Gilmar Inácio da Silva não é parente do presidente da República. Mas bem que gostaria de ser. “Eu tenho o mesmo sobrenome que o Lula. Ele podia vir aqui me ajudar”. De certo, o presidente anda muito ocupado para cuidar do caso de Gilmar, um paranaense que há cerca de dois anos e meio decidiu financiar a compra de um caminhão para lucrar com o transporte de madeira vinda da Amazônia. Nunca teve problema ao cruzar as estradas do Centro-Oeste para escoar a produção para o Porto de Paranaguá (PR). Mas desde o dia 1º de julho, ele se sente um preso fora da cadeia, e com o passar das semanas fica mais desesperado por ter sido retido em Cuiabá por tempo indeterminado.
Gilmar foi detido no posto de fiscalização do Trevo do Lagarto, na capital mato-grossense, quando levava uma carga avaliada em 100 mil reais da madeireira Madeju Ltda., localizada na cidade de Juína (MT). O carregamento, com peças já serradas, seria exportado, mas a Autorização de Transporte de Produtos Florestais (ATPF), documento concedido pelo Ibama para a circulação da madeira, estava vencida. “A madeira está regularizada, a empresa tem plano de manejo. Por um dia de atraso, a ATPF passou a não valer”, explica Gilmar. Ele e seu caminhão foram encaminhados à Delegacia Especial de Defesa da Natureza. A madeireira será multada em 15.400 reais, e Gilmar em duas cestas básicas, algo em torno de 300 reais.
Mas o caminhoneiro não pode deixar a delegacia. A Madeju pediu que ele não descarregasse a madeira, na esperança de conseguir recuperá-la. Solução conveniente para a empresa e para a própria delegacia, que não tem espaço algum para guardar toda madeira apreendida em Cuiabá. Para mostrar que está em plenas condições de operação, a delegacia mantém toras, compensados e tábuas de todas as espécies num terreno baldio vizinho à penitenciária Canindé (foto). Em situações normais, toda madeira apreendida deve ser doada e, enquanto seu destino não é definido, fica esperando nesse terreno baldio. Mas em se tratando de 100 mil reais, nem a delegacia quer ter a responsabilidade de cuidar da carga de Gilmar. Se sumirem com ela, ou se ela estragar com eventuais chuvas, o prejuízo passa a ser do estado.
Enquanto espera a tramitação do processo de recuperação da madeira apreendida, Gilmar vive em condições miseráveis. Reclama do calor, dos mosquitos, de ter que dormir dentro da cabine de seu caminhão, usar os banheiros quase sempre alagados e entupidos da delegacia, não ter luz e mal conseguir água e comida para todos os dias. “Não posso voltar para casa, lá no Paraná, e já que não estou rodando com o caminhão não consigo tirar os 4 mil reais por mês do financiamento. Minha dívida está aumentando”, diz. “Só vão fazer alguma coisa quando eu decidir colocar um revólver na minha cabeça e ameaçar atirar”, desabafa.
Oficialmente, Gilmar não está preso. Mas se sumir dos arredores da delegacia antes de ter o nome limpo na praça, da próxima vez em que for pego com ATPF irregular já não vai ser considerado réu primário. Aí ele sabe que sua situação pode se complicar.
Se vale o consolo, ele não está sozinho. Outros três caminhoneiros vivem drama semelhante na delegacia. Um deles é Valmir Aparecido de Oliveira. Em junho, ele teve a carga de 43 metros cúbicos de madeira apreendida no posto fiscal de Flávio Gomes, numa das saídas de Cuiabá para o Sudeste. O curitibano presta serviços para a madeireira Sigval, da cidade de Paranaíta (MT), e credita à pouca instrução dos caminhoneiros o fato de se tornarem a parte mais prejudicada em situações assim. “É preciso tirar a responsabilidade do motorista, que só quer trabalhar honestamente. O caminhoneiro chega na empresa, se apresenta para o patrão, carrega o veículo e coloca a ATPF no pára-brisa. Ninguém lê esse papel aí. E quando somos parados na fiscalização, nós é que vamos em cana”, diz Vilmar. Ele está certo de que, assim que sair da delegacia, vai conseguir peitar seu patrão e ser mais cuidadoso antes de aceitar as ATPFs necessárias para o transporte da delicada mercadoria.
A história que conta revela mais falta de sorte do que de cuidado. Vilmar estava retornando ao norte de Mato Grosso depois de descarregar o caminhão no Sudeste quando viu um colega com o veículo quebrado na altura da cidade de Colider (MT). Como seu caminhão estava vazio, transferiu toda a madeira para sua caçamba, pegou a ATPF do outro caminhoneiro e seguiu viagem de volta ao centro-sul do país. Mas seu veículo também quebrou. E justamente perto do posto de fiscalização. “Os fiscais encrencaram comigo só porque a placa do meu caminhão não condizia com a placa do veículo que constava na ATPF”, conta. Madeira e motorista foram encaminhados à delegacia, onde Valmir encontrou seu conterrâneo Gilmar. Também vive na expectativa de que a empresa recupere a madeira e ele possa seguir viagem.
Apesar de alguns momentos de desespero, até agora os caminhoneiros têm confiança que as madeireiras não vão deixá-los na mão. Menos por eles do que por suas cargas. E lá se vão dois meses de impotência e esquecimento. “Meu medo é que, se a madeireira não pagar, vou ter que vender meu caminhão e voltar pra roça no Paraná”, conclui Gilmar.
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