Quem viaja pela BR 364 no Acre cruza um mundo de fazendas de gado com produtividade risível que empurraram a floresta para longe do asfalto. Enquanto você desvia das crateras abertas no pavimento “recuperado” apenas dois meses antes, é provável que não perceba o Morro do Careca, até porque a maior parte do morro foi obliterada para dar passagem à estrada.
O que sobrou, um barranco na beira da estrada entre Feijó e Taraucá, é uma janela para o tempo em que os Andes ainda não existiam e o futuro rio Amazonas corria de leste para oeste, alimentando grandes lagos e pantanais ligados ao que é hoje o Caribe.
Os sedimentos acumulados no fundo do sistema do Lago Pebas geraram a Formação Solimões, com camadas brancacentas de carbonato bem visíveis no Morro do Careca. As chuvas lavam essa camada e os fósseis enterrados por uns 12-5 milhões de anos são expostos para quem tiver a curiosidade de procurá-los.
Em minha última viagem ao Acre paramos para conhecer um dos mais conhecidos sítios do Mioceno (23-5 milhões de anos atrás) brasileiro. Encontramos quelas de caranguejos, fragmentos de ossos, osteodermos de jacarés, vertebras de peixes e um dente que o professor Edson Guilherme, da UFAC, gentilmente identificou como sendo provavelmente de um Gryposuchus, espécie que ele mesmo já encontrou ali.
O melhor achado do dia é um imenso parente dos jacarés e crocodilos e primo próximo do Gavial do sul da Ásia.


Os Gaviais (ou Gavialidade) são um grupo de crocodilomorfos primos dos crocodilos verdadeiros e parentes distantes dos jacarés e aligators. Sua característica mais óbvia é o rostro muito alongado e com muitos dentes como o que encontrei.
O grupo provavelmente surgiu no final do Cretáceo (entre 72 e 66 milhões de anos atrás) quando os dinossauros ainda dominavam os ecossistemas terrestres e mosassauros (parentes do dragão de komodo) eram os reis dos mares. A extinção pós impacto do asteroide e a boa sorte dos Gaviais permitiu a diversificação do grupo no novo mundo que surgiu, com várias espécies descritas de antigos manguezais e ambientes costeiros da Europa e norte da África.
Gaviais colonizaram a América cruzando um Atlântico que era mais estreito. Um gavial fóssil de Porto Rico datando de 26-29 milhões de anos atrás mostra uma etapa dessa colonização, possível pelos gaviais ancestrais habitarem ambientes litorâneos e apenas mais tarde colonizarem rios e lagos. Gaviais costeiro-marinhos continuaram a existir por um longo tempo. Fósseis do litoral do Peru de 19-5 milhões de anos atrás representam a mais recente, de muitas, radiações adaptativas de crocodilomorfos marinhos, assim como uma espécie muito mais recente das Ilhas Salomão (já chego lá).
Na América do Sul os gaviais se diversificaram no litoral e nos lagos e pântanos do interior. E eram gigantescos. O Piscogavialis do litoral peruano tinha 7,7 m e o Gryposuchus croizati da Venezuela estimados 10,15 m e 1,7 tonelada. Um gigante em um ecossistema com jacarés de 12 m (o famoso Purussaurus), tracajás de 2,5 m, pacaranas do tamanho de um búfalo, megapiranhas, pirarucus e outros monstros.
O dente que encontrei pode ser de um Gryposuchus jessei, descrito de restos encontrados no rio Pauini, no Amazonas e uma de 5 espécies conhecidas. Há outros gaviais do Mioceno-Plioceno da Amazônia brasileira dos gêneros Hesperogavialis e Ikanogavialis já descritos e outros ainda a descobrir, já que há fragmentos do litoral do Pará, Maranhão e Piauí.
A elevação dos Andes e mudanças associadas, como o fechamento do Istmo do Panamá e mais águas antárticas chegando ao litoral do Pacífico, alteraram profundamente a América do Sul e eliminou os habitats onde os gaviais que fizeram a América prosperaram. No Velho Mundo, a deriva continental e mudanças climáticas eliminaram os litorais rasos e de águas quentes da Europa (onde gaviais viveram em Portugal) e norte da África.
Restaram os gaviais da Australásia, com várias espécies extintas de lugares que vão de Java a Taiwan e Japão, os últimos bichos enormes que chegavam a uns 7 m, eram capazes de viver em latitudes temperadas e viveram até uns 400 mil anos atrás.
Dentre as espécies vivas, o mais conhecido é o Gavial Indiano (ou melhor, Gharial), que já foi abundante nas bacias do Indus no Paquistão, passando pelo Ganges e Brahmaputra na Índia e Bangladesh, até o Irrawaddy em Myanmar.
Seu rostro longo e cheio de dentes serve para capturar os peixes que são a presa padrão desses bichos especializados. Que também são os mais aquáticos entre os crocs vivos e têm limitada capacidade de se deslocar em terra, ao contrário de alguns crocodilos e jacarés que são semi-terrestres.
Na década de 1970 estes bichos incríveis ocupavam apenas 2% de sua distribuição original e estimava-se que havia menos de 200 exemplares.


As causas são as de sempre: humanos matando os adultos de forma deliberada ou pelo afogamento acidental em redes de pesca, e eliminando a nova geração coletando os ovos dos ninhos. Some-se a isso a competição pelos peixes e a retirada de areia das praias onde os ninhos são construídos.
A criação de Unidades de Conservação onde atividades humanas são restritas – a grande razão de tantas espécies não terem sido extintas – programas de head-start e a reintrodução de exemplares de cativeiro têm melhorado a situação da espécie, embora a contribuição das reintroduções continue limitada devido à mortalidade causada por humanos (redes de pesca e caçadores).
Há ainda um longo caminho a percorrer para que estes bichos magníficos estejam seguros.
Gharials estão entre os maiores répteis vivos. Os machos atingem a maturidade sexual com 3 m e podem chegar a 6 m, com registros não confirmados de 6,55 m. Esbeltos, um macho com 4,9 m pesa 560 kg, menos do que um crocodilo do mesmo tamanho. Fêmeas são menores e chegam até 4,5 m, tornando-se sexualmente maduras com 2,6 m.
A diferença dos sexos tanto em tamanho como em morfologia (machos têm uma protuberância no focinho – o ghar – que funciona como câmara de ressonância para suas vocalizações) estão associadas a uma organização social sofisticada.
Gharials vivem em grupos de fêmeas e imaturos guardadas por um macho dominante. As fêmeas constroem ninhos escavando buracos nos bancos de areia nas margens dos rios e os abrem para permitir que os filhotes saiam (sem isso eles morrem), cheguem à água e se juntem a creches que são guardadas tanto pelas fêmeas e pelo macho dominante.
Primo do Gharial e muito menos conhecido, o Gavial da Malásia, Gavial-falso, Buaya Sepit (crocodilo-beliscão), Buaya Sumpit (crocodilo-hashi) ou Tomistoma. Outra criatura espetacular, o Tomistoma chega a mais de 5 m e 600 kg (os machos) e 4 m e 210 kg (as fêmeas), e são bem diferentes de seu primo.
Tomistomas vivem em rios e lagos das florestas pantanosas das terras baixas da Península Malaia, Sumatra e Bornéu. Originalmente existiam também na Tailândia, Vietnã e Java, mas a história de perseguição humana tornou o Tomistoma mais uma das muitas espécies Em Perigo.
Enquanto o Gharial é um especialista em peixes e não oferece grandes riscos a humanos, o Tomistoma tem uma dieta muito mais ampla e, além de peixes, há registros dos adultos comerem aves, macacos, veados e o ocasional humano. O tipo de conflito que piora com populações crescentes de pessoas pescando em áreas naturais cada vez menores.
Humanos e gaviais têm uma relação historicamente ruim e os gaviais sempre levaram a pior. O quão pior foi revelado com a descrição de um pequeno (2-3 m) gavial que vivia em ambientes costeiros nas Ilhas Salomão e foi extinto após a colonização humana daquelas ilhas, e de uma espécie chinesa descrita apenas em 2022.
O Hanyusuchus era morfologicamente intermediário entre o Tomistoma e o Gharial. Com pelo menos 5 m, vivia no sul da China (Fujian, Guangdong, Guangxi e Hainan) e foi finalmente extinto 500 anos atrás após uma longa guerra de extermínio e destruição de seu habitat. Crânios decepados datando da Idade do Bronze e registros históricos mostram o ódio cantonês contra uma criatura descrita como um predador enorme que atacava gado e pessoas.
Se não fossem os restos em sítios arqueológicos, esta seria mais uma criatura lendária entre tantas que humanos levaram à extinção e depois esqueceram.
Um lugar clássico para observar Gharials e ter um vislumbre dos tempos em que estas criaturas impressionantes e seus primos dominavam rios e pântanos pelo mundo é o rio Chambal na Índia, um dos santuários criados para conservar a espécie. Gharials gostam de rios com águas claras, canais profundos e boa correnteza que formam praias arenosas e isso o Chambal têm em abundância.
Passeando de barco e com o devido respeito para não incomodar os donos do rio é possível se aproximar de grupos de fêmeas acompanhadas pelo macho que é o mestre daquele trecho do rio. A navegação é ainda mais interessante pela possibilidade de encontrar Crocodilos-persas (ou Mugger), que cedem as praias para os Gharials e ficam nas pedras expostas no meio do rio, e Golfinhos-do-Ganges, um dos cetáceos mais bizarros.
Encontrar grupos de Gharials socializando nas praias do Chambal faz pensar como seriam rios de águas claras como o Tapajós e o Xingu com grupos destes dragões-família tomando sol nas suas margens.
Um crocodilo na prateleira
Em 1998 eu trabalhava em Porto Velho e, caminhando pelo centro, passei pelo edifício da Universidade Federal de Rondônia. Atrás da porta de vidro trancada (as federais estavam em greve) vi uma prateleira com algo estranho e ao me aproximar notei que era um crânio de crocodilo com sinais de ter passado muito tempo enterrado.
O que um crocodilo fazia em um prédio trancado em Rondônia foi esclarecido anos mais tarde com a publicação da tese de doutorado de Daniel Fortier, que estudou o crânio e o identificou como uma espécie até então desconhecida, Crocodylus caiari.
O Caiari (o nome indígena do rio Madeira) foi desenterrado em um garimpo em Nova Mamoré, Rondônia, nos sedimentos da Formação Rio Madeira. Esta foi depositada em um ambiente tropical de rios com meandros e planícies de inundação cortando um mosaico de florestas e pantanais, talvez similar ao que se vê hoje nos pantanais do Beni, na Bolívia, e ao longo do rio Guaporé como na reserva biológica homônima, ainda em Rondônia.
Madeira depositada abaixo da camada onde os fósseis da Formação Madeira são encontrados geraram idades de 46.310 e 21.310 anos, sugerindo que o Caiari (e outros bichos encontrados com ele) e bichos incluindo peixes-bois, botos e espécies clássicas da megafauna como mastodontes, preguiças gigantes, toxodons e cia são mais recentes.


Um cágado gigante da mesma formação foi datado diretamente como tendo entre 14.290 e 9.060 anos, mas há incertezas devido à presença de minerais que dificultam a análise. Se as datas mais recentes se confirmarem, este cágado, e talvez o Caiari, pode ter sido contemporâneo dos primeiros humanos na Amazônia. Mas só saberemos com mais datações diretas.
O crânio do Caiari tem 58 cm, correspondendo a um crocodilo com respeitáveis 4 m de comprimento. Ele lembra os atuais Crocodilo Americano e, principalmente, o Crocodilo do Orinoco. Esta espécie muito ameaçada de extinção, que chegava a 6,8 m, é encontrada em poucos lugares da Venezuela e Colômbia em ambientes que lembram nosso Pantanal e o da Bolívia.
Apesar das semelhanças, o Caiari tem focinho e dentes mais robustos, sugerindo que lidava com presas mais fortes que os peixes que são a preferência do Orinoco.
Sempre se pensou que crocodilos verdadeiros nunca tivessem existido na Amazônia brasileira, mas a descoberta do Caiari mudou isso. É intrigante pensar que não muito tempo atrás havia um crocodilo de verdade coexistindo com as quatro espécies de jacarés que ainda vivem no rio Madeira e seus afluentes. E o que teria causado seu desaparecimento.
Talvez os arqueólogos e paleontólogos que estão descobrindo e escavando sítios no Beni e na bacia do rio Madeira possam adicionar peças – como dentes e ossos – a esta história.
Os reis dos rios fazem falta
Se a extinção do Caiari é um mistério, o que eliminou crocodilos, gaviais e jacarés no mundo de hoje é bem conhecido. Há muitos registros de imensos jacarés-açu (que podem passar de 5 m e meia tonelada) serem abundantes como “girinos em uma poça de água” na Amazônia do século 19 e início do século 20. Essa espécie sofreu uma guerra de extermínio em lugares como as ilhas de Marajó e Mexiana por comerem o gado ali introduzido e pela crendice que comeriam peixe demais. E, em toda a Amazônia, para alimentar o comércio de peles que explodiu em 1935- 1946 e na década de 1960.
Em Tabatinga (Amazonas) conheci um sujeito que dizia ter contrabandeado mais de 50 mil peles de jacarés-açu para a vizinha Letícia, na Colômbia, durante os anos 1970. O que só acabou por falta de jacarés, mudanças na moda e adesão de países à CITES.


Rio acima de onde o Caiari foi descoberto, nos pantanais inundados pelo rio Guaporé, a Reserva Biológica do Guaporé sofre a destruição causada por milhares de búfalos introduzidos, resultado de décadas de enrolação por autoridades ambientais que são muito boas em produzir papel e realizar eventos e muito ruins em fazer algo prático.
Isso me lembra que os australianos tiveram o mesmo problema em ambientes bem similares no norte do país com manadas de búfalos (e porcos) ferais causando estragos e demandando controle que incluiu atiradores a bordo de helicópteros.
Acontece que a mesma região também é habitada pelo Crocodilo de Água Salgada ou Saltie, que foi levado à quase extinção pela caça comercial na mesma época em que matávamos nossos Açus em escala industrial.
A proibição da caça na década de 1960 permitiu que a população de Salties se recuperasse de 1.000 indivíduos para uns 100 mil, com sua biomassa saltando de 10 para 400 kg/km2.
E, algo muito importante, indivíduos ficaram velhos o suficiente para atingir seu potencial de tamanho (um Saltie adulto passa de 5 m), se tornarem muito mais robustos que os jovenzinhos e ter o armamento para caçar presas grandes.
As consequências da maturidade crocodiliana? Se no fim da década de 1970 uns 65% da dieta dos crocodilos era de peixes, em 2019 passou para 70% de búfalos e porcos ferais, com o ocasional canguru fechando a conta.
O resultado é a redução nas populações dos búfalos e porcos exóticos e invasoras, crocodilos transferindo volume significativo de nutrientes do ecossistema terrestre para o aquático e mais uma evidência que ecossistemas diversos e com todas suas peças – especialmente predadores de topo – têm maior capacidade de mastigar, digerir e controlar invasões biológicas.
Já visitei o rio Guaporé em Rondônia muitas vezes. Jacarés-açu não são nem abundantes nem têm muita chance de chegar ao tamanho que deveriam. Tiros e redes impedem que isso aconteça.
Pode-se imaginar que se os Açus do Guaporé se recuperassem, como aconteceu com os Salties, os búfalos que são problema ambiental teriam o mesmo destino dos seus primos australianos. Mais uma peça integrada ao neo-ecossistema do Antropoceno.
As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.
Leia também

Um tracajá de 2,40 metros: conheça a maior tartaruga que já existiu
Há 9 milhões de anos, animal habitava o pantanal Pebas, antigo ecossistema conhecido dos paleontólogo como uma terra de gigantes →

O “tiranossauro” brasileiro
O maior jacaré que existiu viveu no Acre há 10 milhões de anos. Com 12,5 m e 8,5 ton, o purussauro era tão assustador quanto os mais temido dos dinossauros →

O maior crocodilo que existiu era baiano
Contemporâneo dos dinossauros, o Sarcosuchus alcançava 11,5 metros do focinho à cauda. Conheça mais sobre o crocodilo que viveu no que são hoje o Nordeste brasileiro e o Saara ocidental →