O primatologista Adelmar Coimbra Filho não é para ser entrevistado por gente de coração mole. Ele não tem papas na língua. Erro, para ele, é “burrice”. E decisões polêmicas ele chama de “cretinice”. E o que ele acha de atitudes politicamente corretas a turma do site não sabe, talvez porque faltou coragem para lhe perguntar.
E ele está aqui exatamente por isso. Foi seu estilo que arrancou com urgência de autoridades sempre tão distraídas medidas de proteção ambiental que elas provavelmente teriam preferido adiar, salpicando o mapa do Brasil com reservas que salvaram espécies raras de macacos, como o mico-leão-dourado.
Foi também com esse jeito de dizer o que pensa sem a menor cerimônia que Coimbra manteve, durante mais de três horas, a redação de O Eco tão entretida que o resultado da longa conversa não coube numa só edição do site. Não é todo dia que se ouve, ao vivo, alguém contar histórias do tempo em ainda se caçava onça nos subúrbios do Rio de Janeiro e as florestas da Gávea, na Zona Sul, se defendiam da favelização com funcionários municipais capazes de subir morro de revólver na cintura.
No fim, foi preciso dividir a entrevista em duas partes, separando sua vida de sua obra. Tarefa complicada, pois ambas se confundem com a história do ambientalismo brasileiro.
Aí está a primeira parte da conversa com Coimbra. O site espera que os leitores se divirtam e aprendam com ela tanto quanto nós nos divertimos e aprendemos.
Por onde começamos, pelas histórias da Gávea?
Coimbra – Mas logo da Gávea? Eu sou meio anti-social. Sobre o bairro ou sobre a sociedade da Gávea, tudo que posso dizer é que disso eu sei muito pouco.
Quer dizer, do Parque da Cidade.
Coimbra – Aí, sim, o Parque da Cidade. Seu nome original era mesmo Parque Florestal da Gávea, como aliás deveria ser até hoje. Mas um boboca qualquer tirou o “Florestal”, o que foi uma besteira. Os parques deveriam ter sempre no nome a sua localização geográfica, porque com isso já se situam. O Parque da Gávea era um serviço florestal da prefeitura, no antigo Distrito Federal, do tempo em que os guardas municipais andavam armados e tinham prestígio. Mas no bairro havia também o Parque Proletário da Gávea, uma favela que mais tarde foi removida. Por isso, quando tiraram o “Florestal” do parque lá de cima, passaram a existir dois parques da Gávea. E, em vez de sacrificar o Parque Proletário, que era mesmo uma coisa provisória, preferiram mexer no nome do lugar mais nobre. E ele acabou virando Parque da Cidade. Na ocasião, tive muitas brigas por conta disso. Parque da Cidade, a meu ver, é um nome cretino.
Como o Sr. foi parar lá?
Coimbra – Sou um telúrico. Gosto de terra e de planta. Aliáss, sempre pensei em ser fazendeiro. Anos atrás, vi um filme chamado “Mar Verde”, com Spencer Tracy. Tinha aquele vento batendo na pastagem, um verdadeiro mar verde. E eu queria ter uma fazenda lá no Brasil Central, onde poderia fazer tudo que gosto. Teria minha reserva, minha pastagem. Sempre gostei muito de gado zebu. Sou biólogo. Mas acho que fui levado a cuidar do parque por gostar dessas coisas. Cheguei lá em dezembro de 1946, na gestão do prefeito Hildebrando de Góis. Aquilo tinha sido propriedade do industrial Guilherme Guinle. Eu o transformei em parque público. O jardim era cheio de canteiros em forma de estrelinhas. Acabei com eles. Plantei azaléias na base do morro, ao pé da floresta. Só vendo como aquilo ali ficava no inverno. A azaléia é um arbusto muito resistente, que não precisa de aclimatação e, nos meses de junho e julho, fica totalmente florida.
Suas azaléias sobreviveram?
Coimbra – Não. Acabaram. Não tem mais nada. Mas a primeira coisa que notei da última vez que fui lá foi a falta de palmito. Porque, onde vou, planto palmito. E, quando saio, já vão tirando os palmitos que plantei. Foi a mesma história no Centro de Primatologia de Guapimirim. Vocês já foram ao Centro? Se não foram, têm que ir. Os gringos quando chegam lá sempre perguntam se sou paisagista, botânico. Eu respondo que não, aqui no Brasil temos que fazer um pouco de tudo, vestir a camisa. Sabem como fiz aquilo? Com os tratadores de animais. Entre os viveiros, plantava palmito. E perto da sede, senão o pessoal rouba, bota no chão uma palmeira de oito, dez, vinte anos, só para tirar palmito. E ele não rebrota, não é como o açaí, que é do mesmo gênero, mas se pode cortar várias vezes que continua vivo. O palmito, não. Cortou, morreu. Mata-se uma palmeira que levou décadas crescendo só pelo palmito. E os bichos, vão comer o quê?
Por que saiu do parque?
Coimbra – Eu fui praticamente expulso da chefia, depois de 10 anos de meio de trabalho sério e bem feito, por causa de duas mulheres que chegaram de carro oficial, a mando do chefe do gabinete civil do prefeito Negrão de Lima, para escolher plantas no Parque da Cidade. Isso, em si, não era problema. Bastava ir lá e pegar nas estufas. Mas elas queriam levar as plantas num vaso português esmaltado, com três lagartos de porcelana em alto relevo, uma beleza.
O vaso era patrimônio público?
Coimbra – Era. Quando o palacete de Guinle foi comprado pela prefeitura, com a casa e o jardim veio o acervo do que é hoje o museu. E aquilo tudo também estava entregue a mim. Como diretor, naquele tempo, se me desse na cabeça dormir na cama da princesa Leopoldina ninguém iria dizer nada. Havia muita coisa na casa. Por exemplo, um sino com as armas do Império, que ficou pendurado na mangueira diante da sede. Mal eu saí, a primeira coisa que sumiu foi o sino. Tenho ojeriza a ladrão.
Ao contrário das azaléias, o vaso escapou?
Coimbra – Acho que sim. Mas não dá para garantir, porque a coleção passou para o museu, que é administrado pelo governo estadual, embora fique dentro de um parque municipal, e essa duplicidade de administração é uma droga. Na minha época, quando me recusei a entregar o vaso, foi um Deus nos acuda. O diretor do serviço, que era meu amigo, veio falar comigo: “O que é que você fez? Está todo mundo falando. Querem suspender você por 15 dias, mandá-lo para o matadouro de Santa Cruz”. Eu expliquei, com todo respeito, que só poderia entregar o vaso com autorização por escrito, senão quem iria passar por ladrão era eu. O vaso era coisa tombada.
O parque hoje está imprensado por favelas. Já era assim?
Coimbra – Não, na minha época eu não deixava ninguém invadir área pública. Aliás, por via das dúvidas eu aumentei por minha conta 10 metros em todo o perímetro do parque.
Com que direito?
Coimbra – Com a polícia do Distrito Federal, que naquele tempo andava armada. Minha turma era muito boa. Foi ela, por sinal, que me impediu de dar um tiro no secretário, quando ele me demitiu. Eu erra briguento. Uma vez, fiz uma besteira, quando recebi uma ameaça de morte, em nome de um morador da Rocinha metido a valente.
A troco de quê?
Coimbra – Eu tinha matado o cachorro dele. Vocês não imaginam como é difícil fazer repovoamento. Quando era diretor do parque, comecei a repovoar os morros da Gávea com animais silvestres que haviam desaparecido. Por exemplo: os tucanos fui que eu soltei por lá. Agora, existem mais de mil tucanos naquela área. E isso foi difícil no começo. A gente encontrava a toda hora tucano morto por tiro e pedrada. Isso com um bicho que voa. Já imaginaram então o trabalho que deu a reintrodução da cotia? Você pegava, soltava e até conhecer o lugar ela levava algum tempo. E o tal sujeito soltava os cachorros dele em cima das cotias. Um dia vimos os três cachorros acuando o animal perto de um bueiro. Peguei meu rifle e – pou! – o primeiro morreu na hora. Quem estava comigo ficou horrorizado. Eu expliquei que não era ruindade. O trabalho que estava fazendo era muito mais importante do que um cachorro.
E a explicação colou?
Coimbra – O cara disse que ia me matar. E foi aí que eu me meti a fazer a tal bravata, que hoje eu não faria mais. Peguei a minha pistola, botei na cintura e subi a pé para o Parque. Havia na Gávea um largo onde os bondes viravam. Desci naquele ponto e mandei o motorista me encontrar lá em cima do morro dali a meia hora. E fui a pé, sozinho. A Rocinha ainda tinha bonita mata. Eu me lembro de uma árvore belíssima, que ficava bem na beira da estrada. Quando começaram a encher o morro de barracos, uma das primeiras coisas que fizeram foi derrubar aquela árvore. Quer dizer, aquela mata era um lugar muito bom para uma tocaia. Mas, subi com a pistola na mão e ainda mandei o recado de que, se ele quisesse me pegar, era para atirar direitinho, para eu morrer de primeira. Porque, se eu pudesse mexer a mão, ele estava morto. Era besteira. Mas eu tinha só uns 22 anos.
O que significava ser transferido para o matadouro?
Coimbra – Castigo. Sou biólogo, não sou veterinário. O que iria fazer num matadouro municipal? Acabei transferido para o Jardim Zoológico, porque o diretor era um grande amigo meu. E trabalhei uns 12 anos como chefe do serviço técnico-científico do Zoológico do Rio de Janeiro. Peguei um bom tempo do governo Carlos Lacerda, que era um homem extraordinário, de inteligência brilhante, um sujeito formidável, mas muito ignorante em matéria de fauna. Lacerda sempre me chamava para ver os faisões que ele criava no sítio. Criar faisões é melhor do que nada. Uma pessoa que cria faisões só pode ser mais justa do que as outras. Ele era justo. Tanto que o chefe do Jardim Zoológico daquele tempo, o meu chefe, era um comuna radical, chamado Renato Araújo, especialista em cupim pelo Instituto Biológico de São Paulo. Tão esquerdista que, quando houve aquela degringolada toda de 1964, ele pegou as revistas cubanas que colecionava e rasgou tudo.
Jardim Zoológico não é uma coisa meio inútil?
Coimbra – Ele tem que ser uma instituição diferente, com uma filosofia diferente, que é colaborar com a preservação da fauna, e não apenas exibi-la. Mas ainda estamos na fase da pura exibição e vai levar muito tempo para esta mentalidade mudar. Quem vai, por exemplo, ao Jardim Zoológico de San Diego, nos Estados Unidos, logo vê a diferença. O zoológico do Rio está espremido atrás do estande de tiro do Exército, o que é um crime, um absurdo. E o Exército não entende o que é conservação. Está na hora de entender, porque conservação de reserva é guardar para o futuro um patrimônio ainda desconhecido da espécie humana. As pessoas acham que cuidar de bicho é salvar o cachorro que a carrocinha pegou. Não é nada disso. A carrocinha tem que passar e pegar cachorro todo dia. Isso é uma obrigação de saúde pública. O que não pode é permitir que, na captura, venha um debilóide que está com um arame maltratando o animal. Quem maltrata animal tem que ser punido.
Se ainda estivesse no zoológico, faria as passarelas que acabaram de ser construídas?
Coimbra – Eu não teria um zoológico, para começar, porque sou contra toda essa insensatez que está aí. Gastaria o dinheiro em reservas biológicas. Estive numa reserva biológica na Flórida, a de Everglades, onde vi uma orquideazinha vagabunda, verde, com uma setinha de aço inoxidável embaixo, valorizando ao máximo aquela planta que, sem isso, nem chamaria a atenção de ninguém. Eu faria reservas, o maior número possível de reservas no Brasil, e daria todo valor a elas. Encheria de placas para mostrar, olha, aqui nesta área você tem tais e tais espécies. Faria uma coisa bem educativa para o visitante.
Mas não foi o zoológico que o transformou em primatologista?
Coimbra – Foi. Já que me puseram lá, aproveitei para aprender o que pude sobre a fauna, e os macacos principalmente.
Uma mudança e tanto para quem queria ser pecuarista.
Coimbra – Eu nunca quis ser pecuarista. E hoje, se me dessem uma fazenda, eu não aceitaria nem de graça, porque teria de lidar com o trabalhador brasileiro.
O que há de errado com o trabalhador brasileiro?
Coimbra – Ele não é ruim, não. Mas dá um trabalho danado fazer ele vestir a camisa do que está fazendo, porque só pensa em direitos, mas não nos deveres. No Parque da Gávea, todo pessoal que trabalhava comigo me tratava bem. Mas atualmente mudou tudo. Avacalhou mesmo. As ideologias de esquerda modificaram muito a mentalidade do brasileiro. Mas, como eu ia dizendo, nunca pensei em ser pecuarista. Eu queria era ser fazendeiro. E isso é uma coisa muito diferente. Pecuarista que derruba a mata não é fazendeiro. A mesma confusão que fazem com caçador. Vocês sabem o que é caçador? É o sujeito que, para começo de conversa, vai para o campo ver aquela beleza toda. Ele gosta mesmo é do contato com a natureza. Pegar a arma e atirar para ele é secundário. Um caçador de verdade, de tipo europeu, geralmente vai para o mato caçar o bicho que ele criou. Mantém para isso fazendas de caça, onde cria faisões, codornas, perdizes, javalis e veados, para soltar nos parques de caça. Matar é a última coisa que lhe interessa. O verdadeiro caçador gosta de cães de caça. A coisa mais bonita que existe é ouvir uns seis, oito cães de caça batendo uma paca. Eles nessas horas soam de maneira diferente. Não fazem au-au-au. Ululam.
O Sr. caçou muito?
Coimbra – Cacei. Meu conhecimento de mata vem de andar por ela desde novinho, caçando. Mas só matei dois tipos de bicho: paca e o porco-do-mato pequeno, o caititu. Meus cães eram um cruzamento que eu fiz, de uma raça francesa com uma cadela veadeira do sul de Minas. As raças francesas têm um nariz fabuloso. Descendem do “Chien d´Artois”, que deu origem ao Beagle na Inglaterra. Os ingleses, que são grandes zootecnistas, trabalharam o Beagle, que nada mais é do que a miniatura do “Chien d’Artois”. Mas os meus cães, por causa da mistura com o veadeiro, saíram muito agressivos.
Não teria sido um erro criá-los?
Coimbra – Não. Sou contra destruir qualquer espécie animal, mesmo doméstico. Não concordo com a campanha que o jornal O Globo faz contra o pitbull, porque a meu ver o culpado pelos acidentes que acontecem com essa raça nunca é o cachorro, e sim o dono. Acabar com a raça é um erro. Amanhã, quem sabe se a gente vai precisar dessas características? É preciso não esquecer nunca que somos muito ignorantes. A humanidade tem o quê? Uns 100 mil anos? Os primatas mais primitivos têm no máximo uns 70 milhões de anos. Os hominídeos surgiram há 20 mihões de anos. Mas a vida surgiu na Terra há uns 3,5 bilhões de anos. Por isso, a ciência humana só pode estar muito atrasada em relação à vida, para saber o que pode acontecer com o desaparecimento de um inseto cujo organismo talvez coontenha uma substância qualquer extraída de plantas ainda não estudadas, que curem um tipo de câncer, por exemplo. Estas coisas só agora estão começando a ser descobertas. Para descobri-las, é preciso juntar pessoas muito raras, como um biólogo e um bioquímico extraordinários. E isso é ainda mais difícil no Brasil, onde só temos, que eu saiba, uma pessoa com essas características, que é o bioquímico Otto Gottlieb.
O que isso quer dizer?
Coimbra – Quer dizer que o potencial de uma floresta brasileira é ilimitado. Primeiro, pela quantidade de itens desconhecidos que existem dentro dela. Depois, pela ignorância humana, que é enorme, muito maior do que a gente pensa. O homem tem que proteger o que ele não conhece, para não se arrepender depois. Para mim, só existe um ecologista, que é Deus. Porque só ele conhece a biosfera inteira.
Onde eram suas caçadas?
Coimbra – Bem, eu nasci no Ceará. Mas sai de lá com um ano e cresci em Pernambuco. E em Pernambuco tinha muita mata. Ainda tem alguma. Mais tarde, quando me mudei para o Rio de Janeiro, passei a caçar por aqui mesmo. Em Guaratiba, em Itaguaí, ali no fim da Barra da Tijuca. Eu conhecia um vidraceiro português, um senhor alto, que tinha um rancho de caça no rio Itaguaí. E nós caçávamos paca com ele. Depois, o primeiro sítio que eu tive foi lá por aqueles cafundós. Eu ia de jipe, um daqueles modelos da Segunda Guerra, dirigindo pela praia com tração nas quatro rodas. A certa altura, tinha de colocar palha debaixo das rodas, para não atolar no areal. O caminho era cheio de valas, porque passava muito caminhão para tirar areia da praia. Meu sítio tinha uma mata bonita. E perto ficava a posse do Goulart, um professor do Colégio Militar, que guardava aquelas terras com capangas armados de fuzil Mauser. Ele de vez em quando passava pelo meu sítio, atrás de uma espécie de curió que só havia lá. É que o curió tem dialetos. Existe o canto Paracambi, o canto Praia, o Praia Grande. E na minha baixada havia o curió de canto Tanoeiro. O canto Tanoeiro não existe mais, porque acabaram com os curiós de lá. Como deram cabo de outro passarinho, que eu via muita gente caçar, o coleiro-do-brejo. E o caboclinho-bico-de –ferro.
E havia o que caçar na Barra da Tijuca?
Coimbra – Tinha muito mergulhão, por exemplo. Aliás, havia até onça, lá pelos pelos idos da década de 40. Isso é interessante, porque não deixa de ter o seu valor histórico. Eu cheguei a ver uma onça parda que tinham acabado de matar em Vargem Grande, onde hoje só se vê bananal. Naquela época, a mata ali era boa. Descia do morro até a beira da estrada. E a onça estava amarrada no capô de uma picape Ford. Não sei se era a última que andou pelo município do Rio de Janeiro. Eu estava com o Alceo Magnanini, que aliás é uma pessoa que vale a pena vocês entrevistarem, pouca gente conhece como ele a história da legislação ambiental no Brasil. Tiramos uma foto com a onça em cima do Ford.
Sem qualquer cerimônia – Parte II
Lorenzo Aldé, Manoel Francisco Brito, Marcos Sá Corrêa e Sérgio Abranches
Entrevistar Adelmar Coimbra é como andar na floresta atrás do mateiro. Não adianta procurar o caminho. Ele é quem sabe onde os assuntos se cruzam, sobem, descem ou mudam de direção subitamente. No caso, são as perguntas que correm atrás das respostas. E não o contrário. Memórias pessoais e alheias, extratos de pesquisas científicas, conceitos arrasadores, histórias sertanejas, referências bibliográficas, nomes em latim e adjetivos espinhosos transformam a conversa num modelo de exuberância ambiental, até mesmo de biodiversidade. É como atravessar a mata atlântica ou a floresta amazônica. Pode-se não enxergar muito bem aonde o próximo passo irá levar. Mas, olhando em volta, tudo consegue ser tão interessante ao mesmo tempo que até caminhar em círculos é um progresso.
Esta é a segunda parte da entrevista de Coimbra a O Eco. Ficou ainda mais extensa do que a primeira. E com ela o primatologista bate o recorde destas páginas. Em seus dois meses de existência, o site ainda não cansou de publicá-lo. Primeiro, num longo perfil, que saiu logo na edição de estréia. Depois, nesta longa entrevista. E quanto Adelmar Coimbra ainda aparecerá em O Eco, nem a redação sabe. Como a entrevista, depende dele. E tomara que seja muito. Porque ele pode ser tudo. Menos um eco-chato.
Como achou o mico-leão-dourado no subúrbio do Rio de Janeiro?
Coimbra – Mas não fui eu que achei esses micos. E nunca disse que achei. Quem descobriu o mico-leão-dourado foi o naturalista Johann Natterer, um grande cientista austríaco, que esteve no Brasil no começo do século XIX e encontrou os micos-leões em Guaratiba. Em 1942, eu reencontrei por lá dois ou três micos, num rancho de caça. Esta história está contada em “Primórdios da Primatologia no Brasil”, um trabalho que fiz há muitos anos para o Congresso Brasileiro de Primatologia e até hoje não saiu publicado. Nos anos 40, ainda havia muita mata em Guaratiba, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Ela ainda estava praticamente emendada com as matas de Mangaratiba.
Não foi o Sr. que criou a trincheira contra a extinção da espécie?
Coimbra – Isso, sim. Eu e o Alceo Magnanini. Nós criamos juntos da década de 60 a Reserva Biológica de Jacarepaguá, que pretendíamos repovoar com micos-leões criados em cativeiro. Mas a especulação imobiliária no Rio de Janeiro estrangulou a reserva. Mais tarde, lutamos juntos para fazer a Reserva Biológica do Poço das Antas, na Baixada Fluminense. O mapeamento da espécie que fiz na década de 70 ajudou a criar esta reserva, no município de Silva Jardim. Pus a proposta num ofício para o Haroldo Matos de Lemos, então presidente da Feema (Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente), onde eu trabalhava. Isso, no tempo em que a Feema era a Feema, não a Feema de hoje. O Haroldo pegou meu ofício, deu uma arrumadinha, escreveu em cima que a reserva era indispensável e o processo de criação, que estava parado em Brasília, por resistência do Incra (Instituto Nacional da Reforma Agrária), saiu em quinze dias. Sem isso, não ia ter reserva nem mico-leão-dourado. Quando fui estudar pela primeira vez a espécie em Silva Jardim, já conhecia bem o lugar, porque tinha caçado na região. Cheguei a ver por lá jequitibás com 35 metros de altura. Num trabalho que escrevi sobre o mico-leão, falo de lugares da Baixada como Gaviões e Bananeiras, ali perto, onde encontrei florestas com árvores de um metro de diâmetro na altura do peito. Vai lá ver como aquilo está agora.
Pau-Grande, terra de Mané Garincha, que fica na Baixada, tem esse nome por causa de uma enorme sumaúma que havia lá e foi cortada.
Coimbra – Essa, não. Se estava lá, não era sumaúma.
Mas a sumaúma está na biografia de Garrincha.
Coimbra – Então, alguém aí se enganou. A sumaúma é amazônica. E é bem provável que na Amazônia haja árvores mais altas do que ela, como a Dinizia excelsa, ou angelim vermelho, que chega a 65 metros de altura. E a sumaúma tem madeira fofa. A Dinizia, não. Você bate no tronco e ele é duro como aço. A árvore tem esse nome por causa do Diniz, um fazendeiro da ilha de Marajó, que cheguei a conhecer. Quem a batizou foi o professor Adolpho Ducke, um dos maiores botânicos do mundo. Tão cedo não vai nascer ninguém como ele, com aquela cabeça extraordinária para estudar leguminosas. A maioria das madeiras-de-lei brasileiras é do grupo das leguminosas, como o jacarandá. Mas sabem aonde que queria chegar?
Ainda não.
Coimbra – A madeira mais dura do mundo chama-se Guiaiacum officinalis ou Lignum Vitae, uma árvore das Antilhas. É tão dura, que os “U-boats” da Primeira Guerra usavam a Lignum vitae no mancal do motor. Sabem por que? Porque, olhando no microscópio a anatomia dessa madeira, dá para ver que os vasos estão cheios de uma resina muito espessa. Quer dizer: além de dura, aquela madeira se auto-lubrifica. São coisas como essa que perdemos, quando botamos abaixo uma floresta sem ter a menor idéia do que há dentro dela. O Brasil não tem Lignum vitae, mas tem na Amazônia madeiras duríssimas, que estão acabando sem que ninguém saiba como elas eram ou para quê serviriam. Árvores como o pau-santo e o pau-amarelo, que antigamente eram comuns nas antigas casas dos caboclos.
Mas, aonde era mesmo que o Sr. queria chegar?
Coimbra – Quero dizer que reserva biológica não é uma coisa poética, não. É uma coisa muito pragmática. Ninguém, nem o pessoal do IBAMA, entende direito o que é uma reserva biológica. Acha que não passa de um parquinho para divertir os visitantes. O brasileiro, em geral , vê uma reserva como algo feito para salvaguardar o patrimônio meio inútil que está ali dentro. E não é nada disso. Reserva significa reserva para o futuro. É guardar alguma coisa para quando nossa cultura biológica não for quase nula como ainda é hoje. A ciência está começando. E a natureza tem mais de 3,5 bilhões de anos. O que sabemos sobre a natureza é uma bobagem, perto do que ela é. Amanhã, se pudermos entender o que agora nem suspeitamos, será nas reservas que encontraremos aquilo que nossa ignorância não tiver destruído agora definitivamente. O (bioquímico Otto) Göttlieb, que era um cientista realmente extraordinário, encontrou só numa espécie de madeira nativa nove flavonas diferentes. Uma delas era um fungicida fabuloso.
Quer dizer?
Coimbra – Quero dizer que, para fazermos conservação de verdade, teremos de nos convencer, enquanto é tempo, de que não sabemos quase nada sobre tudo o que está à nossa volta, somos extremamente ignorantes. Por incrível que pareça, a humanidade sequer está consciente de que depende da natureza para tudo. Mesmo em um apartamento no meio da cidade, continuamos dependendo da natureza. Ou não precisamos de água? De ar? Diante dos bilhões de anos da natureza, a ciência é coisa novíssima. Ainda tem quase tudo para aprender. Uma vez, falando para um auditório de médicos, usei o exemplo do confrei, uma planta medicinal, com propriedades cicatrizantes, que durante muito tempo, eles recomendavam para doenças do fígado. Hoje se sabe que o confrei é um verdadeiro veneno para o fígado. Essas coisas custam a aparecer. Sobretudo no Brasil, onde temos biólogos e bioquímicos incompetentes, fazendo pouca pesquisa e, o que é pior, cada um trabalhando para o seu lado. É muito raro aparecer por aqui um Göttlieb ou um (botânico Carlos) Rizzini. Rizzini foi o maior fitogeólogo do Brasil. Fiz um livro com ele sobre os ecossistemas brasileiros. É muito difícil ter duas pessoas como o Göttlieb e o Rizzini na mesma geração. Mas só assim dá para dizer que estamos fazendo pesquisa séria.
O que é pior, queimar floresta ou biblioteca?
Coimbra – Queimar a melhor biblioteca do mundo é um prejuízo menor para a humanidade do que queimar uma floresta primitiva, como a amazônica. Não falo, evidentemente, de queimar um hectarezinho ou dois de floresta, mas de destruir a floresta amazônica como estamos destruindo. Porque uma reserva biológica é um patrimônio mais valioso, em termos de conhecimento armazenado, do que qualquer biblioteca. Toda biblioteca, por mais atualizada que seja, está cheia de livros ultrapassados. Uma reserva, não. Ela é o arquivo vivo da evolução. Está sempre evoluindo. Mas as pessoas não entendem o que é isso.
Por que?
Coimbra – Neste país não temos o casal Garotinho, que ainda não acredita na evolução? Eles achamm que são criacionistas, que as coisas se passaram ao pé da letra como está na Bíblia. Bem, é verdade que eles também não sabem o que é H2O. É por causa dessas coisas que eu sempre digo: para mim, um estadista, se quiser ser realmente providencial no Brasil, só precisa fazer duas coisas: ensino fundamental e saúde pública de qualidade. Faz isso e deixa o resto para lá, que o país vai para a frente sozinho. Principalmente, não mexe na floresta.
Mas a preocupação com o meio ambiente está aumentando, não?
Coimbra – Pelo menos, depois da Eco-92, as pessoas passaram a falar muito em biodiversidade. Já é um sinal de uma certa curiosidade pelo problema. Mas continuo achando que quem entra numa grande biblioteca acha que ali dentro vai encontrar todas as informações possíveis sobre a natureza. E que mato é só mato. Isso é pura ignorância.
O Brasil tem unidades de conservação suficientes?
Coimbra – O Brasil não tem reservas que cheguem e não terá nunca, porque agora da mata atlântica, por exemplo, quase não há mais o que guardar. Sobraram apenas remanescentes desprezíveis. Neste momento mesmo estamos discutindo o que vai ser de dois macacos raríssimos, encontrados recentemente no nordeste da Bahia. Um deles tem meu nome: Callicebus coimbrai. Kobayiashi, o sujeito que o descobriu, poderia ter lhe dado o nome do presidente do Brasil ou do imperador japonês, mas fez questão de pôr coimbrai. Acharam o bicho num pequeno fragmento de floresta. O resto já foi todo derrubado. E agora eu sei que vou ter brigas tremendas por causa do tal macaco, porque ele está confinado em áreas mínimas de mata atlântica. O lugar onde ele está é uma ilha de floresta cercada de terra arrasada. E o Nordeste não tem mais floresta nativa que chegue para permitir a longo prazo a sobrevivência desses macacos. Então, o que se deveria fazer? A meu ver, não há dúvida: comprar o tal pedaço de mata e em volta dele uma área bem maior para encher de eucalipto.
Logo eucalipto?
Coimbra – Está vendo como são as coisas? Não se pode falar de eucalipto no Brasil, que todo mundo reclama. Isso é pura estupidez. Plante o eucalipto e deixe ele lá, para ver se embaixo dele a vegetação natural não vai se regenerar sozinha. Foi o que eu fiz no Poço das Antas. A reserva estava cercada por um capinzal que é de origem africana e só serve para pegar fogo todo ano, queimando a mata. Mas quando falei em plantar eucalipto lá o pessoal do Ibama estranhou, dizendo que eucalipto é espécie exótica. E o capim africano, que pega fogo todo ano, não é exótico? O pessoal prefere a planta exótica que destrói a floresta à que protege. Como é que você vai conversar com um imbecil desses?
Qual a vantagem do eucalipto?
Coimbra – Ele ajuda a diminuir a concentração de micos-leões no espaço limitado da reserva, por exemplo. Concentrados como estão, eles vão destruindo aos poucos suas fontes de alimento prediletas. Ninguém gosta de ouvir isso. Os americanos ficam de olhos arregalados quando eu digo que, se você põe 250 micos-leões numa área daquele tamanho, eles vão dizimar os bichos que gostam de comer. Azar dos americanos. Quem sabe qual é o potencial reprodutivo de um sapinho que está na dieta dos micos-leões no Poço das Antas? Eu não sei. Não conheço ninguém que saiba. Acho que estamos obrigando os micos-leões a exterminar espécies e a reduzir a biodiversidade da floresta, só por não gostar de eucalipto. Um eucalipto, com seis anos, suporta uma boa comunidade de bromélias. Basta pendurar a bromélia nele, e o mico-leão vai procurar comida na bromélia. O resto é bobagem. Por falar nisso, vocês sabem qual é a maior árvore do mundo?
Não.
Coimbra – É provável que tenha sido um eucalipto – precisamente, um Eucalyptus regnans – que foi encontrado na Tasmânia. Tinha 112 metros de altura. Isso depois de um raio quebrar a ponta dele.
O que fazer com a história dos micos que têm aparecido na reserva com os crânios esmagados?
Coimbra – Quem anda comendo micos no Poço das Antes é um predador natural. Pode ser uma irara ou talvez um corujão. O que fazer? Para mim, não há dúvida: passar fogo nele. Sei que muita gente vai dizer: “Matar irara? Deus nos acuda!” Mas há milhões de iraras pelo Brasil afora. E mico-leão, só existe na reserva. Não entendo esse tipo de escrúpulo. Achou cachorro caçando na reserva? Fogo nele. “Ah, mas vai matar o cachorro!” Isto mesmo: matar o cachorro em vez de gastar dinheiro numa reserva enquanto ele acaba com a fauna. Isso não tem sentido. Já ouviram falar daquele antropólogo, o (Richard) Leaky? Pois no Quênia, quando ele soube que havia gente invadindo a reserva para caçar rinoceronte, juntou seis africanos bons de tiro e mandou atirar em quem pusesse os pés lá dentro. Resultado: morreram uns bandidos e salvaram-se os rinocerontes. Não tem outro jeito. Tomando conta de reserva, ou você age com coerência, ou vai bancar o palhaço. Chefe de reserva não pode ter medo de usar arma. Tem alguém derrubando mata? Vai lá e manda parar. Não parou? Atira. Senão, quem vai ficar prejudicado é o Homo sapiens, que é muito mais importante do que a comunidade A, B ou C.
Não basta sacar a lei?
Coimbra – Nossas leis ambientais são boas. Assim como há gente muito boa cuidando de reservas. Mas as leis e as pessoas muitas vezes acabam desmoralizadas pelos chefes, pela pusilanimidade e pela incompetência de quem no Brasil costuma ocupar funções de chefia por indicação política. Conto dois casos. Um aconteceu em Soretama, no Espírito Santo, a melhor reserva do estado. Em Soretama, um guarda florestal matou um caçador. Ele foi prender sozinho três caçadores, eles reagiram e o guarda acabou matando um. Foi preso, processado e o Ibama não levantou um dedo para defendê-lo. O outro caso foi no Parque Nacional do Iguaçu. Um guarda enfrentou um grupo grande de palmiteiros. Matou um e feriu outro. E aconteceu a mesma coisa. Ele enfrentou o processo sem a menor ajuda da administração pública. Quando ocorre um absurdo desses, os outros guardas que dali para a frente encontrarem caçadores ou palmiteiros dentro de um parque vão fingir que não viram nada. Todo mundo esquece que, tirando palmito da mata, perde-se mais que uma árvore. Deixa-se um monte de bichos sem ter o que comer. Quando o palmito frutifica, dificilmente se encontra outra árvore dando fruto.
Eucaliptal é mesmo sinônimo de floresta vazia?
Coimbra – Isso é uma idéia cretina, uma coisa xenófoba. O eucalipto veio da Austrália para ajudar o brasileiro inteligente a resolver problemas. O rio São Francisco está doente, perdendo vazão, por falta de mata ciliar? Eucalipto nele. Porque eu acredito numa coisa: Deus fez o eucalipto para salvar o rio São Francisco.
E no Paraíba do Sul, ele não pensou?
Coimbra – Também. Há uma espécie que cresce bem em qualquer beira de rio. Agüenta inundação e seca total. Numa reunião da Embrapa em Petrolina, perguntei a um engenheiro florestal: “Por que vocês não fazem uma experiência?”. Ele respondeu que a Universidade Federal de Pernambuco estava fazendo, mas quando se fala em eucalipto todo mundo é contra. Para mim, a turma que nem quer saber de eucalipto é bocó e criminosa. É aí que O Eco deveria entrar, chamando a atenção para essas besteiras que o brasileiro repete sem saber por quê. Liguem para o presidente da Aracruz Celulose e perguntem pelo eucalipto que ele está exportando para a Itália e para a Suécia, que antes importavam mogno extraído da Amazônia de forma ilegal e estúpida, inclusive das reservas indígenas. A empresa é muito atacada, porque está plantando eucalipto no Espírito Santo. Mas ninguém vai lá ver. Os técnicos da Aracruz pegaram áreas que não passavam de pastos secos, com uma nesgazinha de mata atlântica, e hoje as matas estão crescendo entre os eucaliptais. Há lugares onde já se vê uma mata tropical bonita, porque foi melhorada por engenheiros florestais de alto gabarito com árvores raríssimas, como maçaranduba e jacarandá. Seu eu fosse presidente do Brasil, daria uma medalha para o presidente da Aracruz.
Sério?
Coimbra – Sério. Sabe o que faz uma madeireira da Indonésia, quando encontra na nossa mata uma árvore perfeita? Corta. Na hora. Zap! A Aracruz, quando vê que tem um eucalipto fabuloso, deixa ele lá para tirar semente. O resultado é que o genoma que estamos utilizando na regeneração natural de nossas florestas é de árvores inferiores. E o Ibama ainda chama isso de programa sustentável de extração da madeira. Sustentável como?
Reserva indígena funciona como unidade de conservação?
Coimbra – Tem muita palhaçada criminosa nessa história de reserva indígena. Os guaranis, no Sul, estão numa briga danada para pegar áreas produtivas e até parques nacionais. E índio não tem nada a ver com conservação. Até por ignorância, se ele vê o último uraçu em cima de uma árvore, um bicho que tem um filhote a cada dois anos, mata pra tirar a pena. E o Ibama deixa, porque é direito do índio. Direito uma ova! Índio é homo sapiens atrasado. Sou favorável a que os índios da Amazônia façam serviço militar, principalmente no Exército e na Marinha, como fazem os Ticuna. Querem conservar índio como se eles fossem um museu vivo para estrangeiro ver. Não dá. Amanhã ou depois ele estará cercado por uma civilização mais adiantada, usando sandália Havaiana, rádio de pilha, espingarda. O serviço militar deixa o índio com dentes sadios, sabendo ler e escrever. E isso é mais importante do que permitir que ele mate os últimos tatus canastras para fazer aquele artesanato que qualquer caboclo cearense faria brincando. É incrível, mas o Ibama deixa os índios acabarem com o tatu-canastra. Mas, se o Jardim Zoológico de San Diego, que tem renome internacional, pede um tatu-canastra para criar, aí não pode, porque nossa fauna é protegida. Seria muito melhor ensinar ao índio um ofício. E isso só quem faz no Brasil são as Forças Armadas. Não sei qual é o ponto-de-vista de vocês, mas no Brasil há uma corrupção tremenda, inclusive nas Forças Armadas, mas nelas pelo menos a corrupção ainda é menor que no resto.
E reserva extrativista?
Coimbra – É uma cretinice. Sabem o que é essa conversa de uso sustentável? É assim: a melhor árvore nós derrubamos, a pior deixamos. Foi o que aconteceu no Nordeste. Vocês conhecem o livro que eu fiz com o almirante Ibsen Gusmão Câmara sobre os limites da mata atlântica no Nordeste? Quem não leu precisa ler. Não é por ser meu não, mas aquele é um livrinho importante. Por falar nisso, ele só é um livrinho porque usamos nosso dinheiro para bancar a edição e o governo nos paga muito mal. Com esse casal Garotinho, ainda por cima, eu que há dez anos não recebo um centavo de reajuste, passei a ter 11% de desconto na folha. Mas, como eu dizia, não tínhamos recursos para fazer um livro grande. Mas ele bem que merecia. Tenho mais de 200 trabalhos publicados, mas a maior parte trata de primatologia. E aquele livrinho explica por exemplo o que é caatinga. É mata seca. Uma floresta que se adaptou a lugares onde chove muito menos que na mata atlântica. Há lugares em que o índice pluviométrico na caatinga mal chega a 20% do que tem a mata atlântica. E tudo indica que esse índice é menor devido à ação humana. Ou seja, porque durante séculos desmatamos tudo aquilo.
Macacos muito confinados, como os muriquis de Caratinga, têm futuro?
Coimbra – Daqui a 20, 30, no máximo 50 anos, não haverá outro jeito: teremos que manter populações na mata e populações em cativeiro, para fazer o jogo com o DNA, como já se faz com o micro-leão. É um trabalho extraordinário, porque existe mico-leão em vários jardins zoológicos do mundo e, fazendo trocas genéticas com eles, evitam-se os possíveis problemas de consagüinidade criados pelo isolamento da espécie. Embora eu mesmo tenha lá minhas dúvidas nessa matéria. A meu ver, a hipótese de que a consagüinidade prejudica as espécies ainda não foi bem provada. É possível que isso dependa do patrimônio genético que essas espécies compartilham. Se ele for de alta qualidade, todos os bichos numa ilha poderiam ser consagüíneos sem nenhum problema.
Quais são, a seu ver, as figuras exemplares do ambientalismo no Brasil?
Coimbra – Com certeza, o Alceo Magnanini, que poderia ser presidente do Ibama quantas vezes quisesse, porque é competente. Magnanini só tem um problema: briga fácil, inclusive com seus chefes. Eu e ele sempre tivemos problemas nesse ponto. Eu era funcionário da prefeitura do Distrito Federal, depois passei para a Feema do governo estadual. E ele, do extinto IBDF, que deu origem ao Ibama no governo federal. Magnanini uma vez foi posto de castigo no IBDF e veio trabalhar comigo. Outra vez, fiquei de castigo na prefeitura e me mandaram para o IBDF. Um ajudava o outro. Vocês têm que fazer uma entrevista com ele. Outro nome excelente é o do Ibsen, que vocês já entrevistaram. O Paulo Nogueira Neto é espetacular, apesar de ser meio poeta e pacifista. Se falar em matar cachorro com ele, é aquele Deus nos acuda. Paulo Nogueira é honesto, tem feito bons trabalhos. Agora, bota ele para chefiar uma reserva, e aí não dá. Tem coração mole.
Chefe de reserva tem que ser brigão?
Coimbra – Não tem que ser necessariamente brigão. Quem entra em briga sempre pode perder. E chefe de reserva tem que ganhar sempre. Sempre. Trabalhar com a faca e o queijo na mão. E não pode ser puramente um teórico. Quem nunca plantou uma semente, como pode entender de floresta? E tem que viver dentro da mata, virar, mexer, criar bicho. O Kiko, por exemplo, que gosta de criar cachorro, em pouco tempo ele poderia criar qualquer felino.
Mas eu tenho certa implicância com felino.
Coimbra – Tem implicância com felino porque não está precisando disso para ganhar dinheiro. Se fosse chefe do Jardim Zoológico e não tivesse outro emprego, aprenderia a lidar com eles. Acho que vou mandar você para o Setor de Felinos do Jardim Zoológico. Quando eu estava no Parque da Gávea e ainda não tinham me transformado em zoólogo eu era bom em botânica. Tinha uma coleção de madeiras. Podia discutir sobre isso com qualquer autoridade no assunto. Aliás, naquele tempo havia ao lado do parque um horto florestal com magníficos exemplares de árvores brasileiras. Hoje tem uma favela no lugar do horto.
E agora?
Coimbra – Agora, não quero fazer mais nada. Só quero estudar. Estou estudando as florestas do Sudeste Asiático, as dipterocarpáceas.
Chega de briga?
Coimbra – Vocês estão brincando? Sempre fui franzino e nunca tive medo de nada. Não há de ser agora, que estou com 80 anos e me lixando para a morte, que vou ter medo de alguma coisa.
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Ele foi um dos maiores e melhores conservacionistas brasileiros ! Que falta uma mente lúcida como a dele nos faz