Na manhã de 29 de março, Sally foi encontrada boiando no rio Cuiabá. Sem vida e inchado, seu corpo ia boiando lentamente em direção à Bolívia, quando peões de uma fazenda local puxaram-no para a praia. Na sua nuca brilhava o vermelho de dois ferimentos à bala. Na fazenda tiraram fotos, chamaram a polícia local e esperaram as autoridades para recuperar o corpo.
A autópsia revelou que ela provavelmente foi morta no dia anterior, por um tiro de cima – e de bem perto – de um revólver calibre 38. No primeiro semestre de 2014, no Pantanal, Sally foi uma das três onças baleadas e mortas. O Pantanal é a maior área úmida tropical do mundo. Este isolado delta na parte centro-oeste do Brasil abriga a maior população de onças-pintadas do mundo: estima-se que até 11 animais por quilômetro quadrado.
A notícia logo se espalhou pelas fazendas, hotéis e pousadas que pontilham nessa região e pelas organizações conservacionistas no exterior, muitas das quais especializadas na proteção a onça-pintada. Em uma hora a onça foi identificada através de fotos tiradas em 2013 que mostravam marcas singulares no lado esquerdo do corpo. A autora das imagens foi uma turista chamada Sally, e, por isso, seu nome foi dado à onça. Em menos de uma semana surgiu uma fazenda local oferecendo uma recompensa de US $1.000 por qualquer informação relacionada à morte do animal. Á medida que a perplexidade e a desconfiança aumentavam, conservacionistas no exterior se ofereceram para colaborar. No final, a recompensa atingiu mais de US $ 2.000. Se condenado, o responsável por esse tipo de crime pode pegar até cinco anos de prisão – sem fiança – e uma multa de US $ 5.000.
Novos suspeitos
“O furor desencadeado pela descoberta do corpo de Sally foi algo novo em uma terra onde a vida de uma onça nunca valeu muito.”
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“Sempre que encontramos o corpo de uma onça, ficamos desconfiados”, disse Alexandre do Nascimento, chefe da polícia militar em Corumbá, cidade localizado na fronteira com a Bolívia e que é a porta de entrada para o Pantanal. Sua equipe está entre aquelas designadas para investigar o caso. “Se fosse um fazendeiro, teria tido o cuidado de enterrar o corpo, enquanto se fosse alguém que estivesse caçando ilegalmente, teria levado a pele.”
Na verdade, as autoridades agora se voltam para um novo tipo de suspeitos neste caso: traficantes transportando cocaína entre a Bolívia e o Brasil. Eles são conhecidos por usar os rios Paraguai, Cuiabá, e Pirigara. Acredita-se também que usem armas curtas – o tipo que disparou dois tiros no pescoço de Sally. Para os traficantes de drogas que se deslocam através do Pantanal, as onças atraem turistas e policiais para rotas fluviais remotas.
O furor desencadeado pela descoberta do corpo de Sally foi algo novo em uma terra onde a vida de uma onça nunca valeu muito. Os fazendeiros do Pantanal, antes considerados os maiores inimigos das onças, agora estão entre seus mais ardentes protetores. Junto com grupos conservacionistas, eles começam a tentar novas estratégias para proteger o grande felino da ameaça que emerge do próspero negócio de drogas da região.“Essas onças agora valem mais do que qualquer pessoa por aqui”, disse Nilson Soares, que trabalha em uma empresa de processamento de couro de jacaré em Poconé, uma empoeirada cidade de fronteira no extremo norte do Pantanal. “Mas todo mundo nesta cidade já esteve do outro lado desta questão, mesmo que não falem sobre isso. Eles se lembram de quando as peles de onça circulavam por aqui”.
Vaqueiros convertidos em conservacionistas
Durante anos, o Estado fez vista grossa aos fazendeiros que caçavam onças para proteger seus rebanhos de gado. Na década de 1960 e início dos anos 70, o comércio mundial de peles agravou esta tendência, e foi responsável pela morte de cerca de 18.000 onças por ano. Além disso, safáris ilegais traziam turistas endinheirados de todo o mundo para fazendas que ofereciam pacotes de caça, com tudo incluído. É difícil apontar números exatos, mas por volta dos meados dos anos 70, a população de onças pantaneiras caiu sensivelmente.
Mas na década de 1980 duas coisas mudaram em favor das onças. O governo brasileiro, que havia proibido a caça do animal em 1967, começou a intensificar a repressão à atividade. E, ao mesmo tempo, o preço da carne de vaca caiu. Muitos fazendeiros abandonaram suas fazendas durante esses anos, enquanto os que ficaram deixaram de ver o gado como uma fonte confiável de renda.
Hoje em dia, os fazendeiros ganham mais cobrando dos turistas por tours de observação das onças do que as abatendo para proteger o gado. O ecoturismo atrai cerca de 68 mil turistas por ano e passou a ser boa para a indústria de gado. A população de onças da região se recuperou.
“Agora as pessoas percebem que se a onça morre o fazendeiro sofre. As onças podem comer todo o gado que quiserem na minha fazenda”, disse Jamil Rodrigues da Costa, um fazendeiro de gado de quarta geração e proprietário do Hotel Porto Jofre, uma pousada ecológica no Pantanal.
Nem sempre foi assim. Seu avô, um dos caçadores mais conhecidos do Pantanal, construiu um patrimônio em terras vendendo peles de onça. “Naqueles dias, os fazendeiros locais, ansiosos por ver as onças mortas, pagavam duas reses para cada onça que ele matava”, disse Costa. “Mas esse era o Pantanal de então, e as coisas mudaram muito nos anos que passaram”.
“Quase Ameçada”
“Conservacionistas do Pantanal agora concentram esforços em assegurar uma passagem segura para as onças-pintadas que se deslocam pelas áreas alagadas (…)”
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No Pantanal, a sorte do grande felino mudou, embora a população de onças na Bolívia e demais lugares no hemisfério ocidental ainda esteja ameaçada. A espécie continua na categoria “Quase Ameaçada”, segundo a União para a Conservação da Natureza, e já não é encontrada em cerca de 40% da sua área de distribuição original.
Conservacionistas do Pantanal agora concentram esforços em assegurar uma passagem segura para as onças-pintadas que se deslocam pelas áreas alagadas, e em ajudar os fazendeiros a diminuir a predação das onças sobre o gado.
Na vanguarda deste movimento está a Fazenda São Bento, uma das mais antigas do Pantanal. Juntamente com a Panthera – uma entidade de conservação fundada por Thomas Kaplan, a quem a revista Forbes já chamou de “o Bilionário Rei dos Gatos” no ano passado –, a São Bento trabalhou nos últimos dez anos com fazendeiros locais, pousadas ecológicas e guias de pesca para criar um mosaico de terra privada que provê um corredor seguro para as onças do Pantanal até o Parque Estadual Encontro das Águas. Este mosaico forma uma área protegida que abarca pouco menos de 5% do Pantanal.
“O controle de onças-problema é um assunto delicado”, disse Rafael Hoogesteijn, um venezuelano que é gerente da fazenda “São Bento” e consultor da Panthera no projeto conservacionista da fazenda.
“A sociedade como um todo quer a conservação dos grandes felinos, mas o fazendeiro e o proprietário do gado são aqueles que estão pagando a conta pelos animais domésticos [mortos pelos predadores]. Ninguém está ajudando os fazendeiros nesta área e a Panthera tenta preencher este vácuo.”
Aliança pantaneira
Um de seus principais aliados no sul do Pantanal é o Instituto Homem Pantaneiro, uma rede de ex-policiais militares, fazendeiros, guias de ecoturismo, militares e ambientalistas que procuram conservar o ecossistema único do Pantanal. O líder do grupo é o coronel Ângelo Rabelo, um ex-oficial da polícia militar, que veio para o Pantanal na década de 1980 para estabelecer a unidade da Polícia Militar Ambiental em Corumbá. Sua unidade desempenhou um papel fundamental em acabar com o comércio de peles na região; apenas entre 1987 e 1989 confiscou mais de 3.000 peles.
“Trabalhando como militar, eu entendi o limite da capacidade do Estado em agir no Pantanal”, disse Rabelo, bebericando café, enquanto a chuva caía sobre a cidade de Corumbá. “Nosso foco principal é a conservação, mas um efeito secundário de nossos esforços é poder evitar que áreas abandonadas do Pantanal sejam usadas por traficantes de drogas.”
Só no ano passado, a Polícia Federal em Corumbá confiscou 1,5 tonelada de cocaína enviada da Bolívia para o Brasil. Mas não é apenas o isolamento do Pantanal que faz com que ele seja uma rota atraente para os traficantes de drogas. Barqueiros e pilotos locais que já faziam o tráfico de peles de onça empregaram seu conhecimento sobre as rotas de trânsito e o comportamento das autoridades locais para o muito mais rentável mercado das drogas.
Entretanto, para a comunidade conservacionista o assunto das drogas ainda é um tabu. “Muitos conservacionistas na comunidade internacional não querem chamar a atenção para o tráfico de drogas, porque não querem se indispor com os governos com os quais trabalham”, disse Kendra McSweeney, professora de Geografia da Universidade Estadual de Ohio. Segundo ela, com certa frequência, funcionários do governo são cúmplices do comércio de drogas, ou, pelo menos, fazem vista grossa.
McSweeney insiste que os grupos conservacionistas não deveriam evitar o assunto. “Nós devemos olhar o tráfico de drogas como uma questão de conservação e desenvolvimento rural. Eles estão intimamente ligados. Em muitos países, o tráfico de drogas pega carona em outras atividades ilegais e as subsidia”.
No caso de Sally, a justiça continua evasiva. Somente dias após a carcaça ter sido encontrada, identificou-se um suspeito, um homem que se acredita estar envolvido nas redes do tráfico e que opera ao longo da rota onde a onça foi morta. Porém, ele nunca foi detido.
Ativistas em risco
“Como você avança sem provas? Aquelas balas estão bem lá no fundo do Pantanal, sob metros de água (…)”
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Na segunda semana de abril, as autoridades locais solicitaram aos fazendeiros e ambientalistas que retirassem a oferta de recompensa. Com a investigação se voltando para o tráfico de drogas, a polícia colocou que a recompensa trazia um novo perigo: aqueles que queriam pagar pela informação sobre a morte de Sally poderiam se tornar alvo dos traficantes. Com o caso nas mãos da polícia, fazendeiros e ambientalistas não tiveram outra opção senão retornar ao seu objetivo principal de criar um habitat protegido para onças do Pantanal.
O corpo de Sally permanece congelado em uma universidade federal em Cuiabá, capital do estado de Mato Grosso. Nenhum suspeito foi preso, e o caso foi entregue ao Ministério da Justiça, encarregado de mostrar se há provas suficientes ou vontade política para tocá-lo adiante.
“A maioria destes casos nunca é resolvida. Essa é a natureza do nosso trabalho no Pantanal, onde a maioria dos eventos ocorrem desapercebidos”, disse o chefe de polícia Alexandre do Nascimento, enquanto apontava para uma grande pilha de documentos sobre a sua mesa. “Como você avança sem provas? Aquelas balas estão bem lá no fundo do Pantanal, sob metros de água, e nós provavelmente nunca saberemos quem atirou naquela onça”.
*Publicado originalmente na Aljazeera America e republicado em ((o))eco com permissão da autora. Tradução de Flávio Cruz e revisão de Peter Crawshaw. |
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Provavelmente a infeliz onça estava nadando no rio quando foi morta pela crueldade humana, sem chances de defesa!