exclusivamente aos dirigentes do país, que se têm descuidado de incentivar-lhes o amor à natureza brasileira em seus múltiplos aspectos” (Agenor Couto de Magalhães, Ensaio sobre a fauna brasileira, 1939).

Crédito: Selo da série Preservação da Flora e da Fauna Ariranha, 1975. Pintura de Álvaro Alves Martins (1922-1999).

O objetivo do Plano de Ação Nacional para a Conservação da Ariranha é conservar as populações de ariranhas e de lontras nas suas áreas de distribuição atual e iniciar a recuperação da ariranha em sua área de distribuição original, nas localidades em que foi extinta. Está em seu 3º ciclo de implementação (2024-29).

A portaria que aprovou o plano foi publicada em 27 ago. 2010, há exatos 33 anos após o incidente no Zoo Brasília, em 27 ago. 1977. Coincidência.

Crédito: Capa do Plano de Ação Nacional para a Conservação da Ariranha.

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

Leia também

Notícias
1 de agosto de 2018

Ariranhas estão voltando na região do Alto Rio Negro

Estudo indica que população dos animais, que se recupera também em outras regiões da Amazônia, está voltando aos rios do Noroeste do Amazonas

Análises
11 de agosto de 2015

As amorosas ariranhas do Parque do Cantão

Darwin considerou que animais podem ter sentimentos, mas não adiantou. Os biológos taxam essa possibilidade de antropomorfismo.

Reportagens
19 de agosto de 2015

As ariranhas estão voltando à Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã

Animais praticamente desapareceram, perseguidos devido à pele, mas hoje a população está se expandindo nesta reserva no interior do Amazonas.

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.