Todos nós precisamos de princípios que irão nortear nossas escolhas, nossos valores, nossas ações e nosso entendimento de mundo. Dois dos princípios mais relevantes à sociedade, o da prevenção e o da precaução, visam garantir proteção a tudo que é valioso e sensível ao nosso redor. O princípio da prevenção, fortemente baseado no conhecimento, prediz que é necessário tomarmos ações preventivas quando, com base nas informações geradas por estudos e pesquisas, é possível prever eventos de grave risco. Não podemos armazenar produtos inflamáveis sem tomarmos ações preventivas. Não devemos dirigir com crianças menores sem que as mesmas estejam devidamente seguras em cadeiras infantis que previnam lesões graves em casos de acidente. Sabemos que acidentes são riscos potenciais e que cadeiras infantis previnem a morte de crianças. Com isso, devemos ser prevenidos.
O princípio da precaução, por outro lado, lida com a ausência de conhecimento sobre riscos potenciais associados a determinadas atividades. Se não sabemos o resultado de uma determinada ação possivelmente perigosa, devemos, por precaução, não tomar essa ação. Se não sabemos se uma determinada planta desconhecida é tóxica, devemos ser precavidos e não ingerir seus frutos. Sabemos que diversas plantas são tóxicas e que, na possibilidade da planta desconhecida em sua mão também o ser, é melhor ser precavido.
O princípio da precaução é um dos princípios basilares do Direito Ambiental, visto que o patrimônio natural é um bem coletivo e essencial à vida humana. Desta forma, se existe possibilidade de que uma ação possa causar algum dano a esse patrimônio, mesmo que não saibamos a priori se algum dano será ou não causado, não devemos correr riscos. No caso do princípio da precaução aplicado à proteção do patrimônio natural, toda incerteza científica deve ser usada em favor da conservação da natureza, exceto quando existam urgências graves, evidentes e com prejuízos prementes à vida. A precaução é sempre necessária quando a nossa ignorância sobre a natureza pode colocar em risco espécies, ecossistemas e a biodiversidade.
Em 10 de outubro de 2020 foi decidido o lançamento, com o uso de aeronaves, de retardantes de chamas sobre os poucos focos de fogo que ainda teimavam em resistir ao trabalho dedicado dos brigadistas, voluntários, bombeiros, analistas ambientais e demais membros da equipe de combate a incêndios na Chapada dos Veadeiros. Consta que a decisão de realizar o lançamento do produto retardante, FL-02 da empresa Fire Limit, foi tomada diretamente pelo atual Ministro do Meio Ambiente, buscando mostrar sua presença na “linha de frente” do combate ao fogo. Esse interesse súbito com o fogo na Chapada dos Veadeiros aconteceu poucos dias após a comissão temporária externa do Senado Federal, criada para acompanhar ações de enfrentamento aos incêndios no Pantanal, aprovar convite para que o Sr. Ricardo Salles apresentasse ontem, 13 de outubro, informações sobre as medidas adotadas pelo governo para a contenção e prevenção das queimadas naquele bioma. Tal interesse repentino em mostrar serviço contrasta com os cortes brutais nas verbas para a contratação de brigadistas, a queda nas notificações e multas referentes ao controle de queimadas e com o atraso na tomada de ações de combate aos incêndios na Amazônia e Pantanal. A restrição no suporte institucional tornou necessária a intervenção, por parte de diversos apoiadores, na sensibilização da sociedade e recolhimento de doações, para apoiarem brigadistas, bombeiros e voluntários no combate, nesse caso, verdadeiramente na linha de frente do fogo na Chapada dos Veadeiros.
O lançamento do produto na linha de fogo que, ironicamente, estava na região do Morro do Ministro, causou diversos questionamentos por parte da comunidade, além de manifestações contrárias à presença do Sr. Salles na região. Infelizmente, o Ministro de Governo não demonstrou o comportamento esperado de um Ministro de Estado e respondeu que a opinião de meia dúzia de “maconheiros” não tem relevância, usando, para tanto, notas de divulgação emitidas pelo próprio Ministério do Meio Ambiente, o qual é mantido graças aos impostos pagos por todos os brasileiros, incluindo mesmo aqueles que não gozam do apreço pessoal do Sr. Ministro. Um servidor público nomeado como Ministro de Estado deve servir ao público, não apenas aos seus apoiadores, servir ao Estado e não ao Governo.
Avaliando os documentos técnicos disponíveis no link da empresa Fire Limit e documentos feitos pelo próprio IBAMA (Parecer Técnico nº 514/2018-COASP/CGASQ/DIQUA), percebemos que o produto FL-02, de base nitrogenada, sem metais pesados ou halógenos na sua composição, tem apresentado baixa toxicidade ao peixe zebra ou paulistinha (Danio rerio), sobre minhocas ou sobre micro-crustáceos de água-doce (Daphynia sp.). Além disso, também possui persistência muito reduzida no ambiente e pode, a despeito do preço, vir a se tornar uma importante ferramenta de combate aos incêndios florestais. Essa é uma excelente perspectiva que deve ser mais investigada para que as lacunas de informação existentes sobre o produto, bem como sua ação sobre o meio ambiente, não coloquem em risco os elementos da biodiversidade nacional e permitam o seu pleno uso como ferramenta de combate. Os técnicos do IBAMA que avaliaram o material disponível sobre o produto e contataram a empresa são taxativos em mostrar que ainda existem lacunas de informação e demonstram preocupação quanto ao seu uso sobre recursos hídricos e em áreas habitadas. Nada mais justo, legítimo e correto sermos precavidos diante da ausência de informação sobre impactos na natureza — e o parecer técnico é uma peça de excelente qualidade.
Tal cautela decorre porque, a despeito do baixo efeito sobre os organismos avaliados nos testes de toxicidade, o produto nitrogenado pode possuir efeito fertilizante, atuando diretamente em gramíneas e leguminosas, justamente plantas de estrato herbáceo que possuem forte efeito sobre a intensidade, velocidade e frequência de fogo. Também não é negligenciável o risco de eutrofização de pequenos riachos de cabeceira, onde há diversas espécies de vertebrados endêmicos na região. Além disso, a gestão de Unidades de Conservação não é responsabilidade do IBAMA, mas do ICMBio, e desconheço normas, regulamentos, notas ou processos, atuais ou pretéritos, discutindo tecnicamente o uso de produtos químicos em Unidades de Conservação de Proteção Integral. É sempre bom ressaltar que tais áreas possuem garantias constitucionais e adequadas de proteção por parte do Estado Brasileiro.
Desta forma, imagino que exista algum Processo interno, negociado entre MMA, IBAMA e ICMBio, acertando o uso dessa categoria de produtos em Unidades de Conservação, apresentando pareceres consubstancializados que demonstrem, de forma evidente e inequívoca, os estudos conclusivos realizados e a urgência que justifiquem o uso emergencial desses produtos, bem como elencando e esclarecendo em detalhes quais seriam os benefícios desse uso e os eventuais prejuízos em sua não adoção. Tal rito, relevante para estabelecer uma relação republicana entre os órgãos responsáveis pela execução da política ambiental no Brasil, garante a harmonia entre as instituições e fortalece a aplicação dessa política. Pela legislação atual, tomando como base tanto a Constituição como a lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, é incumbido ao poder público controlar o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente, bem como a restrição a atividades em desacordo com os objetivos das Unidades de Conservação. É justamente numa relação equilibrada e com maior independência entre as autarquias, que a observação à legislação e o amadurecimento das instituições é mantido, garantindo menor ingerência política em temas técnicos e legais. A gestão pública possui normas e procedimentos que visam justamente assegurar maior transparência e responsabilidade no uso da coisa pública, preciosa a todos.
No entanto, mesmo com tal documentação disponível, acho difícil imaginar que argumentos foram usados para demonstrar a inequívoca urgência de uso de tal produto sobre focos e linhas de fogo já isoladas, já no início do período chuvoso, e com mais de 50 mil hectares de atraso, como foi o caso do incêndio no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Mais estranho ainda, é pensar porque tal categoria de produto não foi usado em incêndios em biomas florestais, como a Amazônia, muito menos resiliente ao fogo, que o bioma Cerrado.
Infelizmente, a independência técnica e discricionária dos servidores não parece ser encarada de forma muito positiva atualmente no Ministério do Meio Ambiente e suas autarquias. A resistência quanto ao uso não regulamentado de retardantes de fogo já custou a exoneração do Coordenador Nacional do PrevFogo/IBAMA, cargo máximo do centro, apenas alguns meses após sua nomeação. Aparentemente, o Ministro de Governo está decidido a usar de forma pouco previdente os retardantes de chama, tendo inclusive determinado na Chapada a aplicação de mil litros de água contendo 14% do produto FL-02.
O que fica evidente é o uso, sem critérios claros, de retardantes de fogo em uma Unidade de Conservação de Proteção Integral icônica do Cerrado e do Brasil. O uso de um produto de efeitos ainda pouco conhecidos sobre o meio ambiente, mesmo que putativamente mínimos, à revelia de estudos sobre seus impactos, fere a precaução necessária à gestão das Unidades de Conservação. O vídeo da atuação do Sr. Ministro na Chapada dos Veadeiros, uma clara peça de propaganda, retrata um envolvimento com o meio ambiente pouco sincero, alguns simulacros de proatividade, além de alguns segundos de comercial gratuito para o produto. O mercado para esse produto é enorme e, caso seja aprovado pelo Ministério do Meio Ambiente, pode representar um negócio milionário. Apesar do potencial do produto ser, após avaliações criteriosas, uma importante ferramenta de manejo e controle do fogo, não parece ter sido esse o caso, pois não há, como dito anteriormente, estudos que comprovem a segurança no seu uso, a sua eficiência no combate, nem divulgação transparente dos processos internos que levaram à escolha do produto e do fornecedor, mesmo havendo parecer do Corpo de Bombeiros Militares do Distrito Federal (Memorando SEI-GDF Nº 1328/2018 – CBMDF/DIMAT/SEPEC), sugerindo que o produto LS – 02 não deva ser adquirido por ser antieconômico, pelo menos para essa instituição.
Ao contrário do que alguns podem pensar, a opinião da população local tem relevância. E muita, especialmente porque a Constituição impõe também à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente. Ainda vivemos em um Estado democrático, somos partes do mesmo País e queremos um país para todos. O insulto preconceituoso, infantil e ignorante do Sr. Ricardo à população, através de notas institucionais, me lembrou uma frase atribuída a um famoso pensador, muito reformador e progressista, torturado e morto pelo Governo Militarizado então no poder e cujo estilo de vida e aparência circunstancial certamente despertariam comentários racistas, preconceituosos, agressivos e intolerantes em diversos “cidadãos de bem”. Esse pensador disse que “O que contamina o homem não é o que entra na boca, mas o que sai da boca, isso é o que contamina o homem”. O que sai da boca, precede do coração e informa que sentimentos o povoam.
Certamente é importante procedermos a estudos sobre novas ferramentas de controle, manejo e combate a incêndios. Certamente é necessário fazer ensaios laboratoriais com tais produtos usando outros grupos de organismos, bem como eventuais ensaios em campo, em condições controladas. Eu, particularmente, acredito que retardantes de fogo, de base nitrogenada, de baixas toxidade e permanência no ambiente, podem ser relevantes no combate a incêndios na vegetação, considerando situações e condições específicas, circunstancialmente aumentando a eficiência do combate aéreo. No entanto, tais produtos não melhoram a capacidade de resposta dos órgãos ambientais e não substituem, nem substituirão, a necessidade de brigadistas em campo. Mesmo existindo no mercado há muitos anos, os técnicos do IBAMA e ICMBio nunca demandaram a regulamentação, o teste e a aplicação formal desses produtos porque entendem que tais produtos são coadjuvantes no combate. Dizer que a resistência ao uso de tais substância é apenas uma oposição “ideológica” ao uso de tecnologia é uma crítica rasa e falaciosa, desviando a atenção sobre a necessidade de maior responsabilidade e respeito pela biodiversidade por aqueles que deveriam ter esse respeito como norte de atuação. Como ideais e ideologias são comuns a todos, em qualquer espectro político, dizer que toda oposição é ideológica não quer dizer absolutamente nada.
Que tenhamos todos muita precaução com atos possivelmente danosos ao meio ambiente no futuro.
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O Minc pelo menos era divertido quando aparecia na Chapada de colete!!!