Reportagens

Um aterro mais do que defasado

Gramacho, inaugurado em 1976, continua em pleno funcionamento e recebe 8 mil ton. de lixo diárias do Rio de Janeiro. 

Felipe Lobo ·
25 de novembro de 2010 · 14 anos atrás

Vista geral do aterro de Gramacho (à esq) e à direita a comparação com o tamanho do maracanã (Google Earth)
Dentro de Gramacho cabem 12 maracanãs inteiros. À direita a perigosa proximidade com o aeroporto Tom Jobim (Google Earth/arte Eduardo Bernhardt) 

Rio de Janeiro – O aterro de Gramacho já foi tema de inúmeras monografias de cursos de graduação em faculdades brasileiras, livros, filmes, reportagens e até inspiração para obras de arte. Ainda assim, o principal destino do lixo que sai das casas dos cariocas vive cercado por desconfiança e impactos sociais e ambientais inquestionáveis. Sob eterno risco de deslizamento de terra e taxado de ultrapassado há muitos anos, porém, ele continua de pé e em pleno funcionamento. O Eco conversou com alguns especialistas para entender, afinal, até quando o Rio de Janeiro terá de conviver com um depósito a anos-luz de atingir as normas adequadas para receber cerca de oito mil toneladas/dia de resíduos sólidos domiciliares.

Em média, um aterro sanitário tem um período de vida útil de até três décadas. Gramacho, que sequer pode ser chamado de sanitário, já ultrapassou esta fase há, pelo menos, quatro primaveras. “Ele funciona desde 1976. A previsão é que encerre em alguns anos. Atualmente, cerca de 1.700 catadores trabalham ali, retirando perto de 200 toneladas/dia de materiais recicláveis, que movimentam um Arranjo Produtivo Local informal de mais de 50 sucateiros”, avalia Jorge Pinheiro, superintendente de Qualidade Ambiental da secretaria de Estado do Ambiente (SEA).

O risco para a saúde dos catadores, no entanto, é uma das críticas mais recorrentes em relação ao depósito situado em Duque de Caxias. Luciana Castaneda, mestranda em saúde coletiva na Universidade Federal do Rio de Janeiro, sabe bem disso. Ela faz parte de um projeto capitaneado pelo Instituto Virtual Internacional de Mudanças Globais (IVIG), da Coppe, que pretende revolucionar a destinação final do lixo em 15 capitais brasileiras com conhecimento técnico. Os recursos financeiros vêm de empresas.

Para isto, a ideia é estudar os impactos dos resíduos na saúde pública e criar usinas de incineração, além de outros meios de tratamento. Entre os resultados previstos está a transformação do metano em hidrogênio e energia elétrica, assim como a separação dos materiais através de processo mecanizado. Os catadores, unidos em cooperativas, serão treinados durante um ano e meio para realizar a tarefa. No final do processo, espera-se que não existam mais intermediários entre os catadores e as empresas, a partir de um trâmite absolutamente legalizado, com financiamento do BNDES.

“Gramacho é um aterro muito grande, então vamos começar em alguns outros lugares para depois focar lá. Por enquanto, pensamos em iniciar pelo Aterro do Morro do Céu, em Niterói, desativado após o deslizamento do morro do Bumba (em abril). Já existe uma empresa interessada em fechar acordo com a prefeitura, e o trabalho deve ser iniciado em breve”, explica Castaneda. Segundo ela, embora pouco explorado na literatura, o tópico da saúde é fundamental em qualquer análise sobre a destinação de resíduos.

“Uma pessoa que trabalha com lixo 12 horas por dia tem doenças respiratórias, de pele, dores de cabeça e náuseas. Cada lixo é de um jeito, depende da época do ano e da incidência de chuvas. Além disso, há o risco dos acidentes de trabalho. Só em Gramacho, por exemplo, cerca de 100 caminhões despejam o material ao mesmo tempo. Eles abrem as comportas e os cerca de quatro mil catadores chegam ali. Ao mesmo tempo, vem o trator para aterrar o lixo, enquanto as pessoas estão expostas. Fora os materiais perfuro-cortantes, que ficam juntos com os outros”, afirma.

Impactos ambientais recorrentes

Gramacho, além do aspecto social, também gera sérios impactos no meio ambiente. Administrado pela Comlurb, o aterro sofre riscos de desabamento, de acordo com Jorge Pinheiro, da SEA. Mas ele avisa que trata-se de um dos mais monitorados em todo o Brasil “Usa-se aparelhos (inclinômetros) que medem os movimentos do seu subsolo a fim de detectar e alertar, com seis meses de antecedência, a data em que o aterro deverá encerrar suas atividades”. A bem da verdade, isto já deveria ter acontecido há longo tempo. De acordo com Eduardo Bernhardt, da Recicloteca, em aterros de fato sanitários não existem perigos para a natureza, como o de Nova Iguaçú.

Entre os problemas causados pelo lixão de Duque de Caxias, existe contaminação do solo pelo chorume (líquido criado a partir da decomposição de resíduos orgânicos) que não é coletado, assim como emissão de metano para a atmosfera, já que nem todo o gás é armazenado. A entrada de catadores tampouco deveria ser permitida. “Além disso, um aterro sanitário deve estar em conformidade com a legislação ambiental. Gramacho fica em uma tripla área de preservação permanente: beira de rio, beira de baía e manguezal. Sem contar que está a seis quilômetros do aeroporto Tom Jobim, quando deveria ficar a, no mínimo, dez, de acordo com a resolução 004/95 do Conama, e atrai urubus, risco real à aviação civil”, assegura.

Para Bernhardt, a solução é praticar o gerenciamento integrado de resíduos, uma vez que não existe certeza técnica de que as máquinas de incineração que existem no Brasil conseguem evitar qualquer emissão de metano durante o processo de queima do lixo. Neste ínterim, um sistema que inclua reciclagem, compostagem da parte orgânica, além de educação, redução do consumo e cuidado com resíduos perigosos é o mais próximo do ideal. “É muito caro guardar o lixo. Prevenir é mais barato que remediar”, completa.

Atualmente, está em licenciamento a construção de um aterro sanitário em Seropédica. Jorge Pinheiro garante que ele terá todas as premissas necessárias para conseguir a certificação internacional para a exploração do metano. Ainda não há prazo para que ele fique pronto, mas não teve um bom início. Durante a audiência pública em Seropédica, uma confusão envolvendo um grupo organizado contrário às obras impediu que a consulta à população acontecesse. Nenhum projeto oficial foi apresentado, mas, ainda assim, a oficial de justiça presente considerou como se o processo tivesse sido realizado.

Uma vez que Gramacho seja fechado, lembra Bernhardt, é preciso que se cuide do lixo que lá ficará. A venda do gás já foi licitada, mas o monitoramento constante é essencial, inclusive porque não se pode construir mais nada no local. Um primeiro passo, porém, foi dado em julho. Entrou em vigor a lei que impõe uma série de restrições ao uso de sacolas plásticas em grandes redes comerciais. Uma boa notícia contra o congestionamento de bueiros e a poluição dos recursos hídricos no Rio de Janeiro.

  • Felipe Lobo

    Sócio da Na Boca do Lobo, especialista em comunicação, sustentabilidade e mudanças climáticas, e criador da exposição O Dia Seguinte

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