Meme é um conceito brilhantemente cunhado pelo biólogo evolutivo e entomologista Richard Dawkins. Em 1976, Dawkins escreveu uma de suas maiores obras: O Gene Egoísta. Neste livro, meme foi definido como uma unidade de informação que se multiplica de cérebro em cérebro, ou seja, de pessoa em pessoa dentro de uma determinada cultura. A sua continuidade pode ser mantida pela escrita, fala, rituais, simbolismos ou atualmente, pela internet. Em resumo, uma vez surgido o meme, sua ideia pode se autorreplicar. O fenômeno dos memes em redes sociais mundiais não se deve a criatividade de quem os fez, mas sim à sua autorreplicação no mundo virtual.
Mas e as araucárias? Bem, dentro do domínio subtropical da Mata Atlântica, existe uma fitofisionomia chamada de Mata de Araucárias ou Floresta Ombrófila Mista (Mattos, 2011). O principal componente vegetal é a Araucaria angustifolia, popularmente conhecida como araucária ou Pinheiro-do-Paraná. Essas florestas praticamente sucumbiram devido à extensa exploração madeireira no século XX, juntamente com a expansão agrícola e urbanização (Ribeiro et al., 2009; Mattos, 2011). Atualmente, os remanescentes dessa então majestosa floresta cobrem apenas 15% de uma área que outrora estendia-se por mais de 200.000 km², principalmente no sul do Brasil, além de pequenas manchas específicas nos estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro (Ribeiro et al., 2009; Rezende et al., 2018).
Além da madeira, outro famoso recurso da araucária, o pinhão – uma semente de alto valor nutritivo –, foi amplamente utilizado por povos indígenas em épocas Pré-Colombianas, como os Kaingang e Xokleng (Reis et al., 2014). Esta longa interação foi fundamental para aumentar a resiliência ambiental da própria araucária frente a distúrbios; a produtividade de suas sementes e até mesmo a expansão da Mata de Araucárias (Robinson et al., 2018). Essa interação humanos-planta também permitiu a autorreplicação da importância das araucárias até os dias de hoje. Contudo, não foram apenas humanos que se beneficiaram deste famoso recurso. A fauna nativa existente da Mata de Araucárias, desde pumas, veados-catingueiros, pacas, cutias, macacos, gralhas-azuis ou papagaios (charão e do peito-roxo), e até mesmo espécies exóticas, como javalis, bois, porcos, se beneficiam do pinhão.
Esta importância do pinhão e da araucária fez com que a espécie pudesse ser estudada como uma espécie-chave (keystone species; Paine, 1969). Uma espécie-chave é aquela que sua população (i.e. conjunto de indivíduos da mesma espécie) se torna imprescindível para a manutenção da biodiversidade e organização de uma comunidade (i.e. conjunto de diferentes espécies interagindo em um ecossistema). Entretanto, como um meme, o termo “espécie-chave” foi se autorreplicando para inúmeras espécies, sem a devida comprovação empírica. Uma premissa não comprovada, que seguiu se difundindo. A araucária como espécie-chave tornou-se um meme.
O conceito de espécie-chave para plantas, por exemplo, deve estar associado com a disponibilidade de recursos críticos, seja néctar, frutos ou sementes, para seus consumidores em períodos de escassez de outros alimentos (Peres, 2000; Kricher, 2011). Em resumo, uma espécie vegetal que possui seu recurso como chave para a manutenção de uma comunidade (em inglês keystone plant resource). Para resolver esse imbróglio memético com a araucária e seu recurso (o pinhão), nós decidimos testar o conceito de keystone plant resource (Peres, 2000). Nós utilizamos dados de campo com uma revisão abrangente da literatura científica. Deste modo, avaliamos quantitativamente a contribuição do pinhão para a fauna existente na Mata de Araucárias via quatro critérios que definem uma espécie-chave vegetal:
1 – Baixa redundância temporal: o pinhão pode ocorrer em épocas em que outros recursos não estão presentes no ecossistema;
2 – Baixa especificidade do consumidor: o pinhão é consumido por várias espécies distintas;
3 – Confiabilidade do recurso: a produção de pinhão é quase contínua ao longo do ano;
4 – Abundância do recurso, ou seja, alta produção de pinhão pelas araucárias.
Mostramos então em nosso estudo² que a araucária é sim uma espécie-chave para a Mata de Araucárias e, consequentemente, a Mata Atlântica. E responde aos quatro critérios descritos anteriormente. O pinhão é um recurso fundamental para a manutenção da fauna existente na Floresta Ombrófila Mista pois é um recurso com ocorrência garantida; que não se sobrepõe a épocas de amadurecimento de outros recursos da floresta e é consumido por inúmeras espécies de vertebrados.
Outro ponto relevante de nosso estudo foi identificar quais espécies animais tem interação ainda mais forte com o recurso da araucária. Nesse caso, quatis, pequenos roedores, veado-catingueiro, capivaras e cutias são as espécies que mais consomem pinhões. No entanto, quase 70% da fauna dentro da Mata de Araucárias consome o recurso. Espécies exóticas como o javali e a lebre-europeia também tem se deliciado com o nutritivo pinhão.
E quais as implicações deste nosso estudo ao provar finalmente que a araucária é uma espécie-chave devido ao seu principal recurso na Mata de Araucárias?
Com a retração das florestas com araucárias as populações de diversos animais que dela dependem podem ser influenciadas negativamente, inclusive desaparecendo. Esse processo chama-se de defaunação no bioma da Mata Atlântica (Peres et al., 2016; Bogoni et al., 2018). Essa perda pode levar a consequências graves, como baixa dispersão de sementes e propágulos de espécies vegetais e diminuição da biodiversidade. Apesar do pinhão ser consumido por inúmeros animais, são poucas as espécies que dispersam suas sementes, como a gralha-azul, a cutia ou os papagaios-charão e do peito-roxo. As demais, apenas se alimentam do pinhão. A conta é simples: menos araucária, menos pinhão, menor dispersão e poucos animais beneficiados.
Uma segunda implicação de nosso estudo é que definitivamente quando preservamos a araucária, estamos garantindo a manutenção e regulação da comunidade de animais; a produção de pinhões; assim como da rentabilidade econômica de inúmeras famílias de pequenos agricultores que dependem da venda desse recurso. Ou seja, conservar a araucária é garantir sucesso ecológico, econômico e social.
Uma terceira implicação é que nosso estudo pode servir de base para que inúmeras outras espécies cunhadas de modo prematuro e memético como “espécies-chave” sejam quantitativamente avaliadas no método que propusemos. Isso pode influenciar ainda mais tomadores de decisão, políticas públicas e gestores a resguardar espécies que protegem todo ecossistema favorecendo a conservação da sociobiodiversidade. Que tal passar essa informação adiante¹?
*Mário Tagliari – Pesquisador Laboratório Ecologia Humana e Etnobotânica – ECOHE; Programa de Pós-Graduação em Ecologia – UFSC;
Juliano Bogoni – Pesquisador Laboratório de Ecologia, Manejo e Conservação da Fauna Silvestre (LEMac) e School of Environment Sciences, University of East Anglia (Reino Unido);
Carlos Peres – Scholl of Environment Sciences, University of East Anglia e Departamento de Sistemática e Ecologia – UFPB;
Nivaldo Peroni – Coordenador Laboratório Ecologia Humana e Etnobotânica – ECOHE; Programa de Pós-Graduação em Ecologia – UFSC.
REFERÊNCIAS
¹ Bogoni, J.A., Muniz-Tagliari, M., Peres, C.A., Peroni, N., 2020. Testing the keystone plant resource role of a flagship subtropical tree species (Araucaria angustifolia) in the Brazilian Atlantic Forest. Ecol. Indic. 118, 106778. Acesso livre e disponível até setembro.
Bogoni, J.A., Pires, J.S.R., Graipel, M.E., Peroni, N., Peres, C.A., 2018. Wish you were here: How defaunated is the Atlantic Forest biome of its medium- to large bodied mammal fauna? PLoS ONE 13 (9), e0204515.
Mattos, J.R., 2011. O pinheiro brasileiro. Editora UFSC, Florianópolis, pp. 700.
Paine, E., 1969. A note on trophic complexity and species diversity. Am. Nat. 100, 91–93.
Peres, C.A., 2000. Identifying keystone plant resources in tropical forests: the case of gums from Parkia pods. J. Trop. Ecol. 16, 287–317.
Peres, C., Emilio, T., Schietti, J., Desmoulière, J.M., Levi, T., 2016. Dispersal limitation induces long-term biomass collapse in overhunted Amazonian forests. Proc. Nat. Acad. Sci. 113 (4), 892–897.
Reis, M.S., Ladio, A., Peroni, N., 2014. Landscapes with Araucaria in South America: evidence for a cultural dimension. Ecol. Soc. 19 (2), 43.
Rezende, C.L., Scarano, F.R., Assad, E.D., Joly, C., et al., 2018. From hotspot to hopespot: an opportunity for the Brazilian Atlantic Forest. Perspect. Ecol. Conserv. 16 (4),208–214.
Ribeiro, M.C., Metzger, J.P., Martensen, A.C., Ponzoni, F.J., Hirota, M.M., 2009. The Brazilian Atlantic Forest: how much is left, and how is the remaining forest distributed? Implications for conservation. Biol. Conserv. 142, 1141–1153.
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