O sangue de bandeirante parece correr na família de Vitória da Riva Carvalho. Seu pai, Ariosto da Riva, foi um dos fundadores da cidade de Alta Floresta, no extremo Norte de Mato Grosso. Para Vitória, no entanto, esse espírito levou a um pioneirismo diferente, o da conservação ambiental, da economia sustentável e do ecoturismo. Mineira de Jequitaí e dona da Reserva Natural do Patrimônio Natural (RPPN) Cristalino, ela é responsável por aquele que talvez seja o empreendimento de turismo sustentável mais bem-sucedido do Brasil: o Cristalino Jungle Lodge, um hotel de selva situado às margens do rio de mesmo nome, que, combinado com o hotel Floresta Amazônica, dentro da cidade, tornou-se o destino mais desejado dos observadores de aves que vêm do mundo inteiro conhecer a incrível biodiversidade da região amazônica. Ela combina a vida de empresária com sua vocação ambientalista. Por tudo isso, Vitória é freqüentemente convidada para fazer palestras em congressos e conferências. Falamos com ela durante o 1º Encontro Brasileiro de Observação de Aves (Avistar), em São Paulo.
Como é que você foi parar lá no norte de Mato Grosso?
Vitória – Bem, minha família morava no interior de São Paulo, mas eu fui para a capital fazer faculdade de Letras. Eu dava aulas de inglês, mas parei quando tive meus filhos. Mais tarde, quando eu estava com uns 40 e poucos anos, resolvi voltar a estudar. Fui fazer o Curso de Especialização em Administração para Graduados da Fundação Getúlio Vargas. Nessa época eu já tinha uma certa maturidade e já tinha começado a ouvir falar em meio ambiente. Meus filhos já estavam maiores e meu pai tinha um projeto lá em Alta Floresta, para onde íamos com as crianças de vez em quando. E ao mesmo tempo eu passei a conhecer o meio cultural, pelo fato de estar em São Paulo. E falar fluentemente inglês também me abriu muitas portas. Comecei a participar de alguns congressos internacionais. Junto com meu amigo Oliver Hillel, que hoje está nas Nações Unidas, nós participamos de vários eventos sobre turismo ecológico, como naquela época chamavam o ecoturismo.
Quando? Anos 80?
Vitória – Em 1988, 1989, quando começaram a acontecer os primeiros eventos de turismo ecológico. Teve um em Ilhéus, na Bahia, outro no estado de São Paulo. Eu fiz uma viagem para fora e contatei a Conservation International (CI). Na época, eles estavam querendo fazer um curso de treinamento de planejamento estratégico no Brasil para o ecoturismo. Como eu já conhecia o Oliver e o pessoal da Fundação Florestal propusemos fazer alguma coisa em conjunto. A CI topou. Nós mandamos o que a gente queria fazer, participamos da coordenação, escolhemos mais ou menos 40 pessoas no Brasil, uma equipe para ser treinada por consultores internacionais. Depois nós passamos a treinar. Foram mais de 800 pessoas. Eu tinha a idéia, o planejamento, como deveria ser. Concomitantemente, tendo terminado a Getúlio Vargas, eu tive vontade de colocar em prática e comecei.
Você imaginava como um projeto de ecoturismo poderia dar certo num lugar como Alta Floresta?
Vitória – Eu vi a colonização da região de Alta Floresta desde o início. O sonho do meu pai, e como ele foi deturpado também. Isso me deu uma certa vontade de fazer alguma coisa que fosse sustentável. Só que em 1992 eu morava aqui em São Paulo. Então eu começava, fazia os programas e quando chegava lá não acontecia nada do que eu tinha planejado. Saía tudo diferente. Eu tinha o conceito arraigado, mas não dava tempo de treinar o pessoal naquilo que eu queria, do jeito que eu queria. Por isso digo que o começo mesmo foi em 1997.
Como os birdwatchers te descobriram?
Vitória – Acho que foi 1989 o ano em que nós tivemos a visita do Ted Parker. Esse foi o primeiro ornitólogo que pisou em Alta Floresta. Ele viu o seguinte: Nós estamos mais ou menos na mesma latitude do Peru, que em biodiversidade é o primeiro país do mundo. Eu já tinha mostrado que tinha um hotel e ele foi lá para conhecer. Nessa época eu não tinha quase nada. Era dormir em rede, era um acampamento. E aí ele amou e falou a operadores especializados como a Field Guides e a Victor Emanuel. Aí eles começaram a vir. Um dos primeiros foi o Bret Whitney. Depois foram outras pessoas, como o Kevin Zimmer, mas uns três ou quatro. Eles começaram a vir e ver a riqueza da região. E a maioria das aves que se achava só tinha sido vista no Peru, no Cristalino e em Alta Floresta. No fundo foi sorte da posição geográfica.
Mas quando você se tornou realmente conhecida?
Vitória – Demorou. Você veja: em 1992 eles iam para lá e o atendimento não era bom, ainda não tínhamos serviço adequado. De uns dois anos para cá o pessoal começou a falar do Cristalino, a reconhecer meu trabalho como pioneiro. Eu não sabia se ia dar certo. Foi muita intuição, coragem, vontade de ter um modelo. Hoje, o Cristalino é uma referência na Amazônia brasileira por esse cuidado e, principalmente, por ter sido feito por empresário. É diferente, por exemplo, do Projeto Mamirauá. Louvável, mas é dinheiro do governo implementando aquilo.
Desde o início você tinha clareza do que queria fazer lá?
Vitória – Eu fui descobrindo ao longo do tempo. Mas uma vez tendo descoberto, eu valorizei. Não adianta o sujeito começar um projeto sem a mínima orientação. Primeiro ele raspa toda a floresta para fazer o hotel. Aí já começa a estragar. Depois joga sujeira dentro do rio. Assim eu não queria. Não que o Cristalino seja perfeito, ainda temos muita coisa para resolver.
Você se envolve no dia-a-dia do hotel, recebe os hóspedes?
Vitória – Sim. Eu sou amiga de todos eles, mas nem sempre estou por lá. Vou em muitos eventos de meio ambiente, sabe? Uma vida de muita palestra, muita coisa que o pessoal me pede. Mas estou sempre lá. Meu escritório funciona na cidade de Alta Floresta, porque precisamos ter acesso a internet, mas estou sempre com os grupos.
A paixão pela natureza, pelos pássaros, aumentou?
Vitória – Eu tenho paixão pela natureza. Só que não tenho tempo de aprender a observar aves. Olho, adoro. Mas se você me perguntar o nome daquela espécie em português, inglês, não sei o nome científico. Eu conheço todas as principais espécies, mas para você realmente aprender, precisa ter tempo para ficar nas trilhas.
Existem quantas espécies de pássaros na reserva?
Vitória – Nós temos um terço das espécies de aves do Brasil. Quase 600 espécies.
Que conselho você daria para donos de pousadas que querem atrair observadores de aves?
Vitória – Precisa ter as aves (risos). Não adianta criar uma estrutura se você não tem as aves. Primeiro, é necessário fazer uma pesquisa. Chame um pesquisador, verifique o que a sua propriedade tem. Aí pega essa lista e oferece aqui dentro do Brasil e lá fora. Vê se as aves que estão lá são de interesse, principalmente endêmicas. Se tiver alguma em extinção, pronto, já atraiu. Aí, sim, você faz sua estrutura para atender. Foi o que aconteceu comigo.
“O PESCADOR FALA ALTO, BEBE DEMAIS. E O OBSERVADOR DE AVES, O NATURALISTA ESTÁ INTERESSADO NA CULTURA, NA HISTÓRIA NATURAL QUE TEM ALI.”
Hoje o que esse público especializado exige de um hotel como o Cristalino?
Vitória – Eles querem tomar café da manhã às quatro da manhã. Quatro e meia, cinco horas no máximo eles já estão saindo. Então eu preciso ter uma equipe de revezamento para que o café esteja sendo servido na hora. É complicado, tem que estar tudo pronto. Também precisamos ter cuidado para não misturar públicos diferentes. Por exemplo, no começo a gente precisava ter ocupação. Então recebíamos gente que vinha também para pescar. Mas não havia condição. O pescador fala alto, bebe demais, fala besteira. E o observador de aves, o naturalista, o ecoturista, não. Ele fala baixo, está interessado na cultura, na história natural que tem ali. O pescador não quer nem saber. Pescador brasileiro, então? É só encher a cara e falar bobagem.
O investimento no Lodge é rentável?
Vitória – Não sei se eu sou um pouco conservacionista demais, mas a gente tem que saber dosar conservação e retorno financeiro. Durante muito tempo eu não tive retorno. É lógico que agora a terra está sendo mais valorizada. Mas imagina um hotelzinho de nada no meio de uma área grande. Hoje eu, sozinha, estou preservando quase 12 mil hectares. Do lado de cá do Cristalino, que não é RPPN, eu preciso fazer alguma coisa sustentável. E ainda estou esperando para ver o que eu vou fazer, porque não quero tomar nenhuma atitude precipitada. Mas tenho outras opções. Todo mundo que está com o problema de áreas que não poderiam ter derrubado precisa fazer compensação. Antigamente, só era possível compensar em área de parque, mas agora vai ser possível fazer em áreas particulares. Pode ser um mecanismo que ajudará os proprietários de RPPNs.
O retorno vem também através da satisfação dos hóspedes?
Vitória – É verdade. Essa é minha maior propaganda. Há alguns hotéis de selva que trabalham mais com turismo de massa, na região de Manaus. Na realidade, é um conceito que não está correto, porque eles recebem uma quantidade muito grande de pessoas na selva. Para os meus clientes o importante é o boca a boca. Eles saem tão satisfeitos de lá que um fala para o outro, fora o trabalho dos operadores especializados. E eu, que sou meio manteiga derretida, já fico logo emocionada de ver o valor que eles dão para o meu trabalho. Lógico que isso é gratificante para mim. Agora, modificação de comportamento é mais com brasileiro, porque os estrangeiros, nossa, como é fácil atender estrangeiro. Eles gostam de tudo, agradecem tudo.
Como chamar a atenção do brasileiro para as aves e para a conservação?
Vitória – Olha, eu trabalho com uma operadora de turismo ambiental. Eles até lançaram um programa de observação de aves, mas não vende no Brasil. A gente poderia fazer um curso de iniciação. Até falei com o Alex Lees, que é um pesquisador que está lá no Cristalino estudando fragmentos florestais. Eu acho que talvez precise de uma coisa assim, mais voltada para o brasileiro, numa época como novembro, dezembro, quando a gente tem condição de dar mais descontos. Aí sim, fazer alguma coisa com um preço menor.
Por que é mais fácil lidar com os estrangeiros?
Vitória – Eu não sei. O brasileiro tem uma mania de riqueza, mania que ele é melhor que os outros e que, se ele reclamar, é porque já é um viajado, sabe? Os brasileiros que a gente recebe, que são pessoas maravilhosas, são de nível cultural mais alto. Professores, diretores de escola. Nem sempre têm dinheiro, mas têm nível cultural. E tem muita gente que tem dinheiro, mas não tem nível cultural para apreciar a natureza.
Como assim?
Vitória – Por exemplo, celular não funciona no Cristalino. Eu não tenho frigobar, nem televisão no quarto. Imagina se eu vou pôr televisão no meio da floresta! Aqui não é para ver televisão, é outro assunto. Então, o brasileiro chega lá e vê que eu tenho uma ventilação natural, mas que não tenho ar-condicionado. Eu não tenho energia. E que a energia tem que ser controlada, à noite precisa ser desligada porque eu tenho que ajudar o meio ambiente. Eu vou deixar meu gerador ligado à noite inteira só para ele ter ar-condicionado? Ele tem que colaborar. Sabe que está em um hotel que tem que ser sustentável. Então, se não participar desse esforço, que parte ele está fazendo? E, depois, muitas vezes ele sai dali e muda o comportamento. Ele aprende.
O que mais vocês fazem para tornar o Cristalino sustentável?
Vitória – Não tem ar-condicionado, não tem televisão no quarto, não tem frigobar no quarto. Eu tenho uma garrafa térmica para manter geladinha sua água à noite. Se você quiser levar cerveja para o quarto, você leva, mas à noite o gerador é desligado por causa do diesel e do barulho, para não incomodar ainda mais os animais. Mesmo com todos esses cuidados, a gente causa certos impactos. A água quente vem de aquecimento solar. Separamos o lixo orgânico do inorgânico, que é todo dividido naquelas cestas amarelas, verdes, vermelhas e tal. As latas são amassadas e todo o lixo inorgânico é retirado para Alta Floresta, já separado. Nós fazemos compostagem com o lixo orgânico. Temos uma pequena horta. Quanto ao esgoto, nós adotamos uma prática de permacultura. As águas do chuveiro e da pia vão para um círculo de bananeiras, porque não há problema que elas sejam purificadas ali. Em vez de elas sumirem para um esgoto, as raízes da bananeira captam. Na parte do vaso sanitário existem várias técnicas sustentáveis. Usamos o esgoto biológico. O hóspede só pode fumar em área externa e ele recebe aquela caixinha de filme fotográfico. A gente escreve em português e inglês que se ele for fumante tem que colocar as cinzas e a “bituca” de cigarro ali. Ao chegar perto do lixo, ele esvazia.
E os barcos a motor que sobem o rio?
Vitória – Quando temos que ir rio acima, usamos os barcos à motor, mas para voltar a gente sempre leva canoas, botes infláveis, e as pessoas voltam remando. Os birdwatchers não querem remar, querem ficar todos dentro do barco para que o guia vá mostrando. Aí a gente desliga o motor e o piloteiro vem só conduzindo em silêncio. Causa um impacto menor.
Os funcionários são conscientes?
Vitória – São. Eu tenho um guia, o Francisco, que está comigo desde 1997. Era garimpeiro. Os meus guias, aliás, todos eram garimpeiros e hoje todos são ecologistas. A gente dá curso para eles, que aprendem muito. Uma vez, ele era o piloteiro de um grupo de ecoturistas e viu um rapaz fumando. Fumou o primeiro cigarro e “tuc” dentro do rio. Fumou o segundo cigarro e “tuc” dentro do rio. No terceiro, o Francisco parou o barco e fez um sermão para o grupo. Explicou porque que ele não podia jogar a “bituca” de cigarro no rio, explicou do peixe que engolia…Olha, ele deu uma aula de ecologia para os caras. Uma pessoa que mal tem a quarta série. Os guias têm que ser as pessoas que vão te representar na frente do turista. Ele teve a consciência, ele sabe que a orientação minha é exatamente o que ele fez. Eu amei, achei ótimo. Não me importa se essa pessoa não quiser mais voltar, porque uma pessoa assim não é minha cliente.
Como esses guias, ex-garimpeiros, lidam com os estrangeiros?
Vitória – Eu tenho os meus guias locais, como o Francisco, o Jorge, o Sebastião, o Gilmar, o seu Alfredo, que inclusive fala alemão. Não escreve, mas é filho de alemães e fala muito bem. Eu não tenho guias locais que falem inglês e que entendam de aves. Por isso, um americano uma vez me disse ‘Vitória, você tem que contratar voluntários’. E onde que eu acho voluntários? ‘Tem um site assim, que você entrar e você coloca um aviso’. Eu coloquei. Desde então, você pode ver no nosso site, guias de 2004, 2005 e 2006 internacionais, os voluntários. A cada três meses temos um guia diferente. A maioria ornitólogos, doutores …
Brasileiros?
Vitória – Não, estrangeiros. Tem que saber falar inglês. Os europeus são ótimos, porque nenhum fala uma língua só. Eles falam três, quatro línguas. Os americanos em geral só falam inglês. Eu já recebi gente de tudo quanto é lugar do mundo para ser guia. Até pesquisador da Antártica. Foi um dos melhores guias que a gente já teve. E depois que eles saem, escrevem os relatórios, que eu disponibilizo na internet.
“A GENTE TEM POR VOLTA DE 2.200 ESPÉCIES DE BORBOLETAS NO CRISTALINO.”
Como você se aproximou da observação das borboletas?
Vitória – Um casal de guias voluntários com quem eu trabalho, Will e Gill Carter, falou assim: ‘Vitória, veja o que tem de borboleta aqui! Você precisa chamar a Wanda Dameron’. Eles chamaram essa moça e ela veio. Isso aconteceu há uns dois anos. E ela amou o Cristalino para observação de borboletas. Tanto que comentou com um pesquisador que estava na Venezuela, um inglês, o Andrew Neild. Ele veio ano passado para cá e ficou encantado também. Segundo eles disseram, a gente tem por volta de 2.200 espécies de borboletas no Cristalino.
O observador de aves é o mesmo que também gosta de ver as borboletas?
Vitória – Conquistando os observadores de aves, você conquista o pesquisador de borboleta. É quase o mesmo público. Segundo me explicaram, você começa a observar aves, cinco, cinco e meia da manhã. E você vai até umas dez horas. Aí você começa a ver borboletas, das dez às duas da tarde. Depois elas se recolhem, debaixo das folhas.
Qual é o papel do Cristalino Lodge na conservação da natureza?
Vitória – A nossa RPPN, hoje, decretada, abrange só o lado esquerdo do rio Cristalino, onde está o hotel de selva. Mas agora a gente está atuando também no lado direito, numa área que eu comprei depois, porque estava para ser desmatada. Eu fiquei muito preocupada, ia acabar com o meu projeto. E a sorte foi que em volta da RPPN, em volta da propriedade, foi criado o parque [Parque Estadual do Cristalino]. Na Amazônia, se você tiver áreas muito pequenas, não vai haver grande conservação. A não ser que seja um corredor de uma área maior. E acima da nossa propriedade está uma área da Força Aérea Brasileira, com mais de dois milhões e 300 mil hectares, um monstro, uma grande área protegida. Depois, através da Fundação Cristalino, estamos trabalhando o corredor, o Parque Nacional do Juruena, recém criado, também vai ser importante. Depois tem as terras indígenas Mundurucú, Caiabí.
Vocês se envolvem na preservação de outras áreas?
Vitória – Já conseguimos criar o Parque das Nascentes. Nós temos um trabalho muito grande de conservação nessa região, porque aquele modelo que iniciado na década de 70 não se sustentou. A Amazônia não vai ser ocupada daquela forma. Principalmente a nossa região, que é de terra firme, na parte alta da região amazônica. As terras são férteis e é por isso que tem esse problema do pessoal que quer ocupar, e derrubar mais do que deve. Eu sou ainda coordenadora do Proecotur a nível local, que é o projeto de desenvolvimento do ecoturismo na Amazônia legal. É um projeto que está meio parado no governo Lula, mas que tem todo um fundamento. Nós também já estamos trabalhando na zona de amortecimento do Parque do Cristalino, principalmente na porção sul. Existe todo um movimento de ongs trabalhando nesse corredor, para a implementação do parque e para esses novos negócios acontecerem. Eu acho que o Parque Cristalino, quando implementado, vai mudar a economia de Novo Mundo e de Alta Floresta.
O entorno de Alta Floresta já está muito devastado?
Vitória – Realmente. Alta Floresta mesmo já não tem mais floresta. A floresta que você vai ver é do parque, que está 20% dentro de Alta Floresta e 80% dentro do município de Novo Mundo, criado depois, em 1995. Em volta mesmo há muito pouco, são fragmentos florestais. A gente tem projeto também para fragmentos florestais, que apoiamos, da Universidade de East Anglia, na Inglaterra, que está estudando a quantidade de fauna que esses fragmentos conseguem segurar.
E o hotel que vocês têm dentro da cidade?
Vitória – O hotel Floresta Amazônica também é um exemplo, porque nós estamos em uma área de 60 hectares dentro da cidade. E com um ninho de harpias. Coisa mais linda. É uma benção. Não sei quanto tempo vai ficar. Uma harpia, normalmente, faz ninho oito, nove anos no mesmo lugar. Mas ali tem barulho de avião, tem barulho da cidade.
Como você lida com as pressões da sociedade?
Vitória – Muitas vezes você está numa reunião e fala da importância da conservação, de novos negócios que a região precisa conhecer. E estão surgindo novos negócios. Nós temos lá açúcar orgânico, café orgânico. Há um revigoramento dessa idéia de sustentabilidade. Nós temos hoje umas quatro ou cinco organizações ambientalistas trabalhando lá, fortes. Mas é um grande conflito para mim. Acontece que muitos me vêem como filha da pessoa que criou a cidade. Com a noção da época, de 1970, que era de ocupar, uma forma muitas vezes deturpada daquilo que o meu pai pregava. Meu pai nunca pregou o desmatamento total, em hipótese nenhuma. Na capa do contrato ia lá ‘preserve a sua castanheira. Ela é sua caderneta de poupança’. Mas, infelizmente, as pessoas compravam dois mil hectares, sendo que precisavam preservar mil. Só que elas vendiam mil e o outro que comprava preservava só 500. Meu pai não previu isso.
“EU ACREDITO NAQUILO QUE EU FAÇO. EU ACHO QUE É POSSÍVEL SER UMA EMPRESÁRIA CONSERVACIONISTA E AO MESMO TEMPO PRESERVAR PARA GANHAR DINHEIRO.”
Mas você sofre algum tipo de hostilidade por ter mudado de lado?
Vitória – Quando eu participo de alguma palestra na cidade as pessoas muitas vezes me acusam: ‘Como você vem agora falar em conservação, em ecoturismo? A gente veio aqui para ocupar e agora você fica atraindo a atenção do Ibama para cá!’. Eu sofro bastante pressão nesse sentido, mas fazer o quê? É o que eu acredito e não vou voltar atrás por medo. Eu acredito naquilo que eu faço. Eu acho que estou dando o exemplo de que é possível ser uma empresária conservacionista, e ao mesmo tempo preservar para ganhar dinheiro. Não que esteja dando tanto dinheiro assim, é mais pelo ideal, mas existe um futuro para isso.
A mentalidade não está mudando?
Vitória – É um processo lento. O prefeito e as pessoas da região não têm visão. A visão é imediatista. Não conseguem planejar.
Como é o relacionamento de vocês com o Parque do Cristalino?
Vitória – Faz anos que estamos trabalhando. Em 2003, o parque foi “seqüestrado” pelo governo federal, por um juiz federal, porque o governo do estado queria diminuir muito o parque. Ele havia sido criado por duas instâncias. Uma foi o Proecotur, por uma lei. E a parte de baixo era um decreto do Prodeagro, um projeto que também exigia áreas protegidas…
Por isso que se fala em Cristalino 1 e 2?
Vitória – Isso. Agora o doutor Marcos Machado é o novo presidente da Sema, a nova Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso, quis unir os dois parques. Isso agora está na Assembléia, o governador Blairo Maggi mandou a lei. É uma lei que nós, das ongs estamos apoiando. É uma lei que o Blairo Maggi está fazendo com boa vontade. Ele pôs o doutor Marcos Machado, que é promotor público e uma pessoa de altíssimo nível, para resolver não só o caso do Cristalino, mas outros problemas ambientais do estado.
O Blairo Maggi tornou-se um ambientalista?
Vitória – Ele não tinha a mínima noção de meio ambiente. Me parece que o doutor Marcos Machado o avisava e ele dizia ‘mas eu não sei o que eles fizeram’. Aí colocou o próprio Marcos Machado, que é um conservacionista, e que está educando o governador Blairo Maggi. O governador tem pelo menos procurado fazer as coisas direito. Agora, eu não posso dar um aval de toda a política ambiental do estado.
Assentamentos são um problema nessa área?
Vitória – Sim, na região de Novo Mundo. Na época do governo anterior, do Dante [de Oliveira], foi ele próprio quem criou os dois parques e também ele que quis diminuir. Foi quando nós fizemos varias audiências públicas.
Ele se arrependeu?
Vitória – Depois que fizemos as audiências públicas o parque acabou sendo seqüestrado, foi isso que segurou para ele não ser diminuído. Mas ficou um limbo porque ninguém sabia se era do Ibama, se era da Fema (a antiga Fundação Estadual de Meio Ambiente). Ficou numa situação complicada. Na época, para fazer pressão no parque, o próprio Dante colocou essas famílias, esses assentamentos, na área de amortecimento do parque, o que não era permissível. Mas é uma situação que pode ser controlada. Ainda há grandes áreas verdes no entorno do parque, mas você vê um governador fazendo uma coisa dessas para ter voto… Ele acabou perdendo a eleição. No fundo não adiantou nada.
A pavimentação da BR-163 vai afetar sua área?
Vitória – As cidades que estão no eixo da BR-163 já estão assistindo uma explosão. Alta Floresta está a mais ou menos 300 quilômetros da BR, então estamos um pouco mais preservados. Se for questão de conservação, foi melhor para Alta Floresta não estar na BR. Agora, Sinop, Colíder, Guarantã, que é a última cidade antes da divisa com o Pará, estão vendo esse movimento maior por causa da BR. Não sei o que vai ser.
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