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As mentiras do governo sobre o Fundo Amazônia, segundo o próprio governo

Documento da CGU diz que gestão do fundo por Ricardo Salles “descumpriu as boas práticas da governança pública, gerando impactos negativos para as políticas ambientais”

Fakebook.eco ·
14 de julho de 2022 · 2 anos atrás

A Controladoria-Geral União (CGU) confirmou oficialmente o que todo mundo já sabia: o governo Bolsonaro mentiu ao apontar supostas irregularidades como justificativa para congelar R$ 3,2 bilhões do Fundo Amazônia. O dinheiro, doado por Noruega e Alemanha, está parado em uma conta do BNDES desde 2019. Representa mais de 18 vezes o orçamento que o Ibama tem (e não usa) para fiscalização neste ano (R$ 175 milhões).

Relatório de avaliação da CGU destrincha o método usado pela atual gestão para enterrar o fundo criado em 2008, que se tornou a principal iniciativa mundial de Redução de Emissões Provenientes de Desmatamento e Degradação Florestal (REDD+).

A auditoria foi publicada discretamente no site da CGU no último dia 28, e o tom do documento é diplomático – afinal, o ministro-chefe da CGU, Wagner Rosário, já chamou manifestantes golpistas de “pessoas de bem” no último 7 de setembro e, no início deste mês, em depoimento na Câmara, minimizou o escândalo que derrubou o ministro da Educação, afirmando não haver corrupção na alta cúpula do regime.

O relatório não cita os nomes do ex-ministro Ricardo Salles e do atual, Joaquim Leite. Porém, não deixa dúvidas de que houve ação deliberada para interromper o Fundo Amazônia: a decisão de extinguir dois comitês essenciais para a governança do fundo “descumpriu as boas práticas da governança pública, gerando impactos negativos para as políticas ambientais”, aponta o documento. A auditoria afirma que o Ministério do Meio Ambiente (MMA) agiu “sem planejamento e fundamentação técnica”, e que isso resultou em descumprimento de compromissos internacionais.

Em relação a um levantamento enviado pelo MMA apontando supostas fragilidades nos contratos do fundo (a mesma justificativa usada por Salles em 2019), a CGU afirma que “há muitas informações incompletas sem conclusões evidenciadas sobre a efetiva identificação das fragilidades”, e que o documento “não se sustenta como fundamento para a tomada de decisão”. “Não foi possível identificar a indicação de deficiências ou lacunas que demandassem a interrupção das operações” do fundo, aponta a auditoria. Entre outras mentiras, o ministério citou, em resposta à CGU, reuniões que nunca ocorreram com os países doadores.

Além de não aplicar R$ 3,2 bilhões em projetos que poderiam ter contribuído para reduzir o desmatamento, o governo Bolsonaro desperdiçou nos últimos quatro anos um potencial de captação de cerca de US$ 20 bilhões (mais de R$ 100 bilhões) que o fundo tem em “crédito” de valores a serem arrecadados, em razão da redução do desmatamento ocorrida no período de 2008 a 2014, acrescenta o documento.

A CGU destaca que o processo de mudanças no Fundo Amazônia ocorreu “integralmente distante do debate público, sem assegurar mecanismos de participação dos atores sociais envolvidos no processo decisório, ferindo os princípios da participação social, da transparência e accountability.”

O relatório cita ainda três auditorias sobre as atividades do fundo: uma concluiu que “não se obteve conhecimento de nenhum fato que pudesse indicar que os procedimentos adotados pelo BNDES não estão em conformidade, em todos seus aspectos relevantes, com as normas e diretrizes aplicáveis”, outra “concluiu pela adequação das demonstrações financeiras apresentadas pelo BNDES”, e a terceira, que tinha o objetivo de verificar a conformidade na gestão dos recursos, aponta que “foi possível identificar o alcance dos objetivos”.

A seguir, as principais conclusões – e mentiras do governo – apontadas pelo trabalho da CGU:


NÃO FALTOU TEMPO – Após a edição do decreto nº. 9.759/2019, que extinguiu o Comitê Orientador do Fundo Amazônia (COFA) – integrado por representantes do governo federal, dos governos estaduais e da sociedade civil – e o Comitê Técnico do Fundo Amazônia (CTFA) – formado por especialistas independentes – , o MMA teve prazo de 47 dias para apresentar proposta de recriação dos colegiados (até 28 de maio de 2019). Apesar dos alertas encaminhados pelo BNDES sobre os riscos envolvidos, o ministério não apresentou proposta à Casa Civil de recriação dos comitês. A extinção inviabilizou as análises e aprovações de novos projetos no Fundo Amazônia. Outros ministérios encaminharam 129 exposições de motivos à Casa Civil, o que resultou na publicação de 61 atos de recriação de colegiados.

REUNIÃO QUE NÃO HOUVE – Em resposta ao questionamento feito pela equipe de auditoria sobre a justificativa para não ter encaminhado proposta de recriação dos colegiados, o MMA afirmou ter realizado reuniões com os países doadores, mas que “não houve, contudo, consenso até o período previsto no decreto para que fosse reestabelecido o comitê, ainda que tenham sido envidados esforços para tanto”. No entanto, a primeira reunião do então ministro Ricardo Salles com as embaixadas da Noruega e da Alemanha para tratar do Fundo Amazônia ocorreu em 5 de junho de 2019, após o prazo estabelecido no decreto.

MENTIRA SOBRE NORUEGA – O ministério apresentou três argumentos para justificar a necessidade de reestruturação do fundo e a opção de não propor a recriação dos comitês. Primeiramente, disse que uma a auditoria do governo norueguês identificou, entre outros pontos, a necessidade de revisão da governança do fundo. Na verdade, não houve críticas ao modelo de governança do Fundo Amazônia no relatório, mas sim à política adotada pelo Brasil para conter o desmatamento. Para a CGU, o assunto trazido pelo documento não configura justificativa para a reestruturação da governança do fundo.

MENTIRA SOBRE TCU – O MMA também citou como justificativa um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) que apontou deficiências no acompanhamento e na execução dos contratos do fundo, ainda que a conclusão tenha sido de considerar satisfatória sua execução. Para a CGU, não houve constatação de irregularidades graves. A despeito da necessidade de correções pontuais, a equipe de auditoria do TCU ressaltou a efetividade e a boa gestão do Fundo Amazônia.

“AUDITORIA PRÓPRIA” MANDRAKE – O ministério informou ainda que foi realizado à época, pela sua equipe, levantamento dos status dos projetos e sua execução nas áreas fins, trabalho cuja conclusão reforçaria a necessidade de reestruturação da governança do fundo. O MMA encaminhou à CGU despacho com documento que apresenta um resumo das principais fragilidades identificadas nos contratos firmados pelo BNDES. Contudo, nesse documento não foi possível identificar: a metodologia utilizada para a análise; os critérios para a definição da amostra analisada; as causas das falhas vislumbradas; e as referências documentais quanto às possíveis fragilidades. Há muitas informações incompletas sem conclusões evidenciadas sobre a efetiva identificação das fragilidades.

BNDES IGNORADO – No documento do MMA também não há menção a esclarecimentos, por parte do BNDES, sobre os apontamentos realizados – isso porque os resultados da análise feita pelo MMA não foram comunicados formalmente ao banco. O BNDES informou que teve conhecimento desses resultados apenas em fevereiro de 2020, por meio de uma requisição de informações do TCU. O banco ressaltou que o levantamento nunca foi enviado pelo MMA.  As eventuais fragilidades identificadas são de cunho operacional e poderiam ser corrigidas sem a necessidade de alteração das instâncias de governança.

NORUEGA TRATORADA – A governança do Fundo Amazônia foi um dos elementos centrais dos acordos de doação celebrados entre o BNDES e os governos da Noruega e da Alemanha. Qualquer modificação nela deveria ser feita por meio de acordo mútuo entre as partes. O governo da Noruega enviou comunicado oficial ao ministro Salles, em resposta a uma primeira proposta de modificação na estrutura de governança do fundo, informando que estava satisfeito com o desempenho do Fundo Amazônia. Em decorrência das alterações unilaterais na estrutura do fundo, o governo norueguês informou que não havia base legal para alocar os recursos não comprometidos disponíveis para a aprovação de novos projetos. Assim, em 17 de outubro de 2019, o BNDES suspendeu a análise de novos projetos.

US$ 20 BI DE POTENCIAL – Apesar disso, o fundo possui um “crédito” de valores a serem arrecadados, em razão da redução do desmatamento ocorrida no período de 2008 a 2014. O potencial de captação é de cerca de 20 bilhões de dólares. A falta da estrutura de governança no Fundo Amazônia fez com que o governo brasileiro perdesse a oportunidade de obter mais recursos. A opção do MMA foi adotada sem justificativa técnica ou planejamento, o que provocou a suspensão de autorização de novos projetos no âmbito do Fundo Amazônia e colocou em risco os resultados das políticas públicas por ele apoiadas.

NÃO FOI POR FALTA DE AVISO – O MMA foi alertado pelo BNDES (gestor do fundo) em duas ocasiões quanto aos riscos relacionados à modificação unilateral dos comitês. Em 16 de maio de 2019, o banco encaminhou ofício informando à secretaria executiva do ministério que qualquer alteração na governança do fundo poderia impactar os contratos de doação. Em 23 de maio de 2019, sem resposta do MMA, o BNDES encaminhou novo alerta, desta vez direcionado ao ministro, informando que as alterações na governança do fundo poderiam ter efeito sobre relações jurídicas com os doadores internacionais. O MMA optou por manter a extinção dos comitês mesmo assim.

SEM QUERER MELHORAR – Constatou-se que o BNDES, gestor do fundo, não foi instado a apresentar estudos e propostas técnicas com sugestões para a melhoria da gestão. Segundo o banco, o MMA não solicitou ao banco qualquer tipo de estudo com propostas de aperfeiçoamento com base na sua experiência de operacionalização do fundo.

FORA DA AGENDA DE MOURÃO – Segundo informado pelo Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL), depois de receber minutas de documentos que haviam sido apresentados aos países doadores até fevereiro de 2020, o CNAL não realizou reuniões com o MMA para tratar do Fundo Amazônia, o qual não teve também qualquer participação nas conversas e reuniões realizadas pela vice-presidência da República com representantes daqueles países.

LONGE DA SOCIEDADE – O processo de mudanças na estrutura de governança do fundo, desde a manutenção da extinção dos comitês até a apresentação de propostas aos doadores sobre uma nova configuração, foi realizado integralmente distante do debate público, sem assegurar mecanismos de participação dos atores sociais envolvidos nesse processo decisório, ferindo os princípios da participação social, da transparência e accountability. Os exames também indicaram a ausência de comunicação e participação dos órgãos públicos que integravam o COFA nos processos decisórios sobre o Fundo Amazônia após a extinção do comitê, visto que não foi identificado o envolvimento das demais pastas ministeriais que integravam aquela instância.

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