Se é para ver o lado bom das coisas, a ofensiva para amputar o Parque Nacional da Serra da Canastra pode ajudar a esclarecer qual é, afinal, a situação da preciosa área protegida, que abriga as nascentes do rio São Francisco.
A começar por esta informação, aparentemente verdadeira até mesmo para a administração do Parque, que leva seus visitantes por uma trilha até a placa que identifica a origem do Velho Chico (como Armando Gonçalves Júnior, este da foto, que navegou por toda a extensão do rio). Pois é propaganda enganosa. Foi criado justamente com a finalidade de proteger as famosas nascentes, mas seus limites erraram o alvo em pelo menos 40 quilômetros.
O Parque nasceu torto, e nunca se endireitou. Em 33 anos, não houve governo capaz de fazer valer os 200 mil hectares de chapadões, campos e cerrado que ele deveria proteger. Foram 71 mil hectares desapropriados na década de 80, e só. O restante da área continua entregue a toda sorte de exploração privada. Boa parte já está degradada.
Parque de papel não é novidade no Brasil. Ficaria tudo por isso mesmo se o Ibama não tivesse resolvido ressuscitar o assunto, em 2001, propondo a implantação de um plano de manejo nos 200 mil hectares originais da Serra da Canastra. Mexeu em vespeiro. A forte e variada reação ao projeto materializou-se em peso na Câmara dos Deputados na última quinta-feira, dia 18, em audiência pública convocada pelo deputado federal Carlos Melles, do PFL mineiro.
Ele quer acabar de vez com os dois terços de Parque que o Ibama não tinha reivindicado até hoje. E seu discurso quase não tem opositores. Nem lideranças políticas, nem ongs locais, nem associações comunitárias, sequer o próprio Conselho Consultivo do Parque, ninguém quer o resgate da área original. Há quem diga que o Ibama está sendo autoritário. Há quem tema o não pagamento de indenizações. Há quem diga que os limites de 1972 não significam mais nada em termos ambientais. Mas também há quem tenha interesses bem maiores.
A Serra da Canastra é a mais promissora reserva de diamantes do mundo. Em plena área do Parque, a extração sempre avançou a todo vapor. Agora, está ameaçada. De longe, Lucio Coelho, discreto representante da mineradora Samsul acompanhava atento o desenrolar da audiência. Sônia Rigueira, da ong mineira Terra Brasilis, confirma que por trás dos produtores rurais está o interesse do “pesado lobby” dos diamantes, trabalhando para assegurar a redução definitiva do Parque. “Essa gente está em toda parte. No Ministério do Meio Ambiente, no governo do estado, nas ongs locais. Até aqui na Terra Brasílis vieram conversar. Com certeza eles estão na Câmara e no Senado”. Lucio Coelho, da Samsul, tem assento no Conselho Consultivo do Parque, composto diversos setores da sociedade local.
Ele confirma que a empresa explorava os diamantes na região e está sendo prejudicada pelo novo plano de manejo do Ibama. “Durante cinco anos trabalhamos com licença para pesquisa. Mas os negócios estão sendo afetados com o atual plano de manejo, que pega a gente na jazida e exige licença de operação”. Lucio garante que o Estudo de Impacto Ambiental está pronto, que o impacto da atividade é pequeno e que a empresa “só aguarda esse desfecho” para voltar a extrair diamantes. E se anima com o potencial das jazidas, que podem se tornar as mais produtivas do mundo. “Temos uma jazida confirmada e outra prestes a se confirmar. O potencial é incrível. Os diamantes são especiais, com um octaedro perfeito e um grande percentual em gemas”, afirma. E a Samsul não está sozinha na Serra da Canastra. Em seu site, informa que a descoberta do depósito “Canastra 1”, pela empresa estrangeira Brazilian Diamonds (BDY), “se reveste de grande importância científica e econômica”.
O representante da mineradora parece se esquecer que é ilegal qualquer atividade econômica em Parques Nacionais. Mas não se pode culpá-lo, se até mesmo o chefe do Parque da Serra da Canastra encara a exploração como um fato consumado. “Os diamantes estão agora dentro do Parque”, reconhece Vicente de Paulo Leite, que não esteve na audiência. “Só lá em Brasília pra desenrolar”, diz ele, mas propõe uma solução: “Como Parque não dá para explorar, mas sendo Área de Proteção Ambiental (APA) pode”. Traduzindo: rebaixando-se o status da área protegida, a mineração pode seguir em frente. Cenário dos sonhos não só para as empresas de diamantes como para as outras 20 exploradoras de pedras comerciais instaladas na área do Parque.
Em Brasília, os órgãos ambientais não parecem capazes de desenrolar nada. “O próprio Ministério do Meio Ambiente reconheceu durante anos essa demarcação, e só atuava nos 71 mil hectares”, confirma Valmir Ortega, diretor da Diretoria de Ecossistemas do Ministério. Pelo Ibama, Pedro Eymard, coordenador das Unidades de Conservação, se limita a dizer que esta confusão “agora vai ter de ser apurada”.
Parte da região reclamada também é grande produtora de café. As restrições do Plano de Manejo, segundo o deputado Ronaldo Caiado (PFL-GO), que presidiu a reunião, estão impedindo a colheita de 18 mil toneladas do grão. Coincidência nenhuma: Carlos Melles, autor do requerimento da audiência, é cafeicultor e principal defensor do setor no Congresso. Já dirigiu o Conselho Nacional do Café e ajudou a criar o Conselho Deliberativo da Política do Café – CDPC, órgão que regula a política cafeeira no país.
Com tantos interesses em jogo, não é de se estranhar que os ânimos estivessem exaltados na audiência pública. Enquanto um dos prefeitos presentes ameaçava resistir às desapropriações e até “tocar fogo e derramar sangue se preciso for”, o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ) propunha uma saída pacífica. Ele promete criar uma comissão especial para fazer diligências na região. “Vamos viajar, fotografar e fazer a avaliação do que ainda resta e do que já foi destruído, mapeando inclusive as nascentes do São Francisco que estão sem proteção. Vamos negociar e encontrar um consenso que seja bom para o meio ambiente e para o homem”, ponderou.
O deputado diz que há atores locais que podem colaborar para preservar a região. “Muitos pequenos fazendeiros, produtores do queijo canastra, estão segurando a situação do Parque, porque também vivem do turismo rural. Protegem o lobo-guará, coisa que o Ibama não faz”, diz ele. Um exemplo é Maria Helena, que tem fazenda nos arredores da Canastra, e foi a Brasília protestar. “Eu não sairia nem que me pagassem. Até os lobos-guarás, tucanos e outros bichos que descem do Parque para cá de fome são bem tratados na minha cerca”, relata. Por isso, Gabeira acredita que é possível criar um “outro projeto”, com ajuda dos pequenos produtores. “Melhor eles que os mineradores atrás de diamantes. A produção de queijo canastra dá para conciliar com preservação ambiental. Já a exploração de diamantes eu acho difícil ser sustentável”, conclui.
Não muito longe da Canastra, também na região Sudeste, outro Parque Nacional está sob ameaça de deputados federais: o dos Pontões Capixabas, no Espírito Santo. E este pode sumir de vez. É o que tramam Marcelino Fraga, do PMDB, e Neucimar Fraga, do PFL, ambos produtores agropecuários. Segundo Neucimar, os produtores rurais do norte do estado foram prejudicados pela criação do Parque, em 2002. Nos Pontões Capixabas está o que resta de Mata Atlântica no Espírito Santo.
O deputado Neucimar se defende. “O parque foi criado sem audiências públicas, sem consultar os moradores, no apagar das luzes do governo FHC. Nem os nossos prefeitos foram consultados”, reclama. Neucimar diz que os ocupantes só praticam agricultura familiar. Seguro de que está fazendo uma boa ação, o deputado afirma que a área não precisa ser Parque Nacional para ter garantida sua preservação. “Os mais de 800 descendentes de italianos cuidam muito bem do meio ambiente. Aquilo lá, precisa ver”. O projeto que cancela o decreto de criação do Parque foi protocolado na Câmara e está agora na Comissão de Constituição de Justiça (CCJ). Depois segue para votação em plenário: Tranqüilo, o deputado completa: “Já começamos a trabalhar a maioria para essa aprovação, mas quero deixar claro que nós não somos contra o meio ambiente”.
Para Mário Mantovani, diretor da ong SOS Mata Atlântica, estes dois casos abrem um perigoso precedente. “A verdade é que todos os parques do Brasil enfrentam estes problemas. Isso aí é um paiol, e começa a pipocar. O descuido do poder público com a questão fundiária é grave. Está aberta a temporada de caça aos parques”, alerta. Material que vai fazer a festa dos ruralistas. E compara: “É como um escândalo político. Comprova como é frágil a figura institucional do Ibama. Mas não acho negativo. Vai desmistificar um arranjo mal feito, um remendo histórico que compromete os parques de maneira igual, como se eles não existissem”.
O coordenador das Unidades de Conservação do Ibama, Pedro Eymard, discorda: “Não acredito que este tipo de proposta se torne rotina. Quando essa dos Pontões Capixabas chegar aqui, se chegar, aí a gente responde”, encerrou, lacônico.
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