Reportagens

Vizinho é pra essas coisas

Para garantir a água de seus lares, moradores defenderam floresta em Petrópolis (RJ) por conta própria durante 22 anos. Agora a área vai ser doada para o Ibama.

Juliana Fernandes ·
10 de junho de 2005 · 19 anos atrás

Depois de 22 anos de trabalho árduo em defesa da Reserva Ecológica do Alcobaça, em Petrópolis, região serrana do Rio, 10 mil moradores de vilas e loteamentos no entorno da floresta já podem comemorar. A área vai passar da responsabilidade da Caixa Econômica Federal para o Ibama. A doação do terreno de 2.280.000 metros quadrados será formalizada ainda este mês e a previsão é que até dezembro o terreno seja incorporado ao Parque Nacional da Serra dos Órgãos.

A transferência da área era um sonho acalentado pelos moradores desde a década de 70, quando a Companhia Petropolitana, maior fábrica de tecidos da região, faliu. A empresa pertencia a José Soares Maciel Filho, homem de confiança de Getúlio Vargas, e era dona da Fazenda Alcobaça, onde está a reserva que abastecia a fábrica e ainda hoje abastece as casas de ex-operários e filhos de ex-operários da companhia. Com a falência, os proprietários se desfizeram do patrimônio e parte da floresta foi repassada ao antigo Banco Nacional de Habitação (BNH), para pagar dívidas que tinham com a União.

Em 1981, depois de uma enchente que deixou centenas de desabrigados na cidade, surgiu um clamor para que o BNH construísse casas populares para atender as vítimas da chuva. Ignorando que a área era de preservação permanente reconhecida por decreto do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF, extinto para dar lugar ao Ibama), o banco decidiu erguer ali as construções. O projeto inicial previa 1.500 casas, o que, além de destruir a floresta, prejudicaria o abastecimento de água na região.

“Na época, a floresta era uma área vulnerável porque desde a falência da fábrica não havia ali mais nenhum guarda ou bombeiro. Um dia uma moradora descobriu, durante um passeio na floresta, que já havia tratores derrubando árvores na região. Era o início dos trabalhos do BNH para construção das casas populares”, lembra Wilma Borsato, 70 anos, que nasceu no bairro Cascatinha, vizinho à reserva, e é uma das pioneiras na luta pela sua preservação. O caso foi denunciado à Polícia Federal e os moradores entraram com uma ação judicial contra o BNH. A obra foi embargada e, pelo menos duas grandes passeatas depois, a comunidade saiu vitoriosa: a Justiça determinou que era proibido construir casas na região da Reserva do Alcobaça.

Organizados primeiro em uma Comissão de Defesa da Floresta, e depois em uma Associação formalizada, os moradores do Alcobaça adotaram medidas para preservar a mata e seus mananciais. Os grupo passou mais de duas décadas tirando do próprio bolso o dinheiro para pagar a fiscalização da área por guardas florestais. É a água que sai da mata que abastece pelo menos 22% das casas do bairro Cascatinha, o que equivale a todas as construções da chamada Vila Operária e de dois loteamentos conhecidos como Nova Cascatinha.

Wilma se lembra de cada passo da mobilização que resultou numa floresta protegida por tanto tempo. “Passamos a nos reunir uma vez por mês no salão da igreja do bairro para falarmos sobre a floresta e recolher dos associados um valor referente a 1% do salário mínimo. O dinheiro servia para pagarmos três guardas que fiscalizavam o uso da floresta, impedindo o desmatamento, o despejo de lixo e o banho nas águas, e para a realização de um aceiro, feito uma vez por ano para evitar queimadas”, explica ela, que está contando toda essa história em um livro sobre o bairro, que pretende lançar ainda este ano.

O esforço popular começou a dar resultados. Juntos, os moradores organizaram a distribuição da água. Reuniram os canos que abasteciam a comunidade em um único ponto de captação, onde foi construída uma pequena barragem, e começaram a lutar para que a Floresta da Alcobaça, que se estende até os municípios de Magé e Teresópolis, fosse reconhecida como Reserva Ecológica. Em 1986, após a extinção do BNH, o terreno passou para a responsabilidade de Caixa Econômica Federal. O reconhecimento da Reserva do Alcobaça veio em maio de 1989.

Mas quem cuida da Reserva ainda são os moradores. A associação cobra R$ 3,50 mensais para cada terreno de 360 metros quadrados. “A transferência do terreno para o Ibama nos dá a segurança que procurávamos. Nosso maior medo era que, um dia, não conseguíssemos mais a mesma mobilização popular e perdêssemos força. Agora, com o Governo Federal, teremos a garantia de que ninguém vai tocar na mata”, acredita Roseane Borsato, 45 anos, filha de Wilma, lembrando que a luta comunitária fez dos moradores defensores da natureza. “Hoje, no bairro, ninguém pensa que a água sai da parede. Todos, até as crianças, sabem o caminho que ela tem que fazer para chegar até nossas casas. Eles sabem também que, se não preservarmos esse caminho, uma hora a água acaba”, explica.

Presidente da Associação de Defesa dos Mananciais do Alcobaça (ADMA), Luiz Augusto Rodrigues, 56 anos, vinte deles vividos no Cascatinha, espera que agora o Ibama impeça as tentativas de invasão. “Sempre fizemos um trabalho voluntário, mas sentíamos falta de algo mais técnico, mais profissional. Com o Ibama, a floresta estará mais protegida e mais segura”, considera.

Para o chefe do Parque Nacional da Serra dos Órgãos, Ernesto Viveiros, a luta da comunidade do Cascatinha é um exemplo a ser seguido. “A doação da Reserva Ecológica do Alcobaça é o primeiro passo para a ampliação do Parque. Hoje nossa área não é suficiente para o trabalho que queremos desenvolver para a preservação de espécies como o muriqui (maior primata das Américas). A Reserva do Alcobaça será a primeira de outras a ser incorporada. Já estamos fazendo um levantamento de áreas no entorno para ver se também podemos integrá-las. Esperamos que, mesmo depois da transferência da área para o Ibama, a comunidade continue tendo compromisso com a preservação. Queremos que os moradores sejam nossos parceiros”, avisa Viveiros. Por isso, ressalta ele, o processo de incorporação do terreno levará em conta suas necessidades, em especial o consumo da água do manancial. Nada mais justo, para quem sempre cuidou da floresta tão bem.

* Juliana Fernandes é jornalista recém-formada e mora em Petrópolis (RJ). Trabalhou como repórter da editoria de interior do Jornal O Dia.

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Comentários 2

  1. Genezio diz:

    Este valor de um por cento do salario mínimo estipulado pela Sr. Wilma Borsato é suficiente para todas as despesas necessárias relacionadas a ADMA.


  2. Genezio diz:

    Acho justo que continue a cobrança de um por cento do salario mínimo de cada morador que dá com sobra para preservação da mata,manancial e manutenção dos mesmos.