Análises

Ainda há esperança para o Centro de Endemismo Pernambuco e suas aves ameaçadas?

Iniciativas de conservação tentam garantir a conservação da rica biodiversidade de espécies da Mata Atlântica do nordeste, ao norte do rio São Francisco

Bárbara Cavalcante ·
12 de outubro de 2020 · 4 anos atrás
Paisagem da Estação Ecológica de Murici (AL), um dos maiores remanescentes da Floresta Atlântica do Centro de Endemismo Pernambuco. Foto: Hermínio Vilela

A Floresta Atlântica ao norte do rio São Francisco é considerada uma das regiões mais ameaçadas do bioma devido ao histórico de degradação causada pelo processo de colonização do território brasileiro. Esta porção norte da Mata Atlântica compreende as florestas situadas entre os estados de Alagoas e Rio Grande do Norte, incluindo os encraves do Ceará. Apesar de representar menos de 5% da área total original do bioma, esta região apresenta altíssimo valor para a conservação da biodiversidade, abrigando duas áreas de endemismo: os Brejos Nordestinos e o Centro de Endemismo Pernambuco.

O Centro Pernambuco é uma região biogeográfica única da Floresta Atlântica que abriga espécies endêmicas de diversos grupos biológicos, ou seja, espécies que ocorrem exclusivamente neste local. Dentre estes grupos endêmicos estão as aves. Até hoje foram registradas mais de 430 espécies nos remanescentes florestais do Centro Pernambuco, o que representa cerca de 2/3 das aves que ocorrem no domínio da Mata Atlântica.

Toda essa riqueza biológica está confinada em fragmentos florestais que estão isolados e dispersos em uma matriz dominada por áreas urbanas e de uso agropecuário, principalmente pasto e cana-de-açúcar, e, portanto, nada amigável à biodiversidade.

A SAVE Brasil atua na região desde o ano 2000, inicialmente como Programa do Brasil da BirdLife International, embrião que originou a organização em 2004. Tal programa foi responsável pela identificação das “Áreas Importantes para a Conservação das Aves e da Biodiversidade” (IBAs, sigla em inglês), que são sítios-chave prioritários para a conservação das aves em todo o país. Esta iniciativa contribuiu para colocar muitas áreas no “radar da conservação” a nível global. Duas delas foram a IBA Murici (AL) e a IBA Serra do Urubu (PE), remanescentes florestais reconhecidos internacionalmente pela sua extrema importância biológica. Estas duas áreas são os núcleos da atuação do Projeto Mata Atlântica do Nordeste, desenvolvido pela SAVE Brasil.

Murici é um dos maiores fragmentos remanescentes de Mata Atlântica ao norte do rio São Francisco, considerado um dos sítios com maior número de espécies de aves ameaçadas nas Américas. Na década de 1980, Murici foi palco da descoberta de quatro espécies de aves endêmicas e globalmente ameaçadas da Floresta Atlântica do Centro Pernambuco: o zidedê-do-nordeste (Terenura sicki), a choquinha-de-alagoas (Myrmotherula snowi), o limpa-folha-do-nordeste (Phylidor novaesi) e o cara-pintada (Phylloscartes ceciliae). Em 2014, uma nova espécie de ave endêmica também foi descrita em Murici: o gritador-do-nordeste (Cichlocolaptes mazarbarnetti). Além de Murici, esta espécie só foi registrada na Serra do Urubu, mas infelizmente, foi declarada extinta no ano passado junto ao limpa-folha-do-nordeste.

Limpa-folha-do-nordeste (Philydor novaesi), ave endêmica do Centro Pernambuco e declarada extinta em 2019. Foto: Carlos Gussoni

Em 2001, a maior parte do fragmento de Murici, uma área de 6 mil hectares, foi reconhecida pelo governo federal como Estação Ecológica de Murici (ESEC de Murici) e, desde então, a SAVE Brasil e diversos parceiros vêm atuando junto ao ICMBio para garantir a efetiva implementação e proteção desta área protegida que ainda carece de regularização fundiária. Em Murici, já foram registradas 242 espécies de aves e, destas, 17 estão globalmente ameaçadas de extinção, de acordo com a BirdLife International e a União Internacional pela Conservação da Natureza. Se considerarmos a lista brasileira da fauna ameaçada, este número sobe para 34 espécies.

Uma destas espécies “Criticamente Ameaçadas de Extinção” é a choquinha-de-alagoas. Atualmente, a ESEC de Murici abriga a última população conhecida da espécie estimada em menos de 50 indivíduos. A SAVE Brasil vem trabalhando em parceria com a Universidade Federal de Alagoas, a Universidade Federal da Paraíba, o Parque das Aves e o ICMBio para implementar as ações previstas no Plano Emergencial para a Conservação da choquinha-de-alagoas. Criado em 2016, o plano prevê um conjunto de estratégias que visam garantir a sobrevivência da espécie a longo prazo, que incluem desde ações de pesquisa científica, monitoramento populacional e buscas por novas áreas de ocorrência, até experimentos para a reprodução da espécie em cativeiro.

Choquinha-de-alagoas (Myrmotherula snowi), ave Criticamente Ameaçada de extinção cuja última população conhecida encontra-se na Estação Ecológica de Murici (AL). Foto: Arthur Andrade

A 50 km ao norte de Murici está a Serra do Urubu, um fragmento florestal com cerca de 1.400 hectares que abriga duas RPPNs (Reservas Particulares do Patrimônio Natural): a RPPN Frei Caneca, que pertence à Usina Frei Caneca S/A e a RPPN Pedra D’Antas, pertencente à SAVE Brasil. Atualmente, a Serra do Urubu abriga 285 espécies de aves, sendo que 13 estão globalmente ameaçadas de extinção. Este foi o último local de registro do limpa-folha-do-nordeste, em 2011.

A Serra do Urubu é um ótimo exemplo para ilustrar a importância do Terceiro Setor como aliado do Poder Público na conservação da biodiversidade. Se a RPPN Pedra D’Antas não tivesse sido criada, certamente esta floresta tão rica teria sido convertida em pasto e plantação de banana – os dois principais tipos de uso do solo na região atualmente. Ao invés disso, a área de 360 hectares que estava sendo devastada para a produção de carvão em 2004, ano em que a SAVE Brasil adquiriu a Fazenda Pedra D’Antas, hoje abriga uma floresta exuberante e cheia de vida em pleno processo de regeneração natural. E, como efeito colateral positivo, a nossa presença no local fortalece a proteção da RPPN vizinha.

Desde o início da atuação na Serra do Urubu, a SAVE Brasil desenvolve um modelo de conservação que utiliza a observação de aves como ferramenta de diálogo para aproximar a comunidade local da Reserva e promover a conscientização acerca da importância e dos benefícios trazidos pela conservação da biodiversidade.

Em 2011, a RPPN Pedra D’Antas foi oficialmente reconhecida e, desde 2014, a SAVE Brasil vem investindo na melhoria da infraestrutura de visitação da Reserva para atrair mais visitantes e proporcionar uma experiência educativa e inspiradora de contato com a natureza. Atualmente, a infraestrutura da Reserva inclui: a Trilha Interpretativa com cerca de 2,5km de extensão, implementada em 2014; o Centro de Visitantes, inaugurado em 2015; o Jardim dos Beija-flores, inaugurado em 2017 – onde é possível observar mais de 20 espécies de beija-flores, além de outros grupos de aves; e a Torre de Observação de Aves, inaugurada em setembro de 2019 – a única torre de observação de aves aberta ao público no estado de Pernambuco.

Vista do alto da Torre de Observação de Aves da RPPN Pedra D’Antas (PE). Foto: Adriano Monteiro/SAVE Brasil

O Jardim dos Beija-flores ocupa um espaço de 700m² circundado por floresta. Localizado na área administrativa da Reserva Pedra D’Antas, onde no passado existia a casa grande do Engenho Pedra D’Antas, o jardim tem uma vista privilegiada da floresta e oferece aos visitantes uma experiência única de contato com a natureza. Mais de 2.600 pessoas já tiveram a oportunidade de visitar o local desde a sua inauguração, em novembro de 2017. E a maioria dos visitantes foram moradores de Lagoa do Gatos – município onde a Reserva está localizada – e também das cidades vizinhas.

Nestes quase três anos de existência, já foram registradas mais de 150 espécies de aves somente no Jardim dos Beija-flores. Dentre elas, está o beija-flor-de-costas-violetas (Thalurania watertonii), espécie endêmica da Floresta Atlântica do Nordeste que está globalmente ameaçada de extinção. Outra espécie emblemática que pode ser observada nos comedouros do Jardim é o pintor (Tangara fastuosa), ave endêmica e ameaçada do Centro Pernambuco que ilustra a capa do Guia das Aves da Serra do Urubu, lançado em setembro de 2019.

Nos últimos anos, a Reserva Pedra D’Antas tem se consolidado como destino de observação de aves, atraindo observadores do Brasil e do exterior. Além do incentivo à observação de aves como forma de reconexão com a natureza, a SAVE Brasil também tem estimulado o turismo de observação de aves no município onde a Reserva está situada como uma alternativa de geração de renda para a comunidade local. Lagoa dos Gatos tem grande potencial para o turismo rural e a existência da área protegida tem contribuído para colocar o município nos holofotes do turismo em Pernambuco. No entanto, a atividade turística ainda não é vista como uma oportunidade por muitos atores-chave locais. Por isso, o projeto tem desenvolvido um conjunto de ações para incentivar o desenvolvimento da cadeia produtiva do turismo no município.

A primeira delas é o Curso de Formação de Condutores Locais da Serra do Urubu, promovido em parceria com a EMPETUR. Iniciado em fevereiro, o curso tem por objetivo formar condutores que serão habilitados a conduzir os visitantes na Reserva Pedra D’Antas. Atualmente, as atividades presenciais do curso estão suspensas por causa da pandemia e a previsão é que sejam retomadas em 2021.

Outra linha de atuação do projeto é a restauração florestal. Estamos iniciando um esforço conjunto com diversos parceiros, entre eles o WWF-Brasil, para incentivar a restauração florestal na paisagem onde as IBAs Serra do Urubu e Murici estão inseridas. O objetivo é aumentar a cobertura florestal e promover a conectividade entre os fragmentos remanescentes da paisagem incentivando a adequação ambiental das propriedades rurais e a geração de benefícios econômicos para os produtores rurais. Uma das estratégias de restauração será por meio do incentivo à adoção de Sistemas Agroflorestais (SAFs), modelo de produção de alimentos que é amigável às aves e à biodiversidade.

O Projeto Mata Atlântica do Nordeste é possível graças ao apoio da BirdLife International, The Aage V Jensen Charity Foundation, WWF-Brasil, American Bird Conservancy, Marshall-Reynolds Foundation e National Geographic Society. São parceiros o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, o Parque das Aves, a Universidade Federal de Alagoas, a Universidade Federal da Paraíba e a Hughes Net.

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