Quatro amplos restaurantes e um centro médico para uma cidade de 10 mil habitantes não soam mal. Três laguinhos artificiais, praças, gramados a perder de vista, bancas de jornal, ruas com nome de árvores nativas de mata atlântica e, em circulação, apenas bicicletas. Com a praia a poucos minutos dali, a brisa é constante e refrescante. As construções são baixas, bem arejadas, iluminadas e coloridas. “Já vi gente passando pela estrada e perguntando se estamos num resort”, brinca João Alecrim, que freqüenta religiosamente o local. Não é. Trata-se do Complexo Industrial Ford Nordeste, em Camaçari, região metropolitana de Salvador.
Todos os dias pela manhã, o assessor de imprensa Alecrim sai da capital baiana e em cerca de uma hora chega em seu aprazível local de trabalho. Com 4,7 milhões de m2, a montadora é quase um oásis entre as demais empresas do maior complexo industrial integrado do hemisfério sul. Ali estão a Petroquímica Braskem, a ITF Chemical Ltda, a Ambev, a White Martins Gases Industriais, a Monsanto Nordeste e muitas outras companhias que enfeitam o céu da Bahia com uma nuvem de fumaça vista a quilômetros de distância. Mesmo assim, a instalação da Ford foi vantajosa. Na ocasião, o terreno já estava terraplanado e com uma licença ambiental para uma outra montadora que desistiu de ocupar o local na última hora.
Mas a facilidade teve seu preço. Hoje, a companhia quebra a cabeça para conseguir fixar grama no terreno mexido. Quando chove, a área fica totalmente alagadiça. Os US$ 1,9 bilhão que viabilizaram a construção do complexo da Ford também não levaram em conta despesas extras em ações de combate às moscas. “Esses insetos já são bastante comuns nesta região, mas a existência de dois aterros sanitários bem próximos à fábrica agrava a situação”, diz Paulo Mattos, coordenador ambiental da unidade. Para controlá-las, a Ford deixa armadilhas feitas com extrato de camarão em pontos estratégicos dos prédios. Também investe dinheiro para se proteger do vento na região. “Tentamos plantar eucaliptos enfileirados para que o vento não danificasse os carros recém pintados, mas não deu certo”, conta Mattos. Num futuro próximo, a Ford planeja tornar a área mais interessante do ponto de vista ecológico. “Queremos trocar tudo por espécies de mata atlântica”.
Esse novo plantio seria um passo a mais para completar um cinturão verde de 7 milhões de m2 que envolve todo complexo da fábrica. Até agora, foram plantadas 260 mil mudas de espécies nativas, escolhidas com cuidado depois de um inventário da fauna e da flora locais realizado por pesquisadores da Universidade Federal da Bahia. A Ford cultiva suas próprias plantas em um viveiro para 100 mil mudas por ano. Mesmo assim, dentro do complexo ainda não existem grandes árvores. “Elas ainda são muito recentes. Começaram a ser plantadas em 2001, quando a fábrica foi inaugurada”, explica Mattos.
Enquanto a Ford aguarda o crescimento das árvores, outras práticas ambientais funcionam a todo vapor e tornam a fábrica baiana a mais moderna e eco-eficiente da multinacional norte-americana. Conseguiu esse status porque o primeiro complexo automotivo do nordeste já nasceu diferente. A Ford e as outras 27 empresas fornecedoras de equipamentos que trabalham dentro do complexo foram certificadas pela norma ambiental ISO 14001 ao mesmo tempo. “Não temos notícia de outra certificação coletiva assim”, comenta Edmir Mesz, gerente de meio ambiente da Ford na América do Sul. “Em Camaçari, a Ford teve a oportunidade de iniciar uma fábrica nova já adotando as mais modernas técnicas de eco-building e os conceitos mais atuais de eco-eficiência”, diz Alecrim. Os exemplos são vários.
As sobras de comida dos restaurantes têm destino certo: vão pra debaixo da terra, onde são decompostas por bactérias e se transformam em adubo, que por sua vez é reutilizado nos plantios. A água da chuva também não fica ao léu. Tudo é encaminhado aos lagos artificiais que começam a atrair garças, quero-queros, patos selvagens e carcarás. Os outros pássaros que embelezam os jardins do complexo vêm atrás das plantações de arroz e papiros, que só estão dentro da Ford porque têm a importante missão de tratar os efluentes sanitários.
Ainda em caráter experimental, o sistema de wetlands consegue tratar 10% de todo esgoto produzido no complexo através da filtragem dos efluentes no solo e em tanques menores preenchidos com brita. O resto vai para a Central de Tratamento de Efluentes Líquidos do pólo de Camaçari (Cetrel), que também recebe todos os resíduos industriais da Ford. “Aqui os efluentes são transferidos de ambiente em ambiente sem o uso de bombas, só pelo efeito da gravidade.” Dessa maneira, a Ford trata um litro por segundo de água, que é reaproveitada para irrigação dos gramados e em outros serviços dentro do complexo. “Ao final do processo, é possível retirar 98% da carga orgânica do efluente e 99% dos coliformes fecais”, diz Mattos.
E em Camaçari nem os pinguinhos do ar condicionado são desperdiçados. Os prédios do complexo são equipados para recolher toda água e redirecioná-la ao setor de pintura. Ela, então, é colocada em pranchas que cobrem o chão onde os carros recebem as camadas de cor, que, por sinal, tem desperdício quase zerado. A pintura é feita por meio de atração eletrônica. É simples. A tinta recebe uma carga elétrica negativa e o carro uma outra positiva. Quando o jato dispara os corantes, eles são automaticamente atraídos para o automóvel que passa pelas esteiras da montadora. Resultado: pouquíssimas partículas ficam suspensas no ar. E justamente para tentar capturá-las é que existem as pranchas com água de ar condicionado. “A tinta recai sobre a água e depois pode ser usada como segunda mão”, diz, orgulhosa, a gerente do setor de pintura Stella Tomitsuka.
A satisfação de Stella é justificada. Ela responde pelo setor onde se concentram os maiores controles ambientais da fábrica. É o que mexe mais com substâncias nocivas à atmosfera. A gerente fala com firmeza do sucesso de um equipamento chamado Regenerador Térmico Oxidativo, um sistema de purificação do ar que reduz 96% dos compostos orgânicos gerados nas estufas de pintura, além da opção da Ford em usar tintas com base d’água. “Mesmo sendo mais difícil de pintar, é obrigação da empresa não usar metais pesados”, diz. Depois de incinerados a 850 graus Celsius no regenerador, os compostos viram apenas água e gás carbônico. “Eu adoro meio ambiente, vim pra cá por causa disso”, diz a gerente que trocou São Paulo pela Bahia sem pensar duas vezes.
Mas Stella é raridade na fábrica de Camaçari. Não pela convicção acerca do meio ambiente, mas por sua origem. Cerca de 90% dos funcionários são moradores da região. Desse número, 80% vivem a menos de 10 km do trabalho. “Na época da instalação da fábrica não havia por aqui profissionais qualificados para a indústria automotiva, por isso um amplo programa de treinamento de 900 horas foi implementado para preparar os empregados”, diz Alecrim. Com o ensino médio completo, 60% dos funcionários conseguiram na Ford seu primeiro emprego, o que explica a tão baixa média de idade dos trabalhadores: só 26 anos. Outro aspecto notável é a quantidade de mulheres empregadas no complexo automotivo. Elas respondem por 35% da mão-de-obra e desempenham funções tão diversas quanto mexer com chapas de metal na primeira fase da linha de montagem até coordenar equipes inteiras.
Dentro dos escritórios e dos refeitórios, a luz vem das janelas e, até quando o tempo está fechado, a iluminação interna raramente é acionada. Em ambientes refrigerados, o ar frio sai do chão para economizar energia. E, quando ele não é necessário, o teto traz aberturas laterais estratégicas para a ventilação. Para se deslocar entre um setor e outro eles dispõem de bicicletas – bicicletas Ford. Mas se quiserem ir a pé, encontram pelo caminho calçamento e gramados convidativos para um passeio. Ainda do lado de fora, banca de jornal e assentos para uma brevíssima sesta nos intervalos. Excelente para o merecido descanso do baiano, que pega no pesado até a sineta tocar, mas depois desfruta das bem vindas exigências ambientais em pleno complexo industrial.
Para eles e para elas, trabalho é o que não falta. A expectativa de produção para este ano é de 250 mil veículos, sendo que 40% vão para exportação – uma meta ousada, mas que marca o pleno crescimento da empresa. Em menos de cinco anos de operação, a Bahia já produziu 500 mil unidades, entre os modelos Fiesta e Ecosport. No final da linha de montagem, sai um carro a cada 80 segundos. “É mais rápido do que fazer acarajé”, diz Alecrim.
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