A homologação da demarcação da terra indígena que se estende desde Raposa (aldeia dos índios Macuxi, no município de Normandia) até a Serra do Sol (em Pacaraima, na fronteira com a Venezuela), anunciada no dia 15 de abril pelo Ministro da Justiça Márcio Tomaz Bastos, causou violentas reações em Roraima.
Na terça-feira, 19 de abril, uma bomba incendiária foi jogada contra a casa de um professor da Universidade Federal de Roraima. Em seguida, a família de Fábio Almeida de Carvalho ainda recebeu dois telefonemas com ameaças de morte, caso o professor não deixasse o estado em 3 dias. Fábio é coordenador do núcleo de formação superior de índios da universidade. Por causa dos ataques, os eventos da semana indígena, marcados para começar dia 25 de abril, foram cancelados. “A suspensão das atividades é um apelo, como dizer: Não está dando mais para ter vida social”, ressaltou José Arnaldo, do Grupo de Trabalho Amazônico (GTA) em Brasília. Segundo José Arnaldo, o coordenador da ong em Roraima, Luís Gomes, também recebeu ameaças. “Essa escalada é imprevisível. A rua está tensa. O clima está de amedrontar”.
A manifestação mais importante aconteceu domingo à noite, na praça central da capital Boa Vista. Moradores fizeram uma vigília de protesto, iluminada por velas, em frente ao Palácio do Governo. O Monumento ao Garimpeiro, estátua símbolo da cidade, foi apelidado de Lula, embebido com gasolina e transformado em tocha. Próximo a ele, uma faixa avisava: “É um ataque à federação brasileira e nós vamos reagir”.
A oposição à demarcação da área contínua é encabeçada pelo próprio governador, Ottomar Pinto (PTB), que decretou luto oficial de sete dias em Roraima e como pessoa física ingressou com uma ação civil pública contestando a decisão. Ele também ameaça, em represália à criação da reserva, retirar das terras indígenas os serviços públicos de saúde, educação, transporte e geração de energia.
O anúncio da homologação causou surpresa porque a negociação se arrastava sem solução há mais de seis anos. Há quem diga que Lula bateu o martelo sobre a criação da reserva em sua viagem ao Vaticano, para o enterro do Papa João Paulo II. É que a Igreja Católica é uma das principais defensoras dos direitos indígenas no estado. A população também se voltou contra ongs ambientalistas internacionais, alegando que agora o acesso de brasileiros à área poderá ser restrito pelos índios, mas não o de pesquisadores estrangeiros que trabalham na região. Os próprios índios estão divididos. Embora todos lutassem pela reserva, parte deles é contra a demarcação contínua, que pode dificultar o acesso a serviços públicos.
A área ocupa 7,7% do território de Roraima e volta a pertencer aos índios Macuxi, Taurepang, Wapixana e Ingaripó. É uma extensão de terra de 1,74 milhão de hectares, equivalente a quase 12 vezes o território da cidade de São Paulo. Dentro da reserva estão cidades, estradas e plantações, sobretudo de arroz. Todos os não-índios serão removidos da área. São 7 mil pessoas, de acordo com o Censo 2000.
Mil empregos diretos e 6 mil indiretos vão desaparecer. O arroz produzido na várzea do Surumu, nos limites da reserva Raposa/Serra do Sol, é suficiente para abastecer todo o mercado do estado e o excedente responde por 50% do consumo do Amazonas e 15% do consumo paraense. Os produtores de arroz são colonos gaúchos e paranaenses que chegaram há muito em Roraima. Juntos, respondem por 11% do Produto Interno Bruto (PIB) do estado.
Mesmo antes da homologação, os arrozeiros e moradores das cidades dentro da área demarcada se mobilizaram pedindo garantias de que as fazendas não seriam desapropriadas e de que o escoamento da produção não seria interrompido. Segundo o Ministério da Justiça, os arrozeiros que exploram terras na margem sudoeste da reserva serão transferidos no prazo de um ano, e os pequenos agricultores de outras áreas serão reassentados.
No meio do tiroteiro entre fazendeiros, índios, ongs, governo e igreja, o Ibama local acha que saiu lucrando. No interior das terras indígenas está um dos Parques Nacionais mais preservados do país, o Monte Roraima, que fica nas fronteiras com a Venezuela e a Guiana. Criado em 1989 com cerca de 116 mil hectares, o Parque deixará de ser administrado exclusivamente pelo Ibama, passando a um regime de gestão compartilhada com a Fundação Nacional do Índio (Funai). A “dupla afetação”, como é definida pelo Ministério da Justiça, se presta “à preservação do meio ambiente e à realização dos direitos constitucionais dos índios”. Será a segunda experiência desse tipo no país. A primeira acontece no Parque Nacional de Monte Pascoal, na Bahia.
O Ibama comemora o fato de não ter perdido o Parque para a Funai. A entidade indigenista queria a extinção da unidade de conservação. Já o órgão ambiental acredita que só agora poderá começar a implantar seu plano de manejo. Isto porque, atualmente, nem mesmo o único funcionário do Parque, o chefe José Ponciano Dias Filho, tem acesso a toda área. Para chegar ao Monte Roraima, por exemplo, é preciso entrar pela Venezuela. A área é de difícil acesso (o que explica sua preservação) e os índios impedem a passagem por suas terras.
A própria direção nacional do Ibama parecia disposta a abrir mão do Parque Nacional Monte Roraima para os índios, mas um dossiê preparado pelo Ibama estadual circulou por Brasília e conseguiu incluir a gestão compartilhada do Parque no decreto que cria a reserva indígena Raposa/Serra do Sol.
O assessor de comunicação do Ibama de Roraima, Taylor Nunes, explica que o conflito fundiário impedia a implementação do plano de manejo. “A coisa estava tão instável que não era possível captar investimentos. Chegamos a viver a iminência do decreto de criação do Parque ser anulado”, afirma. Agora ele acredita que será possível negociar com a Funai um plano de visitação e utilização da área.
A presença dos índios na região até hoje não provocou grandes danos ambientais, até porque boa parte do Parque encontra-se acima dos 1.000m de altitude, tendo como ponto culminante do Monte Roraima a Pedra Maveric, com 2.875m. A interferência humana no meio é mínima, segundo Taylor Nunes, limitando-se a poucos focos de queimadas para roça na parte baixa e uma incipiente atividade de caça. A pesca não é favorecida, porque as águas dos rios são ácidas, de tom negro.
A Reserva Raposa / Serra do Sol é vizinha de outra área indígena, a Reserva São Marcos. Juntas, formam uma área contínua de 2,5 milhões de hectares no extremo norte do país. Para preservar a natureza por lá, é preciso se entender com os índios.
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