Reportagens

Reforma na reserva

Na turística Acari (RN), reserva ambiental é vendida para um assentamento da reforma agrária. A ex-proprietária sumiu e o Ibama não sabe explicar o que houve.

Andreia Fanzeres ·
19 de julho de 2005 · 19 anos atrás

Um oficial aposentado da marinha mercante dos Estados Unidos foi a única pessoa que se incomodou com a venda de um sítio no município de Acari, no interior do Rio Grande do Norte. Pudera, o comprador não era ele. O capitão Donald Reid, que mora há 30 anos no Brasil, queria assumir a propriedade de dona Cecília Medeiros e transformá-la em atrativo ecológico para os turistas estrangeiros clientes de sua agência de turismo baseada em Natal.

Enfezado por ter sido preterido no negócio, ele resolveu denunciar ao Ibama a transação irregular que dona Cecília arranjou. Ela vendeu a propriedade para um assentamento de reforma agrária. Acontece que o sítio é uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN). Condição que obriga seu dono a preservá-lo.

A notícia deixou o secretário municipal de Turismo de Acari revoltado. “O valor daquela reserva é incalculável. E a cidade recebe muitos visitantes por causa dela. Precisamos preservar a Caatinga, que reúne características únicas no mundo”, reclama Sergio Enilton da Silva. Ele diz que a reserva estava intocada e contava com trilhas interpretativas para observação de espécies de fauna e flora típicas da região. A área, às margens do grande açude Gargalheiras, é uma das três RPPNs do estado. Esta é uma das poucas informações confiáveis nessa história. Sobram estranhezas.

Segundo o capitão Donald, dona Cecília é bióloga e antiga moradora da região. Mexia com plantas medicinais e por muitos anos morou sozinha no sítio. Mas assim que vendeu a propriedade, em março deste ano, sumiu do mapa. Surpreendida pela ligação, ela concedeu-me pouco mais de um minuto de conversa, depois bateu o telefone. “Estou fora do estado, não tenho nada pra falar”, cortou. Nessa tentativa de entrevista, a única coisa que dona Cecília informou foi que diversas vezes procurou o Ibama pedindo ajuda para combater invasores e que havia gente que constantemente ateava fogo em suas terras. Ah, e que vendeu seu sítio para um programa de ajuda à pobreza, em suas palavras. E fim de papo.

O que ela chama de “programa de ajuda à pobreza” é o Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), cujos recursos são gerenciados pelos governos estaduais. Neste caso, pela Secretaria de Apoio à Reforma Agrária (Seara) do Rio Grande do Norte. O coordenador do PNCF no estado, Marcos George de Medeiros, confirma que a reserva ambiental de dona Cecília foi vendida por 75 mil reais para o assentamento de dez famílias, mas diz que não sabia se tratar de uma área de reserva. “Quando o sindicato dos trabalhadores rurais nos procurou interessado na compra, enviamos uma equipe da Secretaria para fazer uma vistoria na área e não tinha nada que indicasse ser uma reserva”.

De acordo com a escritura que Marcos George tem em mãos, dona Cecília vendeu uma propriedade de 188 hectares chamada Sítio Carnaubinha para a associação Poeta José Gonçalves. Com uma pulga atrás da orelha, ele promete investigar o caso. “Sítio Carnaubinha aqui nessa região existem vários”, esclarece.

Talvez Marcos George consiga achar a resposta antes do Ibama de Natal. “Desconheço a venda da RPPN de dona Cecília”, informou Francisco Alves Brito, o Kiko, que trabalha na divisão técnica do instituto. Mas ele parece confuso. Logo em seguida, disse não ter certeza de que o sítio é, de fato, uma reserva. “Enviamos a documentação para análise na sede do Ibama, mas ainda faltavam outros papéis. Estamos aguardando a posição de Brasília, por isso, oficialmente a área não é reserva”, tentou explicar. Questionado sobre a data de criação da reserva, Kiko disse não ter condições de informar.

Bastava um clique na página do Ibama na Internet. Está lá, na lista de todas as RPPNs brasileiras, a Sernativo. Um telefonema ao Distrito Federal forneceu as informações que faltavam.

A RPPN Sernativo foi criada em 1996 pela portaria 109/96, em nome de Cecília G. de Medeiros. A propriedade tem mil hectares, mas a área de reserva abrange apenas 154,29 hectares. Fica difícil saber se os 188 hectares do assentamento estão ou não dentro da reserva ambiental. O Ibama prometeu enviar uma equipe de técnicos para verificar onde estão sendo erguidas as casas dos trabalhadores rurais, agora com-terra. Pena que só resolva tomar essa providência depois que a propriedade já foi vendida.

O sindicato dos trabalhadores rurais da região jura que a reserva não era registrada no Ibama, e garante que, de qualquer forma, eles vão cuidar muito bem do meio ambiente. “Vamos deixar 25% da área intocada porque o povo daqui também acha que devemos preservar algumas plantas e alguns animais”, concede o presidente do sindicato, Bento de Araújo. “Os assentados vão explorar aluvião e colocar gado, mas deixarão como reserva uma serra e algumas árvores medicinais”, diz ele. Só que poupar a serra não representa favor algum à natureza. Por lei, dentro ou fora de reservas, os morros devem ser conservados porque são Áreas de Preservação Permanente (APP).

Os agricultores não escolheram o sítio de dona Cecília por acaso. Às margens do açude, o solo é bom para plantar e a água é abundante – coisa rara na caatinga. Segundo Bento Araújo, quase todos os trabalhadores rurais assentados já viviam dentro ou nos arredores da propriedade de dona Cecília e a motivação principal para a “conquista” da área era a falta de trabalho.

Esse é um dos principais problemas de Acari, depois de Caicó a cidade mais antiga da região do Seridó, sul do estado, na divisa com a Paraíba. Fundada em 1833, no século XX experimentou crescimento econômico, primeiro com o gado e depois com o algodão. Na década de 70 veio a crise, com pragas infestando plantações e a concorrência de outros pólos produtores.

Hoje, o que move Acari é o turismo. Cerca de 20 mil pessoas ao ano vão à cidade para visitar seus sítios arqueológicos e a Caatinga preservada, pescar e andar de canoa no açude, e ver de perto se aquela é mesmo a cidade mais limpa do Brasil, como o povo de lá se orgulha em dizer.

Segundo o capitão Donald, 80% da população local está desempregada e o assentamento dos trabalhadores rurais ameaça os que procuram a região para a prática do ecoturismo. “Se você deixa dez famílias, daqui a pouco chegam duzentas”, alerta. Ele acredita que o ecoturismo pode ajudar a região. Mas até agora o gringo não caiu nas graças daquela gente.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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