Os anfíbios são o grupo de vertebrados mais ameaçado em todo o planeta, com pelo menos 32% das espécies categorizadas como ameaçadas. Dentre essas espécies ameaçadas, 86% são categorizadas em alguma das categorias de ameaça com base em critérios de distribuição geográfica (B2 ou B2, ou D2 para vulnerável).
No Brasil, 95% dos anfíbios ameaçados também são categorizados a partir de critérios distribucionais. Isso demonstra que o adequado conhecimento da distribuição geográfica das espécies e a correta delimitação taxonômica são críticas para sua categorização e posterior tomada de ações visando reverter a perda de biodiversidade no grupo.
A despeito do pouco conhecimento ou mesmo desinteresse da população em geral pelos anfíbios, estes organismos são espetaculares e seu desaparecimento é preocupante. Além da relevante importância nas cadeias tróficas, declínios de anfíbios são preocupantes do ponto de vista da saúde humana e têm sido relacionados a surtos de malária na América Central. Os anfíbios possuem na pele um poderoso arsenal químico, o qual evoluiu para proteger esses animais da dessecação, dos predadores e de doenças. Não por acaso, diversas substâncias biologicamente ativas têm sido encontradas nas secreções cutâneas, com diversos usos no desenvolvimento de novos medicamentos, cosméticos e novas tecnologias para as indústrias química e farmacêutica.
O comportamento dos anfíbios inspira até mesmo soluções inovadoras em produtos tecnológicos, como o desenvolvimento de sistemas inteligentes de economia de energia na transmissão de dados em redes wireless.
Com mais de 1100 espécies de anfíbios ocorrendo no país como parte da estonteante biodiversidade nacional, o Brasil poderia se tornar uma grande potência mundial em biotecnologia. No entanto, a visão dominante por aqui trata a biodiversidade como entrave e não como o patrimônio único e essencial ao desenvolvimento de nossa sociedade que ela representa. O atraso e a miopia no conhecimento, uso e proteção da biodiversidade nacional nega a toda sociedade brasileira o desenvolvimento do país como uma potência biológica coerente à magnitude de nossa natureza.
Considerando apenas as espécies estudadas no nosso projeto (ver abaixo), já foram identificadas substâncias com potencial para o combate à doença de chagas e células tumorais.
O gênero Pithecopus (Phyllomedusidae) compreende 12 espécies, das quais quatro são endêmicas das terras altas do Cerrado Brasileiro (Pithecopus ayeaye, Pithecopus centralis, Pithecopus oreades e Pithecopus megacephalus) e são o foco dos nossos estudos. Pelo fato de habitarem apenas regiões de maior altitude no Cerrado, tais espécies também compõem um interessante modelo de estudos de biogeografia e evolução do Cerrado.
Estas pererecas carismáticas ocorrem em ambientes hoje ameaçados pela perda de habitat causada pela mineração, silvicultura, pecuária, incêndios e turismo insustentável. Tais ecossistemas, além de raros na paisagem do Cerrado, são muito relevantes à manutenção de nascentes, abrigam diversas espécies de plantas e animais endêmicos e são extremamente sensíveis à erosão.
Pithecopus ayeaye é categorizada como Criticamente Ameaçada na Lista Vermelha da IUCN, enquanto Pithecopus centralis, Pithecopus megacephalus e Pithecopus oreades são classificadas como Dados Deficientes. No entanto, na Lista Vermelha do Brasil, produzida pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) através do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Répteis e Anfíbios (RAN), essas espécies são categorizadas como menos preocupantes, exceto para P. centralis, que é classificada como “Quase Ameaçada”. Sendo espécies restritas ao Brasil, as categorizações das Listas Vermelhas produzida pela IUCN e pelo ICMBio deveriam ser as mesmas para essas quatro as espécies.
Para aumentarmos o conhecimento sobre tais espécies, ampliar o entendimento sobre as ameaças que pairam sobre elas e resolver as incertezas sobre as suas distribuições geográficas e delimitações taxonômicas, obtivemos financiamento em um projeto de pesquisa apoiado pelo Critical Ecosystems Partnership Fund (CEPF), implementado no Brasil pelo Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB). Além do apoio dessas instituições, unimos no projeto os esforços de pesquisadores de diferentes universidades (UnB, UFMG, UFSJ, UFMT, UFPR) e uma organização não-governamental (Instituto Araguaia).
Através do projeto desenvolvemos diversas atividades, como (1) a realização de estudos em campo, visando compreender melhor a distribuição geográfica de cada espécie; (2) o uso de ferramentas genômicas para confirmar as suas identidades taxonômicas; (3) a elaboração de relatórios técnicos para apoiar a atualização das listas vermelhas; (4) o desenvolvimento de estudos sobre as condições ambientais, incluindo qualidade da água, exigidas pelos girinos para sua sobrevivência e desenvolvimento; (5) realização de investigações sobre o impacto da contaminação da água e degradação da paisagem natural sobre as populações das pererecas-macaco; e (6) a identificação de regiões no Cerrado relevantes para a conservação dessas espécies.
As equipes de pesquisadores envolvidos no projeto realizaram trabalhos de campo nas estações chuvosas de 2019/2020 e 2020/2021, buscando registros das espécies em locais identificados por meio de uma combinação de modelagem de nicho ecológico e mapeamento de distribuição preditiva. Como resultado, somamos 60 localidades com registro de Pithecopus ayeaye (incremento de 20% no número de registros), 11 localidades para P. centralis (10% de incremento), 46 localidades para P. megacephalus (21% de incremento) e 26 localidades para P. oreades (116% de incremento). As populações de outras 16 localidades ainda precisam ser identificadas usando ferramentas moleculares para sua correta identificação.
Além de permitir a atualização das categorias de ameaça das espécies a partir da revisão das suas distribuições nos remanescentes do Bioma Cerrado, nós iremos identificar outras áreas com condições ambientais adequadas para sua ocorrência para sugerir unidades de conservação, fragmentos e regiões prioritárias para a conservação e conectividade das áreas de ocorrência de tais espécies. Com isso, pretendemos contribuir com a conservação das pererecas-macaco e seus ecossistemas através do incentivo à criação de Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs). Para tanto, temos apoio do CEPF/IEB e da Fundação Pró-Natureza para o apoio a proprietários interessados em Brasilândia de Minas (MG) e na região de Poços de Caldas (MG). Nesse último município, contamos com a parceria de pesquisadoras do Instituto Federal Sul de Minas e do Instituto Fernando Bonillo. Parceiros interessados também foram contatos na região da Chapada dos Veadeiros (GO) e nos municípios de Carrancas e Luminárias (MG).
Além do incremento no conhecimento sobre a distribuição dessas espécies, descobrimos que processos pretéritos associados a mudanças climáticas foram relevantes nos eventos de conectividade e de isolamento dessas espécies, moldando a diversidade genética das linhagens. Também descobrimos que o isolamento promovido pelas montanhas tem promovido diferentes graus de diferenciação de populações, mostrando que tais espécies são compostas por linhagens com maior ou menor grau de semelhança genética, o que afeta as políticas de conservação para as mesmas.
Com o resultado de nossos estudos, a espécie Pithecopus centralis foi incluída como espécie-alvo nas ações de conservação previstas no Plano de Ação Nacional para a Conservação das Espécies Ameaçadas de Extinção da Ictiofauna, Herpetofauna e Primatas do Cerrado e Pantanal – CERPAN, coordenado pelo Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Répteis e Anfíbios (RAN/ICMBio).
Também produzimos uma cartilha para proprietários rurais, visando apoiar os mesmos na conservação das nascentes em suas propriedades. Esses riachos de altitude são as nascentes primárias de diversos rios importantes do Cerrado, que mais tarde formarão algumas das maiores bacias da América do Sul. A conservação dessas espécies e seus habitats são ações impactantes para a manutenção da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos prestados pelas montanhas do bioma Cerrado.
Para conhecer mais sobre o projeto, acesse a página do Instagram (@monkeyfrog_).
*Rafael Félix Magalhães é mestre em Ecologia e Evolução e Doutor em Zoologia, Professor Adjunto do Departamento de Ciências Naturais (DCNAT) da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), Minas Gerais, onde desenvolve pesquisas focadas na história natural, genética da conservação e delimitação de espécies crípticas, especialmente com Anfíbios Anuros.
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Parabéns pelo excelente trabalho que os pesquisadores vem realizando.
Trabalho nosso Silvana!