Reportagens

O aviador ambientalista – com Gérard Moss

Gérard Moss, o aviador que colocou seu hobby a serviço do meio ambiente, embarca em projeto ambicioso: medir a influência da Amazônia nas chuvas do Sudeste e Centro Oeste.

Aldem Bourscheit · Gustavo Faleiros ·
6 de maio de 2008 · 17 anos atrás

Quando o garoto Gérard Moss, nascido na Suíça, começou a fazer seus primeiros vôos como piloto, aos 11 anos, ele não podia imaginar que isso o tornaria, no futuro, um defensor do meio ambiente. Foi durante sua lua de mel com a queniana Margi, entre 1989 e 1992, quando deram uma volta ao mundo em um monomotor, que Moss notou que a degradação ambiental já era um problema generalizado. “A cada vôo notávamos o avanço das monoculturas, do desmatamento e da ocupação do litoral.”

Radicado no Brasil desde os anos 1980, o casal Moss transformou o hobby da aviação em projetos de pesquisa e comunicação de questões ambientais. A água tem sido o foco principal da empreitada. Por anos viajaram no Projeto Brasil das Águas, onde coletaram, em hidroavião, amostras de rios nacionais para análises sobre qualidade d’água. Agora, Gérard embarca numa iniciativa um tanto radical, em parceria com pesquisadores do INPE – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Batizada de Rios Voadores, a pesquisa tenta quantificar a influência da umidade gerada na floresta amazônica sobre as chuvas nas regiões Sudeste e Centro-Oeste. “Isso possibilitará estipular valores para esses serviços ambientais da floresta. Isso tem que ser feito até para estimular investimentos públicos e privados na preservação ambiental”, argumenta.

Leia abaixo entrevista concedida pelo aviador em sua casa, em Brasília (DF).

Fale um pouco sobre sua história, sobre sua trajetória de aviador a ambientalista.

Gérard Moss – É quase um paradoxo. Em 1983 eu tinha uma empresa no Rio de Janeiro e trabalhava com exportação de soja para países asiáticos e norte-americanos. As exportações cresciam a cada ano. Foi um bom negócio, mas cheguei a um ponto onde queria ver outras coisas no mundo. Vendi a empresa, comprei um “aviãozinho” e fizemos [junto com a esposa Margi Moss] a primeira volta ao mundo, entre 1989 e 1992. Foi uma grande aventura, percorremos dezenas de países. A partir desse momento, ficamos cada vez mais ligados às questões ambientais. Ainda mais quando retornamos ao Brasil e começamos a voar pelo País. Naquela época já avistávamos que os estragos eram bem maiores do que se imaginava.

O que vocês avistaram, por exemplo?

Moss – A cada vôo notávamos o avanço das monoculturas, do desmatamento e da ocupação do litoral. Sobrevoando três ou quatro mil quilômetros, é impossível ver uma praia sem ninguém. E as tartarugas? E a vida marinha? Não há planejamento para manter algo intocado? Vamos ocupar todos os 8,5 mil quilômetros de costa?

E daí em diante?

Moss – Como gosto muito de voar, uni o agradável ao interessante e hoje uso o avião como uma plataforma de pesquisas e para dividir o privilégio de “ver tudo de cima”. Voando baixo, de uma “altitude humana”, conseguimos ver a vida do fazendeiro, ver as coisas acontecerem em vários pontos do Brasil. Na segunda volta ao mundo, em 2001, um grande desafio aeronáutico com um motoplanador, levantamos um número impressionante de dados sobre Ozônio (O3) em baixa altitude. Na época, se falava pouco sobre aquecimento global. A partir dessa aventura, descobrimos o potencial do avião para monitoramentos e pesquisas. Em seguida, montamos o Projeto Brasil das Águas.

Por que a temática da água?

Moss – Porque queríamos mostrar a todos os brasileiros que este, antes de tudo, é um País de águas. O futuro do Brasil, da agricultura e da indústria, passa pela preservação desse recurso natural. Percebíamos há bastante tempo que, tanto o brasileiro comum quanto seus dirigentes, não estão nem aí para questões como qualidade de água, de conservação dessa riqueza. Para muita gente, água é só uma coisa que se joga fora.

Depois do Brasil das Águas, você percebeu alguma mudança nessa visão?

Moss -Pode-se dizer que houve alguma conscientização. Não sou especialista em política, mas no Brasil, até agora, por exemplo, não caiu a ficha do necessário investimento em saneamento básico. Acredito que mudanças só ocorrerão com a mobilização da população, cobrando ações concretas dos dirigentes.

Esse “mau trato” com a água atrapalhou a busca de informações ou o planejamento de algum projeto?

Moss – Não. A informação existe. Também temos uma parceria de muitos anos com a Agência Nacional de Águas – ANA. Meu conhecimento é menos científico e mais prático, por isso o planejamento do Brasil das Águas foi feito para se montar uma “fotografia no tempo”. Com o projeto, avaliamos 45 parâmetros das águas coletadas, alguns muito úteis, outros menos. Percorremos mais de 1,1 mil pontos monitorando várias regiões do País. E como nem todas as pessoas teriam acesso aos resultados da iniciativa, passamos a atuar com foco em sete rios e voltamos a alguns locais, levando informações para aproximar ainda mais as populações dos mananciais. Muitos ribeirinhos ficaram impressionados com as imagens aéreas de seus rios. Passaram a ter outra dimensão de suas realidades.

Essa imagem de fartura de água no Brasil atrapalha?

Moss – Bem, realmente há bastante água (risos), mas longe dos grandes centros urbanos. Podemos dizer que a situação do Brasil não é desastrosa como a da China, falando de qualidade de água, porque não tivemos tempo de chegar lá. A realidade dos investimentos em saneamento é péssima, mesmo sabendo do retorno certo em saúde pública.

Sobre o Projeto Rios Voadores, você ficará frustrado se os resultados mostrarem que a Amazônia pouco influi nas chuvas que caem em outras regiões do Brasil?

Moss – Não. Projetos como esse são investimentos com objetivos, de divulgar a Ciência, de mostrar a figura de um “rio voador” (umidade circulando pela atmosfera). Segundo cálculos do professor Enéas Salati (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho), em torno de 40% a 50% da umidade que chega ao Sudeste vem do Norte. Minha expectativa é de que as medições comprovem isso. Mesmo se for menos, se for 10%, é tudo o que o paulista não sabe da sua dependência da floresta amazônica em pé. O importante é comprovar esse percentual cientificamente.

Como comunicar algo como um fluxo de umidade circulando pela atmosfera do País? Será possível colocar valor nesse serviço ambiental?

Moss – Já estamos conseguindo isso com a idéia do “rio voador” e com a ajuda de nossos apoiadores. Um próximo passo será definir qual a dependência de regiões e de algumas cidades da umidade amazônica. Isso possibilitará estipular valores para esses serviços ambientais da floresta. Isso tem que ser feito até para estimular investimentos públicos e privados na preservação ambiental.

O aquecimento global impôs uma nova perspectiva ao seu trabalho?

Moss – Em tudo na vida, há excessos. Acho que há muitas perguntas sobre as mudanças climáticas ainda não respondidas. Mas o aquecimento global tem demonstrado, positivamente, que o mundo é cada vez mais interligado – não se pode causar algum impacto na Amazônia sem afetar outras regiões e vice-versa. O Al Gore é criticado porque alguns de seus dados não seriam 100% corretos. Tanto faz, o efeito que ele teve no mundo inteiro é de enorme valor. No Brasil, estamos em uma situação interessante, pois as mudanças climáticas estão ajudando a mostrar a necessidade da preservação ambiental. O maior desafio do País é limitar ao máximo ou parar o desmatamento na Amazônia. Não faz qualquer sentido seguir desmatando. O Brasil deveria chegar a essa conclusão sozinho, reconhecer que é melhor usar terras degradadas, por exemplo. Agora temos a vertente das mudanças climáticas que praticamente nos obrigará a fazer o que, no fundo, é bom para a gente. Estudos mostram que 60% da energia solar que cai sobre a Amazônia é usada para evaporação. Sem floresta, é claro, o ar ficará mais quente. Acho que haverá uma pressão internacional muito forte sobre o Brasil para mudar seu quadro de desmatamento.

Por que o Brasil não olha “para fora”, para alguns péssimos exemplos de países que acabaram com suas florestas e freia a destruição aqui dentro?

Moss – Muitos exemplos não servem para a gente. A questão hoje é que o brasileiro comum não se dá conta da importância da questão do desmatamento, das mudanças que isso provocará em sua vida. Logo, não há pressão pública para que se pare com a destruição.

Mas muitas pesquisas de opinião mostram o que seria uma conscientização crescente dos brasileiros sobre questões ambientais.

Moss – Ainda falta ação. Mas chega um ponto no qual a população exigirá algo de concreto de seus governantes. Parece que a democracia funciona dessa forma.

Você acredita em desenvolvimento sustentável? Já viu algum exemplo prático?

Moss – A questão é difícil. Hoje em dia, sustentável é uma palavra da moda, mas sustentável para quê ou para quem? Mas minha opinião é que deveriam ser alocadas algumas regiões para desenvolvimento, inclusive na Floresta Amazônica, e manter algumas regiões intocadas. Talvez seja esse o “sacrifício” que tenhamos de fazer. Por que não manter alguns rios sem nenhuma barragem e implementar mais usinas em outros? O Rio Araguaia, por exemplo, não tem nenhuma represa. Em outros países, todos os grandes rios foram barrados. Pode parecer drástico, mas talvez seja uma maneira de se manter áreas intactas.

Mas o Araguaia, mesmo sem represas, está perecendo com suas nascentes tomadas por voçorocas.

Moss – É verdade (risos)… Estamos (ambientalistas) batalhando em todas as frentes e perdendo em todas as frentes.

É que no Brasil, ambientalista virou sinônimo de chato. Além disso, são minoria no governo, na sociedade, em tudo.

Moss – Acho que tem que negociar, sempre. Se uma represa vai existir no fim de um processo de licenciamento, é preciso negociar para reduzir seus impactos. Temos que ter empreendimentos, é claro, mas é preciso debater para que algumas regiões fiquem intactas. Um instrumento seria o zoneamento ecológico-econômico.

Que até hoje não foi feito para toda a Amazônia Legal.

Moss – Sim, só alguns estados, como Rondônia. Li que o estado iria sugerir um zoneamento onde, em algumas regiões, se poderia desmatar 80%, em outras 50% e assim por diante. Parece melhor do que o que se tem hoje.

Uma pergunta mais técnica: os aviões que vocês usam são importados ou nacionais modificados?

Moss – Um deles é fabricado pela Embraer, quando a empresa ainda fabricava aviões pequenos, hoje só jatos. Esse é normal, muito econômico, recebeu apenas um equipamento para captação de água e umidade, necessário ao Projeto Rios Voadores. É o mesmo que usamos para a primeira volta ao mundo. É a única aeronave que conheço que sobrevoou mais de cem países. Já o hidrovião, usado no Brasil das Águas, é importado dos Estados Unidos. No Brasil, cheio de rios, não se fabricam esses modelos.

Como se planeja uma volta ao mundo ou um projeto como Brasil das Águas?

Moss – Sempre levamos equipamento para sobrevivência, já que não sabemos se conseguiremos decolar de volta no mesmo dia. Carregamos comida para três ou quatro dias, equipamentos de cozinha, às vezes barracas; na Amazônia costumamos usar redes de selva. Hoje em dia, temos Internet e telefone via satélite. Pousados em um lago distante 500 quilômetros de Manaus (AM), podemos até pedir uma pizza (risos). São equipamentos de segurança fantásticos.

De todos os vôos sobre o Brasil, quais você destaca?

Moss – Os mais interessantes aconteceram na Amazônia. É mágico mesmo. Lá são poucos os aviões que voam, e mais raros os hidroaviões, que podem chegar a todos os recantos. Um hidroavião é quase uma máquina no tempo. Em poucas horas você pode alcançar pessoas que pouco sabem da sociedade atual, e, depois, retornar à “realidade”. A tristeza é ver uma queimada de perto, vimos milhares. O cara que tocou fogo não se dá conta de que seu ato afetará a qualidade do ar e a vida de outras pessoas. Na época das queimadas, quando decolamos de São Paulo em direção ao Mato Grosso, na viagem já se sente o cheiro da fumaça. Choca ver os animais correndo, ver os estragos depois do fogo. Alguns vôos são arriscados, principalmente com o hidroavião. Podem haver troncos, cabos ou outros obstáculos sob a água. Cada pouso tem potencial para dar errado.

Em seus vôos, se avistam queimadas e outras ilegalidades a todo momento. Por que será que o governo não faz o mesmo, sobrevoa e marca pontos para ação?

Moss – Voltamos à questão inicial, falta vontade para melhorar a situação. Há tantas coisas erradas, ainda existem créditos para desmatamento e não para quem quer preservar a floresta. Existe o Incra, que gera impactos enormes em algumas regiões com seus assentamentos. Existe um mecanismo que faz com que o desmatamento seja sempre rentável do ponto de vista comercial. Por que a terra é tão barata na Amazônia? Se a terra fosse vendida dentro de um outro contexto, ligado ao valor dos serviços ambientais e à biodiversidade, seria muito mais cara. Daí, talvez não compensasse mais derrubar novas áreas a cada ano. Não existe comprometimento sério de nossos dirigentes para mudar tudo isso.

Alguns setores questionaram os últimos números do Inpe, que apontam para a volta das antigas taxas de desmate na Amazônia. Você que vê a Amazônia de cima, também acha que as derrubadas voltaram?

Moss – Eu voei justamente no último período de seca, das queimadas, sobre Rondônia e Mato Grosso, entre outubro e setembro. No trajeto, avistamos muitas e muitas queimadas. Alguns aeroportos estavam até fechados. Nunca voei nessa época com tanta fumaça. Para mim, não se trata de redução do desmatamento.

Quais as próximas rotas do Rios Voadores?

Moss – Pela frente, temos dois tipos de vôos: repetir alguns trajetos para tentar novamente acompanhar uma massa de ar da Amazônia ao Sudeste; e também por outras regiões, como o Pantanal. Mas tudo isso será mais bem definido. O interessante é, às vezes, voar sobre a Amazônia com céu totalmente limpo e umidade baixa e, de repente, cruzar com grandes massas de umidade. Nota-se que há uma concentração de umidade em movimento. Este ano também quero fazer vôos diários sobre áreas de soja, de floresta e de pasto e comparar as diferenças de umidade. Mas isso precisa de melhor calibragem dos equipamentos que medem os isótopos – espécie de DNA – da água. Tudo é novidade, tudo é descoberta.

E quando será a próxima volta ao mundo?

Moss – Tenho o sonho de fazer uma nova volta no globo com um avião movido à energia solar. É um desafio maravilhoso, colocaria o Brasil de novo no mapa, mas o que isso mudaria para as próximas gerações? Talvez o Rios Voadores consiga alguma coisa. É preciso se disciplinar e não deixar esses sonhos pessoais sobrepujarem coisas mais concretas.

  • Aldem Bourscheit

    Jornalista cobrindo há mais de duas décadas temas como Conservação da Natureza, Crimes contra a Vida Selvagem, Ciência, Agron...

  • Gustavo Faleiros

    Editor da Rainforest Investigations Network (RIN). Co-fundador do InfoAmazonia e entusiasta do geojornalismo. Baterista dos Eventos Extremos

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