O analista de sistemas Armando Gonçalves Júnior, de 38 anos, dedicou quinze deles a ver e sentir de perto o significado da expressão “rio da integração nacional”, que acompanha o São Francisco e ultimamente tem servido à defesa da mega-obra da transposição.
Poucos, pouquíssimos mesmo puderam conhecer na intimidade o rio que evidencia, na imensidão de 2.863 quilômetros de extensão, a diversidade do país por onde escorre. No ano passado, por dois meses, Júnior navegou solitariamente as águas do São Francisco, da nascente à foz, numa empreitada que planejou como se fosse expert (veja o projeto, em pdf), com a persistência de um apaixonado pela natureza.
A idéia de navegar o São Francisco de ponta a ponta foi vislumbrada em 1989, longe do rio, em meio a uma caminhada de dois dias pela Serra do Mar, entre a capital paulista e Santos. Com a cabeça nas nuvens, Júnior concebeu a nova aventura, mas não podia imaginar que o “insight” consumiria quinze anos de sua vida. Entretanto, não fez do tempo um inimigo ou um destruidor de sonhos. Ao contrário, cuidou para que tudo acontecesse, fosse no dia em que fosse, de um jeito especial e profissional. Passou todos esses anos lendo tudo o que podia sobre o rio, estudando com cautela as cartas topográficas compradas do IBGE, preparando-se física e psicologicamente, realizando cursos de primeiros socorros, de resgate, de sobrevivência na selva, de arrais (mestre de barco), de mergulho, de escalada, de caiaque, de fotografia, de asa delta. Tudo isso, numa época em que esportes radicais e de aventura não eram nem de longe a moda de agora.
Na agitação do cotidiano, o paulistano só não encontrava tempo suficiente para iniciar o que poderia durar, num planejamento de muita folga, quatro meses. Depois de cinco anos sem férias, em 2003, ele decidiu que a chegara o momento. A decisão teve um ingrediente surpresa. Um ano antes, Júnior mudou-se para Belo Horizonte, para realizar um trabalho de consultoria. A intenção era ficar apenas tempo suficiente para terminar o serviço, mas ele foi flechado pelo cupido e, desde então, divide-se entre Santos e a capital mineira, onde ainda reside sua mulher, Fernanda. O forte laço criado em Minas Gerais impulsionou a aventura.
“Quando comecei a pensar nisso, eu só conhecia o São Francisco das aulas de Geografia e nem me lembrava de onde ele começava ou terminava”, admite Júnior. Na preparação da viagem, ele encontrou na “canoa canadense” o tipo de embarcação ideal. Encomendou em São Paulo um exemplar adaptado às necessidades especiais do trajeto. Para se acostumar à canoa, passou seis meses remando, nos fins de semana, na represa Várzea das Flores, próxima a Belo Horizonte. A canoa foi batizada de “Tio Zé” (foto), em homenagem ao parente que seguiria com ele a viagem, mas faleceu meses antes num acidente de trânsito. Na recente contabilidade da aventura, chegou à conta de R$ 20 mil, descartado todo o investimento pessoal feito ao longo da última década. Os apoiadores que constam em seu site ajudaram a encontrar cada equipamento necessário e organizar a viagem, mas o dinheiro veio todo do próprio bolso.
Em 31 de julho de 2004, Júnior entrou no Parque Nacional da Serra da Canastra, em São Roque de Minas, no Alto São Francisco, iniciando a viagem exatamente de onde nasce o rio, mais de mil metros acima do nível do mar. Ali já pôde perceber o acerto de suas escolhas. A leveza da canoa e dos equipamentos – do fogão ao GPS – era fundamental para a missão que incluiria difíceis caminhadas e escaladas, por causa de corredeiras e cachoeiras. Ainda no Parque, teve que vencer muitos quilômetros a pé. Grande parte do acesso à área da nascente é fechado à visitação. A restrição tem amparo na preservação da vida, pois uma espécie de pato-mergulhão ameaçada de desaparecer se reproduz na área.
Dois dias após colocar a canoa na água, o primeiro imprevisto. Júnior deu uma “bobeira” num trecho de intensas corredeiras e a canoa virou. O efeito “joão bobo” imposto ao projeto da canoa salvou todo equipamento amarrado a ela, mas não livrou o aventureiro do primeiro dano material. Ao bater fortemente numa pedra, a canoa ganhou um furo lateral, exatamente onde não era revestida de fibras de aramina, material de grande resistência, utilizado também em coletes do exército norte-americano. “Imaginei que a viagem estava perdida, mas eu tinha o necessário para consertar o estrago e continuar a remar”, lembra ele.
A receptividade ribeirinha encantou Júnior. No enorme trajeto, ele encontrou manifestações solidárias o tempo todo. Pronto para dormir em barraca ou em rede, não foram poucas as vezes que trocou o desconforto por uma cama, por mais simples que fosse, em propriedades à margem do São Francisco. “Cheguei a ficar cinco dias sem ver ninguém no rio, mas quando encontrava era gente muito amável”, lembra.
Nem por isso o analista livrou-se de momentos de tensão, como na divisa entre Bahia e Pernambuco, no conhecido Polígono da Maconha. As recomendações eram todas no sentido que de que ele não se arriscasse, porque poderia ser morto. Segundo Júnior, todos na área falam das plantações da erva ali existentes, mas ninguém diz onde estão realmente e qual o tamanho real do perigo. Em Juazeiro (BA), um oficial da Marinha o alertou sem meias-palavras. A tática utilizada por Júnior para prosseguir foi usar de muita conversa com pescadores nos povoados e paradas somente onde o medo não era ressaltado. Nada de acampar em ilhas ou em lugares onde não havia energia elétrica. A companhia de pescadores era um escudo eficiente.
Durante todo o percurso, apenas um trecho de cerca de 70 quilômetros, antes da Usina de Paulo Afonso, foi percorrido por terra. Isso sem contar as travessias nas usinas instaladas no rio, pois a única que possui eclusa é a de Sobradinho (BA). Nas outras cinco – Três Marias (MG), Paulo Afonso (BA/AL), Itaparica (BA/PE), Apolônio Sales (BA/AL) e Xingó (SE/AL) – é preciso vencer as obras das barragens e atravessar os paredões com a canoa nas costas.
Em Sobradinho, a dificuldade foi outra. “O pessoal da Chesf (Companhia Hidroelétrica do São Francisco) já tinha me avisado e eu tinha lido sobre o assunto, mas só pude acreditar quando estava lá”, afirma. As ondas que se formam no lago da hidrelétrica alcançam, segundo ele, dois metros e se formam com tamanha força que impedem o tráfego de embarcações pequenas como uma canoa. Em outros lagos represados também se formam ondas, mas não com tanta intensidade. Ainda no início da viagem, em Três Marias, Júnior passou maus pedaços equilibrando-se em ondas que enchiam a canoa de água. Em Sobradinho, foi preciso embarcar em “empurradores de soja”, uma espécie de navio que faz o transporte das safras no rio.
Nenhuma dificuldade, entretanto, impediu o que mais Júnior privilegiou nas remadas, que perfaziam até 45 quilômetros por dia: a contemplação de uma natureza exuberante, ainda que degradada em tantas e tantas regiões por onde o rio passa. “É impressionante a beleza do São Francisco. Algo difícil de descrever, porque você se surpreende a todo instante”, constata ele. A degradação é sentida pelo mau cheiro das águas, pelas milhares de garrafas “pet” que transformam a paisagem num mundo de plástico, pelas dezenas de carcaças de gado e várias outras formas de poluição.
Nada disso detém a força do São Francisco, acredita Júnior. No percurso, ele observou a incrível diversidade de um rio que atravessa o cerrado, a caatinga, áreas de florestas (8% do Vale São Francisco) e de reflorestamento. “É incrível a capacidade de recuperação do rio. Ao mesmo tempo que você quase morre por causa da poluição no encontro dele com o rio das Velhas, em Minas, percebe o tempo inteiro a presença de garças, lontras, tartarugas e peixes”, assinala.
Outro detalhe chamou a atenção de Júnior: em toda a calha do rio, a população bebe de sua água, mesmo nos lugares onde ela é visivelmente de péssima qualidade. “Eu tinha filtro e produtos químicos para tratar a água que bebia, mas os ribeirinhos se servem do São Francisco sem ligar, ou ter como ligar, para a poluição contida nele”, diz. Na viagem, o canoeiro foi coletando amostras da água e o material está sendo analisado por um grupo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP). “Vi tanta miséria na beira do rio, gente que só vive da mandioca que planta no fundo do quintal e de uma vaca magra que dá o leite do dia. Gente que vive sem energia elétrica, gente que te chama para almoçar e pede para você aguardar a pesca que vai ser feita na hora”, lembra. Acesso à água, como se vê, não garante inclusão social.
Júnior testemunhou os efeitos da degradação provocada pelas fazendas de gado que, com o corte das matas ciliares – para facilitar o acesso de bois e vacas à margem –, provoca o assoreamento do rio. Viu também as dezenas de bombas instaladas nas margens, protegidas às vezes por edificações de dois andares, que retiram a água para abastecer grandes projetos agrícolas. Quando fala sobre o projeto de transposição do São Francisco, cujo processo de licitação já foi iniciado pelo governo federal, o analista de sistemas é cauteloso. Diz que não conhece em profundidade a proposta, mas revela um sentimento de preocupação. “Eu penso que os benefícios não chegarão àqueles que mais precisam”.
O encontro de Júnior com a foz do rio, depois de exatos 61 dias de navegação, aconteceu em 29 de setembro. “No Baixo São Francisco, já na proximidade da foz, na fronteira de Alagoas com Sergipe, tive que remar vários dias à noite, quando o vento forte dava trégua”, relembra. Começava a remar às três da madrugada e era obrigado a parar às nove.
No último dia da aventura, na altura da cidade de Penedo (AL), avançou para além da curva que revela Piaçabuçu, onde o mar se abre para o São Francisco. “Era por volta de uma hora da tarde. Foi uma emoção enorme. Pensei naquela hora o quanto era bom saber que tudo havia dado certo, que eu estava chegando ao final de um sonho de quinze anos”, diz. Em Piaçabuçu, ele encontrou a mulher Fernanda e arrumou forças para entrar num carro e viajar por praias e cidades do nordeste. Hoje, enquanto acalenta o desejo de realizar outras expedições, está embalando um novo sonho, marcado para agosto: a chegada do primeiro filho.
* Roselena Nicolau é mineira de Belo Horizonte e jornalista. Foi repórter do Jornal do Brasil por 12 anos é correspondente da Agência Sebrae de Notícias.
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