((o))eco inicia esta semana a publicação da retrospectiva 2019 temática. Neste texto, analisamos a crise do governo com o INPE.
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Notícias corriqueiras sobre os alertas mensais de desmatamento na Amazônia virou crise após o governo culpar o mensageiro, ao invés de prestar atenção na mensagem. Tudo começou por causa da divulgação de dados sobre aumento de desmatamento a partir de maio. O presidente Jair Bolsonaro considerou desleal que os jornalistas descobrissem antes do governo que as taxas estavam muitos altas. E culpou o INPE pela divulgação, ignorando que os números são públicos há pelo menos 3 anos. Basta saber procurar.
Na procura por um culpado pelo vazamento que não era vazamento, o presidente acusou o presidente do INPE, Ricardo Galvão, de “estar a serviço de alguma ONG”. Foi rebatido.
Depois de semanas de crise, com direito à coletiva de imprensa para apresentar um “novo” sistema de monitoramento e mudança na direção do INPE, o governo não apenas parou de acusar o Instituto de inapto como voltou a usar os dados do monitoramento, quando o resultado era positivo.
Relembre os fatos:
10 de dezembro de 2018 – Antes mesmo de tomar posse como ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em entrevista à rádio CBN de São Paulo, questionou o trabalho de monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e disse que não existem dados suficientes para falar de desmatamento no Brasil. O ministro afirmou que o Instituto “só fornece o percentual geral do desmatamento, mas não tem a qualificação deste desmatamento”.
15 de janeiro de 2019 – Em entrevista à Folha de S. Paulo, o ministro Ricardo Salles voltou a criticar os dados do desmatamento, falando que eles não são precisos.
“Às vezes o Ibama não dá licença porque não quer que desmate, mas tá dentro da área que o proprietário pode desmatar. Em tese, ele está ilegal, mas não fez nada de errado. Então precisamos ter menos emoção nisso aí para lidar de maneira mais técnica. Por isso queremos essa sala de cenários no ministério. Vamos trazer os dados do INPE, que são bons, mas não são precisos do ponto de vista desse esmiuçamento”, disse o ministro à Folha.
Ao contrário do que disse o ministro, o licenciamento para proprietários rurais desmatarem área de fazenda é realizado, normalmente, pelas secretarias estaduais de Meio Ambiente. Ou municipal, dependendo do município.
17 de janeiro – Em entrevista ao blog da jornalista Andréia Sadi, no G1, Salles falou em criar um sistema de monitoramento em tempo real no valor de R$ 100 milhões.
O ministro defendeu o gasto, que usaria recursos do Fundo Amazônia, para que o fiscal do Ibama “vá para onde o sistema manda ir, não para onde quer”, registrou Sadi.
O sistema que o ministro Ricardo Salles queria criar já existe e se chama Deter (Detecção de Desmatamento em Tempo Real), criado em 2004 e que custa 3 milhões aos cofres públicos.
17 de janeiro – Em resposta ao Salles, o INPE divulga uma nota explicando as diferenças entre os três sistemas de monitoramento desenvolvidos e operados pelo Instituto: o Programa de Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite (PRODES), o Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (DETER) e o sistema de mapeamento do uso e ocupação da terra após o desmatamento, TerraClass.
Na nota, o INPE explica que o sistema PRODES realiza o inventário de perda de floresta primária através do uso de imagens de satélite de observação da Terra, desde 1988. A partir deste inventário, são calculadas as taxas anuais de desmatamento para os períodos de agosto a julho, considerando como desmatamento a supressão da floresta em áreas superiores a 6,25 hectares. O DETER, lançado em 2004, é um sistema de apoio à fiscalização e controle do desmatamento e degradação na Amazônia. O DETER produz diariamente alertas de alteração na cobertura florestal para áreas maiores que 3 hectares. Já o TerraClass é uma parceria entre o INPE e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), tem por objetivo a identificação do uso e cobertura das áreas apontadas como desmatadas pelo PRODES.
19 de julho – Bolsonaro se irrita com pergunta sobre aumento do desmatamento na Amazônia. Os dados do Sistema Deter indicavam uma explosão nos alertas a partir de maio de 2019. Em um café da manhã jornalistas estrangeiros, o presidente afirmou que não acreditava nos números e que suspeitava de que o diretor do INPE, Ricardo Galvão, estava “a serviço de alguma ONG.
“Até mandei ver quem é o cara que está na frente do INPE. Ele vai ter que vir se explicar aqui em Brasília esses dados aí que passaram pra imprensa do mundo todo, que pelo nosso sentimento não condiz com a verdade. Até parece que ele está à serviço de alguma ONG, que é muito comum”, disse Bolsonaro.
20 de julho – Em entrevista ao Estadão, Ricardo Galvão classificou as declarações de Bolsonaro como “Atitude pusilânime e covarde”.
“O presidente insinuou que o sr. poderia estar a serviço de ONGs. O que o senhor responde sobre isso?”, perguntou a repórter Giovana Girardi. Galvão respondeu: “Como sou um cientista, não respondo. Um grande prêmio Nobel em Física uma vez falou que certas respostas não devem ser dadas porque são tão absurdas que não estão na natureza. Não vou responder e ele que me chame pessoalmente e tenha coragem de me dizer cara a cara isso”.
21 de julho – O Conselho da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) publicou manifesto em defesa do INPE. “Críticas sem fundamento a uma instituição científica, que atua há cerca de 60 anos com amplo reconhecimento do País e no exterior, são ofensivas, inaceitáveis e lesivas ao conhecimento científico”, afirmou a entidade.
21 de julho – Bolsonaro voltou atrás e afirmou que não receberia o presidente do INPE. “Eu não vou falar com ele. Quem vai falar com ele é o Marcos Pontes (ministro de Ciência e Tecnologia) e talvez também o Ricardo Salles (ministro de Meio Ambiente). O que nós não queremos é uma propaganda negativa para o Brasil”, disse para um grupo de jornalistas, em Brasília.
22 de julho – Jair Bolsonaro defende que dados do desmatamento na Amazônia sejam levados à sua apreciação antes de virem à público, para que ele não seja “pego de calças curtas”. A declaração foi feita a repórteres após o presidente participar de um almoço com oficiais da Aeronáutica, em Brasília.
“Você pode divulgar os dados, mas tem que passar pelas autoridades até para não ser surpreendido. Até por mim, eu não posso ser surpreendido por uma informação tão importante como essa daí. Eu não posso ser pego de calças curtas. As informações têm que chegar a nosso conhecimento de modo que nós possamos tomar decisões precisas em cima dessas informações”, disse. “Eu estou acostumado com hierarquia e disciplina e no governo, sei que a maioria é civil, nós devemos no mínimo ter isso. Então, quando o INPE detecta um dado qualquer, ele tem que subir os dados, no caso, para o ministro Marcos Pontes, de Ciência e Tecnologia, antes de passar pelo Ibama para divulgar […] Não pode alguém na ponta da linha simplesmente resolver divulgar esses dados, porque pode haver algum equívoco e, neste caso, como divulgou, há um enorme estrago para o Brasil”, defendeu o presidente.
22 de julho – O ministro de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicação (MCTIC), Marcos Pontes, soltou uma nota declarando que “reconhece a estranheza” expressa por Bolsonaro quanto à variação percentual dos últimos resultados do INPE e que o Ministério está solicitando ao Instituto “um relatório técnico completo” da série histórica dos últimos 24 meses, com metodologia aplicada e alterações significativas no período.
Em relação às declarações de Galvão durante o fim de semana, Pontes defendeu que elas “não correspondem ao tratamento esperado na relação profissional, especialmente com o Chefe do Executivo do País” e que o diretor do INPE será convocado ao MCTIC para esclarecimentos. “A partir dessa reunião, serão definidos novos passos”, disse na nota.
31 de julho – Uma reunião entre representantes do INPE, do Ministério da Ciência, Tecnologia, Informações e Telecomunicações e do Ministério do Meio Ambiente é realizada em Brasília – sem a presença de Ricardo Galvão. Após o encontro, Ricardo Salles se reuniu com a imprensa sobre inconsistências encontradas nos dados do DETER. O ministro aproveitou a ocasião para anunciar que o governo faria licitação para contratar nova empresa de monitoramento.
PS: Até o momento em que essa retrospectiva foi publicada, o governo não havia tornado público o estudo que baseou a afirmação de ter encontrado inconsistência nos dados do Deter.
1 de agosto – Governo volta a rebater os dados do INPE. Em coletiva no Palácio do Planalto, os ministros Ricardo Salles (Meio Ambiente), Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) e Ernesto Araújo (das Relações Exteriores) apresentam para a imprensa o estudo feito pelo MMA. Segundo General Heleno, os dados “prejudicam muito a imagem do Brasil” e que “seria conveniente que nós não alerdássemos isso, que cuidássemos do problema internamente”.
Em nota divulgada após a coletiva, o INPE afirmou que não teve acesso prévio ao estudo do governo com críticas ao sistema e reafirmou “sua confiança na qualidade dos dados produzidos pelo DETER”.
02 de agosto – O governo decidiu exonerar o diretor do INPE, Ricardo Galvão. Após reunião com o ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, na saída, para a imprensa, Galvão declarou que a sua retirada se deve à maneira como respondeu à acusação de Bolsonaro de que os dados do INPE eram falsos. “Diante da maneira como eu me manifestei com relação ao presidente, criou um constrangimento, ficou insustentável e eu serei exonerado”.
05 de agosto – O ministro Marcos Pontes anuncia Darcton Policarpo Damião, militar da Aeronáutica, como diretor interino do INPE.
10 de agosto – Ricardo Salles e Ricardo Galvão trocam acusações no programa Painel, da GloboNews. Na ocasião, Galvão voltou a defender a metodologia e dados do INPE e disse que “o que nós [INPE] usamos é publicação científica, não balela, não coisa de jornalzinho, de Twitter”.
O ex-diretor declarou que “qualquer dirigente de um país tem que entender que, quando se trata de questões científicas, não existe autoridade acima da soberania da Ciência. Nem militar, nem política, nem religiosa”. No que Salles rebateu: “O problema é quanto a ideologia está disfarçada dentro da ciência. O que nós vemos há muito tempo é a ciência se arrogando o direito de dizer isso ou aquilo”.
No debate, Salles reafirmou a intenção do governo de contratar uma empresa privada para apurar com mais tecnologia dados sobre o desmatamento da Amazônia. Galvão rebateu que é preciso usar a “ciência brasileira” para isso, porque já existem ONGs e institutos capacitados no país para colher essas informações. Salles criticou a postura do ex-diretor dizendo que era ele era muito “ufanista” e afirmou que não se pode utilizar um sistema técnico que, segundo ele, não seja avançado “só porque é brasileiro”.
14 de agosto – Nome do oficial da Força Aérea Darcton Policarmo Damial é oficializado como diretor interino do INPE, em portaria publicada pelo Diário Oficial da União.
16 de agosto – Em entrevista à ((o))ec0, o ex-diretor do INPE, Ricardo Galvão, afirmou que o sistema Deter poderia ser descontinuado. “O que pode acontecer é que o sistema de alerta pode ser descontinuado. Ele depende dos recursos do Ministério do Meio Ambiente e nós temos uma certa preocupação. Esse ano não, porque o orçamento já está lá, mas o orçamento do Deter vem do próprio MMA, então, se ele quiser, pode cortar”, disse.
27 de agosto – Ministério Público Federal (MPF) no Pará inicia investigação sobre a abertura de edital para a contratação de um sistema privado de monitoramento de desmatamento. A investigação pretende identificar os motivos que levaram ao abandono das ferramentas já disponíveis, que são fornecidas há anos por órgão estatal, mas também quer saber se não existe violação ao caráter competitivo da licitação.
01 de novembro – Darcton Damião apresentou à imprensa o plano de reestruturação organizacional do Instituto. Das 15 coordenações existentes que se reportam diretamente à direção geral seriam agrupadas em quatro coordenações-gerais, sob os temas: “Engenharia e Ciências Espaciais”, “Monitoramento, Modelagem e Análise”, “Infraestrutura de Pesquisa” e “Pós-Graduação”. A reestruturação ainda prevê a criação do cargo de um vice-diretor, hoje inexistente.
18 de novembro – Foi divulgado a taxa anual de desmatamento, medido pelo Prodes (Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite/INPE). Entre 01 agosto de 2018 e 31 de junho de 2019, foram derrubados 9.762 quilômetros quadrados na Amazônia, maior alta desde 2008.
19 de novembro – Perguntado sobre o aumento do desmatamento, o presidente Jair Bolsonaro disse que quem deveria ser perguntado sobre o assunto era o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.
Estima-se que o INPE só terá verba até 2022 para fazer o monitoramento dos quatro biomas (Pantanal, Mata Atlântica, Caatinga e Pampa). Isso porque o mecanismo será afetado pela suspensão das contribuições da Noruega ao Fundo Amazônia.
20 de novembro – Bolsonaro afirma que desmatamento e queimada jamais vão acabar, pois é “cultural”.
21 de novembro – O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), na plataforma Terra Brasilis divulga que o desmatamento registrado em Terras Indígenas da Amazônia entre 1º de agosto de 2018 e 31 de junho de 2019 foi 65% é maior do que o período anterior, saltando de 260 quilômetros quadrados para 429,9 km², maior índice registrado desde 2009.
25 de novembro – Sai o índice de desmatamento em Unidades de Conservação da Amazônia Legal. Segundo o sistema Prodes, o desmatamento em Unidades de Conservação da Amazônia Legal subiu 35% entre agosto de 2018 e julho de 2019 (saltando de 767 km² para 1.035 km²). Ainda de acordo com os dados do INPE, considerando todas as UCs, a unidade mais comprometida dos últimos 12 meses foi a Área de Proteção Ambiental (APA) Triunfo do Xingu, com incremento de 30% no desmatamento (de 333,62 km² para 435,95 km² de floresta perdida).
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Este governo, criou muitos desvio e foco e muita, mas muita cortina de fumaça.