De Maísa Guapyassú
Senhor Editor
Há 25 atrás, em setembro, morria oficialmente o Parque Nacional de Sete Quedas, quando no dia 19 o Parque foi fechado. Dia 29 do mesmo mês, um decreto-lei proibia a visitação ao Parque, intensificada diante da notícia do seu desaparecimento.
Em 13 de outubro de 1982, as comportas do canal de desvio foram fechadas e começou a ser formado o reservatório da Usina de Itaipu. Em novembro, com o enchimento do lago principal da represa, o complexo de cachoeiras desapareceu. Restou alguma coisa a ser vista, e as pessoas continuaram indo ao local que abrigava o Parque. Em janeiro de 1983, uma passarela que não sofria mais manutenção, situada sobre o salto 14, desabou, jogando dentro da massa de água e matando as 32 pessoas que estavam sobre ela, na intenção de desfrutar a última visão do local. E ironicamente, acabou sendo a última visão que essas pessoas tiveram.
Isso tudo aconteceu na época da ditadura. Tínhamos todas as desculpas do mundo para não fazer nada, afinal era ditadura militar, que já vinha provando sua truculência há quase duas décadas.
Mas hoje estamos em outra era. Pelo menos dizem, e a maioria acha que sim. Mas os parques nacionais brasileiros, reservas biológicas e estações ecológicas estão sendo insidiosamente destruídos, e estarão condenados ao mesmo destino de Sete Quedas.
Ao menos naquela época, se assumiu abertamente que o Parque seria destruído.
Hoje, sob inúmeras desculpas e discursos populistas, o patrimônio natural público desse país está sendo submerso deliberada e continuadamente, pelo desvio de conduta daqueles que deveriam protegê-lo, que são pagos para isso com dinheiro retirado do bolso dos cidadãos. Por aqueles que a população elegeu para defender os interesses do país, dessa e das futuras gerações.
Mais uma vez, as unidades de conservação de proteção integral desse país são reféns de políticos mal-intencionados ou ignorantes do valor que elas têm para a manutenção da vida nesse planeta. Mais uma vez são reféns de discursos sociais equivocados – em que se tenta resolver problemas crônicos de pobreza à custa das nossas unidades de conservação – basta ver toda a “discurseira” que transforma iniciativas de conservação estrita em radicalismo, propositalmente ignorando que não existe preocupação social maior, ou suprema, como a de preservar áreas naturais para desfrute de gerações futuras e de espécies outras que não a humana… Basta ver a proliferação de “unidades de conservação de uso sustentável” que na realidade não passam de desculpas de se exterminar a natureza um pouco mais lentamente. Muitas dessas unidades, como é o caso das reservas extrativistas, partem do pressuposto que a população ali existente não vai crescer; as famílias vão permanecer do mesmo tamanho, usando a mesma quantidade de recursos, e que o mercado para esses recursos não vai sofrer alterações, podendo ser mantidos o mesmo regime de exploração dos recursos em termos de qualidade e quantidade, e pior ainda, partindo do pressuposto que essas populações queiram para sempre manter seus modos de vida, que não queiram ter acesso a todos os bens e serviços que todo o restante da sociedade tem e acha justo. Enfim, quem acaba ganhando com esse tipo de unidade são os políticos que as apóiam e aqueles que as estudam e pesquisam – afinal, que seria desses sem o seu objeto de estudo?
Num país em que se acha normal, corriqueiro e justificável remover cidades para construção de barragens, ou para transposição de rios, ou para construção e ampliação de estradas, não é de se estranhar que se proteste quando se precise remover pessoas para criar um parque ou reserva biológica, também empreendimentos públicos, também empreendimentos que vão trazer benefícios para a sociedade, que vão trazer benefícios ambientais, e para a vida no planeta. Afinal, bicho e planta não votam. Afinal, não envolvem obra faraônicas, não envolvem empreiteiras, não se pode superfaturar para alimentar caixas-dois de campanhas, nem pagar por baixo do pano pensões para sustentar amantes ou filhos ilícitos. Nem o dinheiro que seria movimentado com as indenizações para o realocamento de eventuais moradores atrai: é melhor deixá-los lá, reclamando, à míngua, até que alguém os defenda atacando não a estrutura corrupta e em apodrecimento do poder público, mas a unidade de conservação de proteção integral, a grande culpada das mazelas sociais desse país.
Voltando a Sete Quedas, fico antevendo quantos mais parques seguirão destino semelhante. Expresso aqui o meu luto, o meu pesar pela sua morte. E mais ainda, por ter submergido no esquecimento da maioria dos brasileiros. E tomo emprestado o trecho final de um poema Adeus a Sete Quedas, do Drummond, que com sua alma de poeta consegui expressar um pouco a dor da minha alma.
“Vinde povos estranhos, vinde irmãos
Brasileiros de todos os semblantes
Vinde ver e guardar
Não mais a obra de arte natural
Hoje cartão postal a cores, melancólico
Mas seu espectro ainda rorejante
De irisadas pérolas de espuma e raiva, passando, circunvoando
Entre pontes pênseis destruídas.
E o inútil pranto das coisas,
Sem acordar nenhum remorso, nenhuma culpa ardente e confessada,
(“Assumimos a responsabilidade!
Estamos construindo um Brasil grande!”)
E patati patatá…
Sete quedas por nós passaram
E não soubemos, não soubemos amá-las.
E todas sete foram mortas
E todas sete somem no ar.
Sete fantasmas, sete crimes
Dos vivos golpeando a vida
Que nunca mais renascerá”.
Carlos Drummond de Andrade, Adeus a Sete Quedas.
Leia também
Entrando no Clima#36 – Primeira semana de negociações chega ao fim
Podcast de ((o))eco escuta representantes de povos tradicionais sobre o que esperam da COP29 e a repercussão das falas polêmicas do governador Helder Barbalho. →
COP29 caminha para ser a 2ª maior na história das Conferências
Cerca de 66 mil pessoas estão credenciadas para Cúpula do Clima de Baku, sendo 1.773 lobistas do petróleo. Especialistas pedem mudança nas regras →
Entrando no Clima#35 – Não há glamour nas Conferências do Clima, só (muito) trabalho
Podcast de ((o))eco conversa com especialistas em clima sobre balanço da primeira semana da COP 29 →
Mas existe algumas controvérsias em seu texto, se as comportas fecharam em 1982, como que a ponte caiu em 1983? O salto 14 era o último salto e a ponte caiu no salto 19 e mais uma observação, os seres vivos sofrem, as passarelas não.
Excelente texto Maísa, sua indignação é a mesma de boa parte dos brasileiros também e é claro que podemos mudar tudo isso sim, basta cada um fazer a sua parte por que … aquele ditado que diz, " Uma andorinha só não faz verão" tem um fundo de verdade, então façamos o verão para que as andorinhas apareçam, se Maomé não vai a montanha, então que a montanha venha até Maomé! Abraços.