Reportagens

O camarão e o camarada

O camarão resiste até à poluição de Leblon e da Lagoa, no Rio de Janeiro, servindo de alimento aos peixes e de inspiração e desafio aos fotógrafos de natureza.

Carlos Secchin ·
1 de julho de 2005 · 19 anos atrás

Estávamos juntos, olhando os rabos-de-galo no céu. Rogério me perguntou: “Carlos, você viu ontem o cardume de bonito atacando a sardinha na arrebentação? Parecia que a água tinha criado vida. Bem na beira, chacoalhava tudo”.

Vi. Estava dentro d’água. O cardume passou por mim. Alguns peixes me ignoraram, enquanto que outros, perseguindo as sardinhas, vieram para o meu lado e quase me acertaram. E esses danados, na velocidade com que cortam a água, podem abrir, na gente, um talho igual ao de uma faca afiada.

Só que eram peixes-serra, bem parecidos com os bonitos. Um pouco menores, mais afilados. Tenho a impressão de que são mais rápidos. Do jeito que apareceram, sumiram. Mais adiante, atacaram novamente a sardinha. No salve-se-quem-puder, foram dar na areia, embolados na espuma. Cena das antigas.

No momento em que Rogério virou-se e falou de novo, pude perceber no olhar e no tom da voz do amigo da praia, a saudade do pai-pescador: “Cara, eu e meu velho pescamos muito juntos. A gente descia o Morro do Pavãozinho, ainda no escuro, carregando as tralhas e íamos para a Colônia de Pesca do Posto 6. O coroa saía antes do sol clarear as pedras do Forte de Copacabana. Na canoa, eu deitava sobre a rede no canto até ele me chamar para tomar o café passado pra térmica. Só depois que ele tirava as linhas da cesta é que decidia pra onde ir. Ou era para as Cagarras ou pros lados do Leblon. Niterói, só quando não lestava”.

– Leblon? Perguntei surpreso.
– É, lá tinha muito camarão.
– Camarão, como?!
– É, o fundo criado pelos dois canais que ligam a água da lagoa ao mar e que formaram, acho eu, um fundo com lama. E lama e camarão foram feitos um para o outro. Até hoje, as traineiras arrastam ali e cercam os peixes com as redes.

Faz sentido o que Rogério me contava. Vejo com freqüência embarcações grandes trabalhando na pesca em frente à praia do Leblon. Agora fui eu que me lembrei das palavras da minha mãe. Ela dizia que, no final da praia, os tubarões atacavam os banhistas e matavam os mais intrépidos. Ainda hoje ela me conta essas histórias. Mãe é mãe…

No meu arquivo de imagens do fundo do mar deste trecho da orla do Rio, não contava com a possibilidade de registrar camarões. Sem dúvida, depois da conversa com o Rogério, passaram a ser, para mim, mais um objeto de interesse fotográfico. No entanto, esbarrava numa real dificuldade – como mergulhar dentro das águas mais sujas e contaminadas da cidade?

Para um fotógrafo de natureza, os camarões surgiram diante da minha lente de um modo pouco convencional. Foram-me entregues, vivos, a domicílio, mas posso explicar: a última ressaca aconteceu na madrugada chuvosa do dia 20 de junho. Ela empurrou a água do mar para dentro dos canais. No do Jardim de Alah, a maré baixa lançou de volta uma torrente de crustáceos através da passagem rasa e estreita da boca de seu canal, o que facilitou a visualização dos camarões correndo para o mar. O único pescador que lançou uma tarrafa de malha fina sobre eles capturou uma boa quantidade do valioso crustáceo. Pouco depois, transferia-os de uma balde para dentro do meu aquário. Às 2:30 da madrugada, terminava a sessão de fotos.

Li, não faz muito tempo, que surgiu um movimento para se permitir a pesca de cerco e de arrasto dentro da Lagoa Rodrigo de Freitas. A justificativa era baseada na alegação de que se fosse liberada a pesca, não haveria mais mortandade de peixes. A falta de oxigenação das águas, segundo os defensores da idéia, seria resultante da grande concentração de pescado. Sabemos que não. Existe no local abundância de vida, da mesma forma que existe muito alimento. E ele se chama camarão.

O estreitamento do canal e a sua distância da lagoa não permitem uma troca eficiente da água, e os lançamentos de esgoto, clandestinos ou não, aceleram o processo de degradação daquele fundo. O camarão se adaptou bem e tem demonstrado grande resistência a essas oscilações. Merecia até um estudo.

Alguns animais podem, sem prejuízo, ficar cativos por um tempo e voltar para o habitat de origem. A nós fotógrafos, cabe reproduzir, de forma simples, os ambientes, compondo-os com iluminação controlada. Temos assim a certeza de obter qualidade no resultado final da imagem, sem correr o risco de ter que se lançar numa batalha perdida para disparar e não acertar em nada, arriscar a pele, doar sangue para mosquito, perder o sagrado sono ou o caro equipamento.

Com o desenvolvimento dos softwares de computação gráfica, foram abertas inúmeras possibilidades de manipulação das imagens, principalmente na alteração dos fundos. Melhoramentos como a subtração de objetos e luzes indesejados ou, de forma inversa, inclusão ou troca de fundos semelhantes aos dos ambientes de origem. Os processos de fusão, sobreposição, etc, muitas vezes são trabalhosos, mas os resultados são compensadores.

Mantive o fundo de areia claro e deixei que o camarão ganhasse presença com a obscuridade de um fundo noturno. Na outra, deixei que os peixes imprimissem na água a velocidade de ataque da espécie e o efeito na imagem foi provocado pelas microbolhas provenientes da oxigenação das ondas que quebram sobre o raso, na chamada zona de turbulência.

* Carlos Secchin é fotógrafo. Usa os programas de computador para não ter que ficar na chuva, de madrugada, esperando que o camarão saia de dentro da lama, para fazer dentro de uma água suja, uma foto que, definitivamente, não vai ficar boa.

  • Carlos Secchin

    Carlos Secchin é engenheiro e fotógrafo, Carioca, vive no Cerrado onde se dedica a conservar uma pequena porção deste rico bi...

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