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Bons modos para a vida citadina

As aparências enganam. Mas Cambridge, famosa cidade universitária inglesa, ensina que, por mais que nem tudo esteja perfeito, a sustentabilidade deve caminhar junto com o conceito de civilidade.

Andreia Fanzeres ·
13 de maio de 2009 · 16 anos atrás
Regras da construção civil estimulam janelas amplas, mas ainda não incentivam uso de painéis solares para aquecimento de água. (Foto: Andreia Fanzeres)
Regras da construção civil estimulam janelas amplas, mas ainda não incentivam uso de painéis solares para aquecimento de água. (Foto: Andreia Fanzeres)

Faça você este teste. Experimente parar em um lugar qualquer na sua cidade e observar nos 360 graus ao seu redor como as coisas funcionam. Por alguns minutos. E pense em tudo que você já ouviu falar sobre cidades sustentáveis, aquelas que impactam pouco o meio ambiente e melhoram a qualidade da sua vida. Se achar que este tipo de lugar existe no Brasil, o leitor está convidado a expor esta experiência aqui em nossas páginas, com muito prazer.

Até colocar os pés na cidadezinha inglesa de Cambridge eu achava que lugares assim não existissem. Mas minha percepção mudou nas primeiras duas semanas de deslumbramento, em que tudo parecia perfeito demais para ser verdade. E não era. Ainda que aparências enganem e aos poucos as imperfeições daqui também se revelem, cidades como esta ensinam, nesses breves minutos de observação, que se um dia sustentabilidade se confundisse com civilidade metade dos nossos problemas estariam resolvidos.

Na famosa cidade universitária, que nesta primavera experimenta longas semanas ensolaradas como raramente se viu, muita gente corre para os gramados e jardins para aproveitar o calor do dia, claro até oito e meia da noite. No asfalto, turistas de todas as partes do mundo dividem espaço para fotografar os prédios históricos. Mas se você fechar os olhos, vai escutar pouco ou quase nada. Ou apenas o barulho dos sapatos dos transeuntes. O silêncio, tão exigido nas mais de cem bibliotecas desta cidade de 120 mil habitantes, é costumeiro também em lugares abertos. É difícil encontrar alguém falando alto. E a vontade de dar um grito para quebrar a monotonia às vezes é latente. A exceção é encontrar nas esquinas algum artista tocando sua música no violão, na guitarra ou no violino em ritmos pacíficos e fazendo o movimento parar por alguns instantes. Na verdade, os sons mais comuns em Cambridge, pelo menos nesta época do ano, são dos cortadores de grama e dos sinos que badalam a cada hora.

Não há rua que não tenha sinalização. Os semáforos contam com avisos sonoros acionáveis pelos pedestres e todas as esquinas têm rampas para permitir a circulação segura de quem precisa ou não de cuidados especiais. Ciclistas são tão ou mais importantes dos que veículos motores. Eles têm estacionamento próprio em praticamente todos os prédios da cidade, e precisam seguir o fluxo do trânsito (inclusive parando quando o sinal fecha), junto aos ônibus e carros, indicando com os braços se querem virar em alguma rua. Capacetes, luzes nas bicicletas e faixas florescentes amarradas aos tornozelos ajudam os ciclistas a serem vistos nas principais vias. Filas duplas de carros na entrada e na saída de colégios são algo que não se encontra. Em vez disso, dezenas de pais acompanham em suas magrelas o pedalar de seus filhos a caminho da escola. O comportamento sobre o selim é tão disciplinado que parecem deter carta de habilitação.

Lições de organização

Parques espalhados por Cambridge são espaços seguros, compartilhados e também silenciosos. (Foto: Andreia Fanzeres)
Parques espalhados por Cambridge são espaços seguros, compartilhados e também silenciosos. (Foto: Andreia Fanzeres)

Lixo espalhado pelas ruas também é muitíssimo raro. Quando vi uma latinha jogada ao meio fio outro dia, a cena não durou mais do que alguns segundos. Foi até um funcionário do serviço de limpeza urbana recolher o objeto, usando, além de luvas e roupa apropriada, um longo e pontiagudo bastão para que o contato dele com o lixo fosse o menor possível. Devem ter errado a pontaria, porque basta olhar ao redor para encontrar, sem muita dificuldade, a lata de lixo mais próxima, seja apenas para descarte de plástico, latas ou material úmido. Como por aqui tudo é completamente verificável pela internet, prefeitura mantém em seu site mapas com a localização exata de cada lixeira, dias e horas em que a coleta é feita, tudo nos mínimos detalhes.

A coleta seletiva para reciclagem por aqui tem 27 anos e começou com vidro. Em 1995 outros tipos de papéis passaram a ser reaproveitados e latas de alumínio a partir de 2001. Hoje, a coleta seletiva inclui pilhas, baterias de celulares, computadores e outros aparelhos. Lidar com esse tipo de descarte ainda é um enorme desafio para o Reino Unido, que joga fora cerca de 600 milhões de baterias todos os anos. Enquanto 90% das baterias de automóveis são recicladas, a porcentagem cai para 4% nos demais casos.

Segundo Victoria Kelson, que trabalha no departamento de reciclagem da prefeitura, a quantidade de material reaproveitado cresceu de 9.3% em 1999 para cerca de 40% em 2006. Cambridge produz diariamente 124 toneladas de lixo doméstico e desse montante consegue hoje reciclar 52 toneladas. Apesar disso, o incremento anual tem sido de apenas 1% nos últimos tempos, o que inspirou a administração de Cambridge a instalar, a partir de outubro de 2009, novos tipos de latas, com rodinhas e divisórias coloridas, para que a população se sinta ainda mais incentivada a separar o lixo de casa e o que encontra na rua. A meta é reciclar 50% do lixo local até 2015.

Nas lojas e mercados, você só leva sacolinhas plásticas se pedir. A primeira reação dos vendedores é perguntar se você tem sua “eco-sacola”. E se não tiver, pode comprar em qualquer lugar. O paradoxo neste caso é observar que, enquanto existe um claro movimento para reduzir as sacolas plásticas, muita coisa continua sendo exageradamente embalada com o mesmo plástico nas prateleiras, seja para empacotar frutas em pedaços, comidas semi-prontas, doces ou biscoitos, um a um. Kelson assegura, no entanto, que em nível nacional tem havido um esforço para incentivar que os mercados reduzam o uso de embalagens, economizando recursos naturais e obviamente dinheiro do próprio estabelecimento. “Existem novas tecnologias que permitem fazer garrafas de vidro muito mais finas, mas com a mesma resistência. Eu tenho visto progressos nesse sentido”, considera a porta-voz do departamento de reciclagem de Cambridge.

Ar limpo e monitorado

Carros e bicicletas costumam se entender nos cruzamentos. (Foto: Andreia Fanzeres)
Carros e bicicletas costumam se entender nos cruzamentos. (Foto: Andreia Fanzeres)

Medidores de qualidade do ar estão espalhados pela cidade e avaliam diariamente a quantidade de dióxido de nitrogênio, monóxido de carbono e ozônio, servindo para orientar estacionamento de carros ou circulação de ônibus. Fazer este tipo de controle em cidades inglesas não é novidade desde 1956, quando mais de quarto mil pessoas morreram de infecções respiratórias em Londres por causa da densa fumaça de uma usina de carvão. Instruções e recomendações para que os moradores de Cambridge deixem de queimar lixo e adotem comportamentos cada vez menos impactantes estão descritos no site ou em dezenas de encartes distribuídos pela cidade.

Desde setembro do ano passado, Cambridge começou a implementar ações específicas para lidar com os efeitos do aquecimento global, seguindo as orientações estabelecidas para todo o Reino Unido. Ousados como as metas nacionais, os objetivos de Cambridge devem ser atingidos a partir do ano base de 2005, quando em média cada habitante era responsável por uma emissão de carbono da ordem de 6.2 toneladas. Agora, a cidade pretende reduzir as emissões em 11% até 2010, 23% até 2020, 65% até 2030 e 89% até 2050.

O reconhecimento de que não apenas Cambridge, mas as outras cidades do Reino Unido têm sim se esforçado para reduzir seu impacto no planeta é quase uma obviedade. No entanto, quem estuda em detalhes o assunto costuma dizer que até agora apenas o que era simples foi feito. Faltam as grandes mudanças, como redução dos níveis de consumo e descarte, melhoramentos ainda maiores no transporte público e incentivo em larga escala para que, por exemplo, o aquecimento das residências dependa cada vez menos de combustível importado de países como a Rússia, que nos últimos tempos tem mostrado sinais de esgotamento. Em vez disso, aproveitar a existência de regras locais muito rígidas para construção civil e fomentar a instalação de placas solares para esquentar água e produzir energia nas casas, conforme sugere Lynn Dicks, do Centro de Mitigação às Mudanças Climáticas de Cambridge.

Quando não há estacionamento próprio, ciclistas procuram a grade mais próxima. (Foto: Andreia Fanzeres)
Quando não há estacionamento próprio, ciclistas procuram a grade mais próxima. (Foto: Andreia Fanzeres)

Bastam apenas poucos anos para que o mundo comece a verificar o cumprimento das metas prometidas para não deixar que o planeta esquente mais do que dois graus Celsius até o fim do século. No entanto, como muitas cidades pelo mundo estão provando, pequenas mudanças já têm viabilidade econômica, e teriam muito mais se a conversão do modelo de desenvolvimento viesse em grande escala, como defendem pesquisadores do centro de mitigação. Começar pelo respeito às regras de convivência nas cidades não seria nada mal.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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