Manaus, AM — No meio do ano, nos meses de junho e julho, quando as águas do Araguaia baixam e se formam grandes praias nas suas margens, botos-cor-de-rosa encurralam cardumes no raso. Os peixes saltam, pulam para fora da água, no desespero para se salvar. “Os peixes se jogam no banco de areia e é aí que os botos se alimentam”, conta a bióloga Vera Maria Ferreira da Silva, coordenadora do coordenadora do Laboratório de Mamíferos Aquáticos do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (LUMA/Nipa).
Vera Silva estuda os mamíferos aquáticos da Amazônia há mais de trinta anos. Ela não viu esse comportamento entre os botos em nenhum outro lugar. Observou algo parecido, com os cardumes sendo encurralados em barrancos, durante a cheia. Mas igual às cenas do Araguaia, só lá mesmo. E agora, pesquisadores que atuam na Amazônia revelam que esses botos são mais exclusivos do que se podia imaginar observando apenas o comportamento.
Um artigo publicado na quarta-feira na revista científica on-line PLOS One demonstra que os botos da Bacia Hidrográfica dos rios Araguaia e Tocantins são uma espécie única, com características genéticas e morfológicas que os diferenciam de seus parentes encontrados na Bacia Amazônica.
A espécie foi batizada de Inia araguaiaensis, a terceira espécie de cor-de-rosa (ou boto vermelho) identificada no Brasil. O boto-cor-de-rosa mais comum é o Inia geoffrensis, que existe em quase toda a região. A outra é o Inia boliviensis, é encontrada na Bacia do Rio Madeira, acima da cachoeira de Teotônio, em Rondônia e na Bolívia. Nos rios da Amazônia, ocorre também uma espécie de boto cinza, o tucuxi (Sotalia fluviatilis).
O professor da Universidade Federal do Amazonas, Tomas Hrbek, autor principal do artigo e responsável pelas análises genéticas que ajudaram a descrever a nova espécie, explica que a separação entre os botos na região aconteceu há milhares de anos, quando mudanças geológicas desviaram a foz do Rio Tocantins para Leste e formaram corredeiras hoje encobertas pelo lago de Tucuruí. “Nós reconstruímos a árvore filogenética dos cetáceos e estimamos o tempo de divergência em 2,08 milhões de anos, o que coincide com a separação das bacias hidrográficas”, conta.
Hrbek conta que os botos do Araguaia e Tocantins formaram uma linhagem única, com divergências profundas com botos de outras regiões. “A gente viu que todos os botos do Araguaia cruzavam entre si, mas que não cruzavam com outras espécies”, relata. As evidências genéticas reforçam os dados obtidos a partir da medição de crânios de animais coletados na região e comparados com outros botos. Os botos do Araguaia têm menos dentes do que as outras espécies e possuem também um crânio mais largo.
Botos mortos a tiros
Em 2010, Vera Silva subiu os rios Araguaia e Tocantins para coletar animais para os estudos. No caminho, ela encontrou três botos mortos, todos com marcas de tiros. “Existe uma perseguição por parte de pescadores. Eles acham que o boto atrapalha a pesca, quando na verdade é uma atração que deveria ser explorada”, conta a bióloga. De acordo com ela, os pescadores esportivos acham que os botos competem com eles pelos peixes, durante a estação em que os rios estão baixos.
Mesmo quando não são caçados, os botos são afetados negativamente pela presença do homem. O turismo nas praias do Araguaia e as atividades agropecuárias também causam impacto nos bichos. Para os autores do artigo, a nova espécie já deve ser classificada com vulnerável, segundo os critérios da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, em inglês). “É uma espécie isolada, única e com uma pressão antrópica intensa”, conta Vera Silva. “As margens do Rio Araguaia, em Goiás e Tocantins, são tomadas por fazendas de pecuária e arroz e existem transformações nessas margens. E esses animais dependem das margens”, completa.
O artigo publicado essa semana destaca também que ainda se sabe muito pouco sobre a biodiversidade da Amazônia, um conhecimento importante para proteger a região e as espécies vivas que existem nela.
Em relação ao boto do Araguaia, as ameaças existentes demonstram que já está na hora de se fazer alguma coisa. “Reconhecendo que é uma nova espécie, é possível pensar também em uma legislação para protegê-la”, destaca Tomas Hrbek.
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