Pegue um pedaço de papel e faça as contas sobre o papel do papel no futuro do Rio Grande: em 14 cidades da metade Sul do estado a plantação de um novo tipo de eucalipto estrangeiro está enchendo as guaiacas da gauchada, provocando a substituição de fazendas de gado por florestas exóticas.
Dois bancos estão financiando os novos plantios, para abastecer fábricas de celulose que ainda não existem. Eles fazem uma oferta irresistível: renda possível de R$ 3 mil por hectare, contra míseros 80 pilas produzidos pelo gado no mesmo espaço – com estes números, quando os negócios avançarem vai faltar costela e picanha.
Cerca de 40 mil hectares de campos já se transformaram em florestas no ano passado, o triplo da média anual de plantio dos últimos dez anos. As mudas brotam antes mesmo da conclusão do zoneamento que está sendo feito pelo governo do estado para definição das regras de licenciamento ambiental.
Estranhas ao ecossistema regional, as matas ameaçam animais que têm a dieta baseada na diversidade biológica, alguns já em risco de extinção. A expansão invade inclusive unidades de conservação ambiental.
A meta para os próximos dez anos é cobrir 1 milhão de hectares com eucaliptos, para abastecer fábricas de celulose já existentes ou que vão se instalar no coração do Mercosul, pinus para indústrias moveleiras da Serra Gaúcha, e acácia para exportação.
O eucalipto chegou ao Rio Grande do Sul vindo da Europa, há um século, com uma missão boa. A idéia era criar pequenos bosques nas fazendas para abrigar o gado do frio, além do óbvio aproveitamento da madeira. Em Porto Alegre, um destes bosques formou o estádio do Inter, hoje o Gigante da Beira-Rio.
Foi só na década de 70 que o povo se deu conta que a boa árvore tinha um lado ruim: começou a ser usada pela empresa norueguesa Borregard numa fábrica de papel muito fedorenta às margens do Rio Guaíba.
A poluição indignou os gaúchos. Fez nascer neles a consciência ecológica. Mas os pioneiros da luta ambiental no país só enfrentaram a sujeira. Não foram contra a lenta, gradual e segura introdução de florestas exóticas no estado.
Aqueles bosques para o gado hoje estão por toda parte, engolindo as próprias fazendas. Um hectare (100m x 100m) é pouco mais do que um campo de futebol (100m x 70m). E o Rio Grande já tem 150 mil hectares de eucalipto. Consome 40 mil hectares por ano na sua única fábrica das grandes – a Aracruz, sucessora da Borregard. É a bambambam no país, mas uma pulga se comparada às maiores do planeta.
O grande incentivo às florestas exóticas é o fiscal – aquele mecanismo pelo qual o governo paga a conta. Ou seja, nós. Não se sabe como num país onde as políticas públicas mudam a cada ministro, o plantio de florestas para consumo de fábricas que não existiam seguiu seguramente incentivado até que as fábricas enfim aparecessem. De repente, os gaúchos descobrem que têm, além dos 150 mil hectares de eucalipto, mais 160 mil de pinus e 60 mil de acácia. Por encanto, as florestas e as empresas cresceram juntas.
E o século 21 começa com o governo do estado e o empresariado caminhando de mãos dadas, com o objetivo comum de financiar a silvicultura para desenvolver a região sul – justo onde está a terra disponível, nos tradicionais pampas do gado.
O governo do estado garantiu recursos do BNDES, via agência de fomento CaixaRS, respaldado por investimentos de dois grandes grupos papeleiros já instalados: Votorantim e Aracruz (o primeiro tem 28% das ações do segundo). A Votorantim desembarcou no Rio Grande apenas no ano passado, mas já comprou 60 mil hectares para plantar uma nova espécie de eucalipto – experiência genética mais rentável do que a árvore comum.
No mês passado a Votorantim lançou o programa Poupança Florestal. Através dele, agricultores que desejarem plantar eucaliptos terão financiamento do Banco Real com juros em torno de 8% ao ano – uma barbada, considerando que é quase o índice da inflação. O programa é idêntico ao lançado pela Aracruz ano passado pela CaixaRS.
Enquanto os bancos brigam para atrair mais interessados em suas propostas, as ongs atacam a raiz do problema. Káthia Vasconcellos Monteiro, do Núcleo Amigos da Terra Brasil, diz que a silvicultura representa uma ameaça ao pampa. “A floresta plantada em áreas abertas é catastrófica, a fauna não resiste”, concorda o biólogo Glayson Bencke, da Fundação Zoobotânica .
Mas se querem evitar o avanço das plantações de florestas, é bom se apressarem. Antes mesmo de o governo anunciar seu programa de incentivo para o plantio no sul do estado, 15 milhões de mudas de pinus já cresciam em pequenas propriedades em Caxias, na Serra Gaúcha.
Mesmo no varejo, as florestas plantadas afastam o veado campeiro, a águia chilena, a águia cinzenta, o lobo-guará, o gato-palheiro e o cardeal amarelo. Com isso tornam ainda mais cativa a presença de todos eles na lista dos animais ameaçados de extinção.
Nos Campos de Cima da Serra, duas unidades de conservação foram invadidas por pinus. Uma delas é a Estação Ecológica de Aratinga, em São Francisco de Paula. Criada em 1997, ela ainda tem moradores dentro de seus limites, que não foram retirados por falta de indenização (foto). No vizinho Parque Estadual de Tainhas, o levantamento de fauna e flora que estava sendo feito pela Secretaria de Meio Ambiente está paralisado. Há um movimento para transformar a unidade de conservação em Área de Proteção Ambiental (APA), classificação que liberaria de vez a produção de madeira. Uma manobra burocrática para abastecer uma indústria da região.
Fica a pergunta: o Rio Grande tem como impedir o assalto das florestas exóticas sobre suas terras nobres? Tá difícil. O pequeno Uruguai, irmão gêmeo do estado, já tem 500 mil hectares de eucaliptos plantados (três vezes mais que os gaúchos) esperando fábricas estrangeiras. A primeira, norueguesa, começa a operar no ano que vem.
As multinacionais que dão as cartas no negócio do papel já conhecem cada centímetro de solo do planeta. Decidiram que o próximo destino é o Hemisfério Sul e ninguém pode detê-las. Os alvos são os países tropicais como o Brasil, onde o pé de eucalipto inventado por elas cresce sete vezes mais rápido do que no gelado Norte – e onde a terra é barata.
O Rio Grande é apenas a bola da vez.
* Colaborou Cristina Ávila.
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