Reportagens

No rastro do sangue

Restos de animais jogados por um matadouro em afluente do rio Jaboatão, em Pernambuco, podem ser uma das causas do aumento de ataques de tubarão em Recife.

Regina Morais · Flávia Harten ·
1 de julho de 2005 · 19 anos atrás

Imagine uma cidade com 6 mil habitantes que despeja seu esgoto num rio. A poluição que seria gerada por toda essa gente equivale aos danos que a Maranhão Comércio de Carne Ltda. causava ao rio Jaboatão, em Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana de Recife.

Mais conhecida como Matadouro Municipal de Jaboatão, a empresa chegou a despejar 300 mil litros diários de sangue e vísceras de animais no riacho Palmeira, afluente do Jaboatão. Inaugurado em 1982, o matadouro só encerrou suas atividades em março deste ano, depois de colecionar uma série multas e processos por crime ambiental.

Mas o desequilíbrio causado pelo lançamento de resíduos orgânicos nas águas pode ser bem maior do que se imaginava. O Comitê Estadual de Monitoramento dos Incidentes com Tubarões (CEMIT) levantou a hipótese de que o matadouro pode ter contribuído com a proliferação de tubarões no estuário, onde o rio se encontra com o mar, local utilizado para sua procriação e reprodução. Afinal, eles têm a capacidade de perceber, e ser atraídos, por uma gota de sangue em mil litros de água.

Há mais uma década, cientistas de Pernambuco vêm tentando descobrir as causas do aumento de ataques de tubarão em Recife.. Até 1992, não havia sido registrado um único incidente do gênero. Desde então, foram 46 ataques, resultando em 16 mortes. A maior suspeita sobre alterações ecológicas que pudessem explicar o fenômeno recaía na construção do Porto de Suape, construído em 1992 na região metropolitana de Recife, afetando as áreas estuarinas. Agora, o Matadouro de Jaboatão também está na mira dos pesquisadores.

“Diante das evidências, é razoável supor que o lançamento de sangue e vísceras no rio Jaboatão, que deságua no trecho de praia onde foram verificados 45 dos 46 ataques registrados, tinha um potencial importante de atrair tubarões para a área. Isso contribuiu para o agravamento do problema dos ataques”, diz o presidente do CEMIT, Fábio Hazin, da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE).

Um exemplo internacional ajuda a reforçar ambas as suspeitas. Em Mogadishu, na costa da Somália, um pequeno trecho da praia Lido Beach foi palco, entre 1978 e 1987, de 30 ataques de tubarão. Na região, assim como no Recife, funcionava um matadouro e havia sido construída uma nova estrutura portuária.

No início deste ano, o CEMIT pediu informações sobre o matadouro à Companhia Pernambucana de Recursos Hídricos (CPRH). “Quando fomos analisar, descobrimos a forte poluição, e, mais, descobrimos que o matadouro estava à revelia da legislação, tanto municipal quanto estadual”, afirma o presidente da CPRH, Tito Lívio de Barros.

“Descobrir” não é o verbo mais adequado. O próprio Tito Lívio reconhece que o matadouro já era antigo conhecido do órgão por poluir o rio. Seu sistema de tratamento de esgoto deixou de funcionar em 1989. Durante todos esses anos, o Matadouro Municipal de Jaboatão acumulou multas municipais, estaduais e do Ministério Público, mas nunca foi fechado. “Na verdade, eles consertavam o sistema de tratamento dos efluentes e conseguiam o licenciamento. Logo depois, o sistema quebrava, cancelávamos a licença, e eles consertavam de novo”, confessa o presidente da CPRH.

O estabelecimento reconhecia que existiam alternativas para evitar que as vísceras, sangue e ossos dos cerca de 70 animais abatidos por dia fossem parar o rio Jaboatão. Entre elas, o cozimento do sangue e sua posterior transformação em farinha. Mas nunca adotou nem esta nem outras medidas anti-poluição. Uma das investigações em curso no Ministério Público está averiguando a omissão da CPRH no caso.

Finalmente, em fevereiro deste ano, a Prefeitura interditou a empresa e retomou a propriedade, que era uma área pública arrendada. “Coincidência ou não, desde março nenhum caso de ataque de tubarão foi registrado em Pernambuco”, afirma o Secretário de Meio Ambiente do Estado, Roberto Gomes.

Além de atrair tubarões, o lançamento de grande quantidade de matéria orgânica no rio também prejudicava a vida de peixes e camarões. Isso porque os restos que apodrecem na água consomem muito oxigênio, além de causar a proliferação de microorganismos animais e vegetais. “Todo o percurso do riacho, abaixo do trecho em que recebia os dejetos, sofria esse processo até chegar ao rio Jaboatão”, explica o coordenador-executivo da Associação Pernambucana de Defesa da Natureza (ASPAN), Alexandre Araújo. Mas faz uma ressalva: “Se o matadouro fosse o único responsável pela poluição, os problemas estariam resolvidos e, dentro de alguns anos, teríamos um rio revitalizado. Mas o matadouro era peixe pequeno. Os vilões são as usinas de cana-de-açúcar e os esgotos despejados no rio sem tratamento algum”.

Pelo menos o matadouro já não polui mais. O local onde funcionava está sendo preparado para se tornar um centro de educação ambiental chamado Mata Viva. Boa notícia para as crianças de Jaboatão. Os surfistas de Recife também agradecem.

*Regina Morais, 23 anos, é formada em Jornalismo e Pós-Graduada em Marketing e Propaganda. Atualmente, repórter da TV Universitária e do Canal 14 da NET Recife.

*Flávia Harten, 23 anos, formou-se em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco em 2002, e desde então, desenvolve um trabalho de assessoria de comunicação para empresas locais.

Leia também

Salada Verde
23 de julho de 2024

União Europeia anuncia doação de R$ 120 milhões ao fundo amazônia

Alemanha também anunciou liberação de R$ 88 milhões ao Fundo, referentes à segunda parcela de doação anunciada na época da reativação do mecanismo

Salada Verde
23 de julho de 2024

Cachorro-do-mato é filmado em plena luz do dia no Parque Nacional da Tijuca

Vídeo foi feito por funcionário na tarde de domingo no parque carioca, no setor Parque Lage. Animal dificilmente é visto durante o dia

Reportagens
23 de julho de 2024

Por uma primatologia – e uma ciência – mais igualitária, diversa e inclusiva

((o))eco conversou com a presidente da Sociedade Brasileira de Primatologia, Patrícia Izar, sobre a decolonização da ciência, tema central do Congresso Brasileiro de Primatologia, realizado neste mês

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.