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Estudo da UFRJ analisa negacionismo climático no Youtube

Realizado pelo Netlab-UFRJ, a pesquisa buscou entender como argumentos de falsos especialistas em clima repercutem nos comentários da audiência dos vídeos

Júlia Mendes ·
11 de outubro de 2024

As “bolhas” da internet permitem que qualquer pessoa encontre um conteúdo que vai de acordo com sua opinião, sem sequer saber se é verdade ou não. Com o negacionismo climático não é diferente. Basta buscar por “aquecimento global” no Youtube que o usuário pode se deparar com vídeos que neguem o aumento da temperatura do planeta. Ao analisar os comentários de vídeos negacionistas, um estudo do Netlab, laboratório da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), identificou que, além de uma predominância do apoio público a esse tipo de conteúdo, há também um pico de audiência após décadas da publicação dos vídeos, o que levanta questionamentos quanto a eficácia das políticas do Youtube. 

Desde outubro de 2021, o Youtube tem uma política que proíbe anúncios e monetização de qualquer conteúdo que “contradiga um consenso científico bem estabelecido sobre a existência e as causas das mudanças climáticas”, o que inclui, de acordo com a própria plataforma, conteúdos que se referem às mudanças climáticas como uma farsa ou fraude, alegações que negam que o clima global está esquentando ou que as emissões de gases efeito estufa e atividade humana não contribuem para as mudanças climáticas. No entanto, pesquisas como o relatório da Avaaz em 2019 e do Netlab sobre as enchentes do Rio Grande do Sul neste ano mostram que isso ainda vem ocorrendo e gerando lucro para os responsáveis dos conteúdos e para o próprio Youtube. 

O que ainda foi pouco estudado, de acordo com o pesquisador e coordenador de projetos no NetLab- UFRJ, Carlos Eduardo Barros, é o campo de comentários desse perfil de vídeos da plataforma, tema explorado pelo laboratório neste relatório apresentado. Para selecionar os 10 vídeos principais do estudo, a equipe simulou a busca de um usuário por vídeos com título como “mudança climática” e “aquecimento global” utilizando a ferramenta Youtube Data Tools, que é online e gratuita. Definida a busca, os 500 vídeos com mais visualizações foram baixados e depois ordenados por números de comentários. “Então, analisamos cada vídeo, identificando aqueles onde apareciam supostos especialistas negando bases científicas da mudança climática e do aquecimento global”, explicou Carlos Eduardo. Os dez vídeos com mais comentários deste tipo foram os selecionados para uma análise mais profunda. 

O vídeo com maior número de visualizações e comentários foi o “AQUECIMENTO GLOBAL É UMA FARSA? | Conversa Paralela com Alexandre Costa e Ricardo Felício”, publicado pelo canal Brasil Paralelo, em 2022. Nele, o geógrafo Ricardo Felício e o escritor Alexandre Costa minimizam os impactos do gás carbônico na atmosfera, ao argumentarem que o aquecimento global não passa de uma “invenção de governos mundiais que visa o enfraquecimento das soberanias nacionais”. No vídeo, tanto os apresentadores como os convidados falam sobre uma “santificação da ciência”, caracterizada pela idolatria a cientistas e que tem como objetivo transformar a população em fantoches. 

Para analisar os comentários dos vídeos selecionados, o estudo utilizou uma metodologia conhecida como “modelagem de tópicos”, onde um tópico é definido como uma mistura de palavras. O pesquisador do Netlab explica que essas palavras, idealmente, devem aparecer em vários documentos do conjunto – nesse caso, comentários – , e as palavras de cada comentário também podem se relacionar a vários tópicos. É aí que está a importância desse tipo de metodologia, segundo ele,  já que ela permite agrupar e analisar muitos dados em pouco tempo. Para essa pesquisa, a modelagem de tópicos foi aplicada aos 11.783 comentários – a soma dos comentários dos dez vídeos.  Foram identificados 16 tópicos no total. 

Além disso, também foram analisados os conteúdos de 69 URLs compartilhadas nos comentários a partir de uma divisão em duas questões centrais: “A página traz conteúdo negacionista?” e “Trata-se de uma fonte científica?”. O artigo traz que a maior parte (53,6%) das páginas associadas às URLs são fontes de informação que rebatem os argumentos negacionistas, ou seja, afirmam a existência da emergência climática e do aquecimento global. Carlos Eduardo explica que, embora a maioria dos comentários reforcem o negacionismo, muitos são contrários, e alguns deles “compartilham fontes científicas para contrapor os supostos especialistas que aparecem nos vídeos”.

No entanto, a pesquisa afirma que, das 36 URLs que não direcionam para páginas com conteúdo negacionista, quatro são usadas para defender argumentos negacionistas, como no comentário “Qual relatório do IPCC mostra que o CO2 altera a temperatura global aqui? https://www.ipcc.ch/reports/  Mostra pra nós, por favor! Além de “opinião” é uma constatação de geopolítica aplicada às ciências: https://youtu.be/eaWeJ4amaBw?t=55” 

Como resultado da análise, observou-se que efeitos negativos dos argumentos dos entrevistados nos vídeos se estendiam para os comentários deixados pelos usuários, que corroboram com as ideias conspiracionistas dos apresentadores. Isso acaba por influenciar diretamente os formadores de opinião que consomem os vídeos como conteúdos informativos sobre o assunto. “A partir da modelagem de tópicos, ficou evidente a falta de seriedade e o abuso da ironia por parte dos usuários na abordagem do tema. Pôde-se perceber que, com o fortalecimento das ideias conspiratórias defendidas, os usuários tendiam a estimular as refutações sobre o consenso científico e contribuírem com suas próprias opiniões negacionistas, assim, colaborando para uma rede que se retroalimenta”, apontou a pesquisa. 

Permanência do negacionismo 

O artigo também mostra que alguns vídeos continuam no ar há quase uma década, com grande número de visualizações e comentários, apesar das políticas do Youtube. “Isso reforça a falta de eficácia, ou empenho, da plataforma em fazer valer as próprias regras que deveriam garantir a proteção dos usuários e prevenir que a rede seja usada para negar a emergência climática”, disse o pesquisador do Netlab. 

Além disso, houve um aumento expressivo dos comentários após 2019, inclusive em vídeos mais antigos. Isso sugere, segundo a pesquisa, que esses vídeos tenham recebido maior divulgação a partir do governo Bolsonaro, por vezes reforçando discursos negacionistas propagados pelo próprio ex-presidente e seus aliados. Carlos Eduardo diz que a predominância de comentários que corroboram as teorias conspiratórias dos vídeos mostra uma forte mobilização de usuários em torno da negação das ciências climáticas. Dois vídeos contendo a entrevista de 2012 de Ricardo Felício no programa de Jô Soares foram analisados: “Visionário ou negacionista? Professor da USP afirma que não existe aquecimento global”, publicado em 2014, e “Jô Soares – Aquecimento Global uma Farsa -Ricardo Felicio”, de 2016. A pesquisa identificou que o volume de comentários atingiu um pico em 2021 e os vídeos receberam mais de mil comentários entre 2021 e 2023. “Isso significa que a entrevista de Ricardo Felício no programa de Jô Soares, após mais de uma década, continua a ser usada para legitimar argumentos que desafiam o consenso científico sobre o aquecimento global”, trouxe o estudo. 

O artigo não avalia o papel do Youtube na promoção desses vídeos. Mas, segundo o pesquisador, estudos sobre o sistema de recomendação dessa e de outras plataformas enfrentam um grande desafio de complexidade e falta de transparência sobre como e porquê certos conteúdos aparecem mais que outros. Algumas pesquisas do NetLab UFRJ, como Salles et al. (2023) e Santini et al. (2023), apontam que a recomendação não parece seguir os critérios declarados pela plataforma.

  • Júlia Mendes

    Estudante de jornalismo da UFRJ, apaixonada pela área ambiental e tudo o que a envolve

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