Colunas

As ciências oceânicas precisam reconhecer mais mulheres

No Brasil, as mulheres são mais da metade das pessoas com mestrado e doutorado em áreas da oceanografia, porém são menos de 40% na docência

8 de março de 2024
  • Rede Ressoa

    A Rede Ressoa é um projeto colaborativo de divulgação científica e comunicação sobre o Oceano.

  • Adriana Lippi

    É oceanógrafa pela USP, mestranda no programa Interdisciplinar em Ciência e Tecnologia do Mar (UNIFESP) pesquisando sobre mulheres nas ciências do mar.

  • Juliana Di Beo

    É bióloga pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Bolsista Mídia-Ciência Fapesp pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp. Atua com comunicação científica para fortalecer a cultura oceânica e o acesso aberto ao conhecimento na Rede Ressoa Oceano.

Imagine pessoas explorando o oceano. Pessoas em uma embarcação decidindo sobre os rumos de uma expedição. Quando pensamos em pessoas que se aventuram nesse ambiente, em geral, lembramos das figuras masculinas: marinheiros, velejadores, exploradores, mergulhadores, todos no masculino. Mas, onde e como estão as mulheres exploradoras do oceano, as mulheres nas ciências oceânicas?

A nível global, apenas 37% das profissionais do oceano são mulheres. Em um esforço para aumentar essa baixa representatividade, a Década do Oceano tem como missão catalisar soluções da ciência oceânica transformativa para o desenvolvimento sustentável. Um dos princípios da ciência transformativa é a busca pela manifestação e inclusão diversa nos aspectos de gênero, geração e geográficos. A diversidade dentro das ciências vai além de garantir o acesso a uma maior pluralidade de pessoas, ela garante uma melhor ciência. Uma maior variedade de pontos de vista, de experiências sociais e de perguntas minimizam os vieses de pesquisa e produzem resultados melhores que podem impactar positivamente a sociedade. Um exemplo é a pesquisa em doenças que atingem mais ou especificamente mulheres e pessoas com útero que, apesar de potencialmente afetarem metade da população mundial, ainda é uma área muito subfinanciada.

Neste 08 de março, que marca o Dia Internacional das Mulheres, aproveitamos para destacar avanços e desafios para alcançar a igualdade de gênero nas ciências oceânicas e para além dela. São muitos os dados que apontam as disparidades entre homens, mulheres e pessoas não-binárias nas ciências. Questões de gênero afetam desde ter sua vida impactada por assédios múltiplos até receber menos financiamento em suas pesquisas em relação a pares homens. Não podemos ignorar que mulheres racializadas, como negras e indígenas, e mães, lidam ainda com mais camadas de descriminações e desigualdades.

Quantas são as mulheres nas ciências oceânicas? 

As ciências oceânicas abrangem uma grande variedade de áreas de conhecimento, indo de engenharia naval à biologia marinha. No Brasil, temos o Comitê Executivo para a Formação de Recursos Humanos em Ciências do Mar (PPG-Mar) que faz uma seleção de quais cursos de graduação e pós-graduação estão formando profissionais e cientistas das ciências oceânicas. Analisando os dados de cursos de graduação e pós-graduação em oceanografia, podemos ter uma ideia grosseira da presença das mulheres nas ciências do mar no Brasil.

A partir dos dados do Censo do Ensino Superior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP), de 2009 a 2022, se formaram 3.292 pessoas em oceanografia, dessas 56,17% são mulheres. Se olharmos os dados a cada ano, vemos que tem aumentado a proporção de mulheres formadas, em 2021 as mulheres foram 68% das pessoas graduadas. No mesmo período, utilizando os dados abertos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES) sobre os programas de pós-graduação em oceanografia, oceanografia ambiental e oceanografia biológica, receberam títulos de pós-graduação 1.241 pessoas. Dentre as 677 pessoas tituladas como mestres, 60,92% são mulheres. Dos 292 títulos de doutorado, 52,21% foram titulados a mulheres. 

Apesar de serem a maioria das pessoas com mestrado e doutorado em oceanografia, essa proporção não se reflete nos cargos mais altos da carreira acadêmica, como de docência. Entre 2009 e 2022, tivemos de 76 a 165 credenciamentos de docentes em programas de pós-graduação em oceanografia, na média desse período, 36,05% eram mulheres.

Aqui podemos ver o chamado efeito tesoura, ou o efeito “leaky pipeline”, a redução da presença de mulheres nos cargos mais altos ou na medida que progridem na carreira. O efeito tesoura não é exclusividade da área científica ou nas ciências oceânicas. Há uma enorme lacuna de gênero na política que apresenta uma média de participação feminina de 26,4% em parlamentos e em cargos de gerência com 39,2% de representação de mulheres. Dados do estudo Global Gender Gap, do Fórum Econômico Mundial, mostram que se considerarmos a tendência atual, a igualdade de gênero será alcançada apenas em 2154. Não temos 130 anos para esperar que as mulheres e pessoas racializadas estejam de forma equitativa nos espaços de tomada de decisão e de construção da ciência.

Para quem pensa que é apenas uma questão de tempo, que precisamos esperar mais para acabar com as assimetrias de gênero no trabalho, principalmente no topo da carreira, temos que lembrar que em 1964 tivemos uma mulher, Marta Vannucci, atuando como diretora da primeira instituição de oceanografia no Brasil. Temos ao menos 60 anos de mulheres na oceanografia no Brasil, são seis décadas. 

Marta Vannucci. Foto: IO-USP

Olhando para a ciência brasileira, os dados de equidade de gênero e raça não são muito animadores. O grupo Parent In Science fez a análise das bolsas de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – uma valorização entre pares de cientistas produtivos – e a análise histórica mostra que houve quase nenhuma mudança da equidade de gênero em 19 anos. Quanto à raça, uma das poucas mudanças foi um aumento das pessoas pardas. Quanto tempo mais as mulheres e pessoas racializadas precisarão esperar para estarem em pé de igualdade para os cargos mais altos?

Estudos, como o da pesquisadora Rebecca Shellock e colaboradores (2022), apontam não só as diversas barreiras que as mulheres enfrentam na ciência oceânica, mas também estratégias para que essas barreiras sejam minimizadas. Desde a disponibilização de dados de diversidade do corpo docente e técnico, passando por apoio às atividades de cuidado (como creches), e até mesmo cotas para a contratação de docentes mulheres. As instituições e órgãos governamentais irão avaliar quais serão as estratégias escolhidas. Porém, é urgente o reconhecimento desse teto de vidro que impede as mulheres de estarem nas principais posições.

Lutando contra a maré patriarcal

As mulheres não estão paradas esperando a mudança de cenário. Há diversos grupos, movimentos e coletivos que trabalham para destacar o papel e a relevância das mulheres nas ciências, incluindo a oceânica. O grupo Parent In Science, mencionado anteriormente, trabalha para que o trabalho de cuidado dos filhos não prejudique a cientista que é mãe. Trazendo a necessidade de olhar o cuidado parental como atividade coletiva, o grupo já produziu diversos relatórios e materiais para contribuir com a criação e fortalecimento de políticas públicas para pais e mães na academia, como, por exemplo, um Guia de combate a discriminação e assédio contra mães na academia.

A Rede Kunhã Asé (RKA) é voltada a mulheres cientistas com foco na interseccionalidade, trazendo a importância da inclusão de mulheres na academia, mas que sejam mulheres diversas, em especial negras e indígenas, e não apenas brancas. A RKA desenvolveu um projeto para meninas terem a experiência de um trabalho de campo científico e aumentarem seu interesse em se tornarem cientistas.

Foto: Wikimedia Commons

Em âmbito internacional, temos iniciativas como o Gage, da organização 500 Women Scientists, que é um banco de dados mundial de pesquisadoras de diversas áreas e países. O repositório serve para que jornalistas, eventos acadêmicos, educadores e políticos encontrem facilmente mulheres pesquisadoras quando precisarem e para garantir a equidade de gênero em suas ações.

Por último e focado no oceano, temos a Liga das Mulheres pelo Oceano, que é uma rede de mais de 2 mil mulheres que atuam em diferentes frentes com o oceano, não apenas a ciência, e que completa 5 anos neste mês. Em seu canal há uma série de entrevistas com pesquisadoras para divulgar suas atuações. Outra iniciativa é o Prêmio Marta Vannucci, que terá mais uma edição neste ano, construído em parceria com outros movimentos, que premia tanto mulheres cientistas seniores que servem de inspiração, quanto jovens pesquisadoras que possam ser estimuladas a persistir na área. 

Desafios globais, como as mudanças climáticas, precisam da melhor ciência possível o quanto antes. Precisamos agora da ciência transformativa que inclua o máximo possível de pontos de vistas e perguntas inovadoras, com pessoas que apresentem maior variedade possível de experiências para apontar problemas metodológicos e vieses nas conclusões, que saibam o que é estar em situação de vulnerabilidade, pessoas que possam apontar porque a ciência ainda se mostra limitada no seu potencial de transformar o mundo. Não há dúvidas da importância das mulheres explorando o oceano. Para conseguirmos avançar no conhecimento desse ambiente que conhecemos menos de 2%, é mais do que urgente garantir que elas persistam na área.

Para saber mais:

Artigo de Tabita Said. Pesquisadoras revelam os desafios das mulheres para fazer ciência. Jornal da USP, 2021. Disponível em: jornal.usp.br/universidade/pesquisadoras-revelam-os-desafios-das-mulheres-para-fazer-ciencia/ 

Rebecca Shellock e coautores. Breaking down barriers: The identification of actions to promote gender equality in interdisciplinary marine research institutions. One Earth, p. 23, jun. 2022. Disponível em: doi.org/10.1016/j.oneear.2022.05.006 

Relatório da UNESCO/IOC sobre dados mundiais da ciência oceânica. Nações Unidas, 2021. Disponível em: un-ilibrary.org/content/books/9789216040048 

Relatório da Unesco/IOC sobre o plano de implementação da Década do Oceano. UNESCO, 2021. Disponível em: un-ilibrary.org/content/books/9789216040048 

Relatório da Unesco/IOC sobre Orientações e recomendações para abordagens colaborativas para projetar e implementar ações da Década do Oceano. UNESCO, 2021. Disponível em: unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000379563.locale=en 

Artigo científico de Antonio C. Marques e coautores. Marine and coastal biodiversity studies, 60 years of research funding from FAPESP, what we have learned and future challenges. Biota Neotropica, 2022. Disponível em: doi.org/10.1590/1676-0611-BN-2022-1385 

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

Leia também

Reportagens
14 de outubro de 2018

Os desafios de ser mulher e trabalhar com conservação em campo

Coletamos depoimentos de pesquisadoras e profissionais sobre os obstáculos enfrentados pelo simples fato de serem mulheres e realizarem trabalho de pesquisa em campo

Reportagens
31 de outubro de 2019

Como as profissionais da conservação equilibram maternidade e trabalho de campo

Profissionais e pesquisadoras aceitaram relatar suas experiências pessoais sobre a união de duas paixões: a maternidade e a conservação

Reportagens
7 de março de 2024

Yara Schaeffer-Novelli, a grande mãe dos manguezais brasileiros

A ciência brasileira sabia muito pouco sobre manguezais quando Yara Schaeffer-Novelli decidiu se debruçar sobre o assunto em 1976. E ela nunca mais parou de pesquisá-los

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.