Reportagens

Vende-se Mata Atlântica

Reflorestar é possível, ganhar dinheiro com a prática também. A prova é a Reserva de Linhares, concebida em um dos estados mais devastados do Brasil.

Carolina Elia ·
24 de agosto de 2005 · 19 anos atrás

Quer comprar? Um pé de peroba ou de jacarandá custa 73 centavos. Árvore frutífera é mais caro, dá mais trabalho, mas leva-se uma jabuticabeira para casa por 1,03 real. Tudo peça original, extraída da Reserva de Linhares, uma área de 22 mil hectares de Mata Atlântica protegida pela Companhia Vale do Rio Doce, patrocinadora de O Eco, no Espírito Santo.

A árvore não é arrancada da floresta. Tiram-se apenas sementes da área preservada, que corresponde a 90% do terreno. Elas são semeadas em pequenas embalagens com terra e o seu desenvolvimento é acompanhado pelos funcionários do viveiro de mudas, que em 25 anos tornou-se o maior da América Latina.

São 800 espécies diferentes só de Mata Atlântica, mas há exemplares de outros ecossistemas, como o mogno da Amazônia. A capacidade de produção é de 45 milhões de mudas por ano. O que era uma simples mata virou um lucrativo banco genético capaz de proporcionar a recuperação da Mata Atlântica em 60% da costa brasileira.

“O viveiro funciona como disseminador desse banco genético”, conta o engenheiro florestal Renato de Jesus, diretor do Instituto Ambiental Vale do Rio Doce e responsável pela administração da reserva. “Nós não vendemos sementes, apenas mudas. É uma estratégia para agregar valor ao nosso produto”, explica, ao deixar explícito que a venda de árvores é uma fonte de renda. Ela gera anualmente uma receita de 400 mil reais, o que colabora para a reserva ser auto-sustentável. Outras formas de arrecadação são os projetos de pesquisa e a estrutura hoteleira montada nos 10% de área desmatada. Turistas pagam diárias de até 270 reais para aproveitar a paz da floresta que quase sumiu. O Espírito Santo só preservou 1% da sua Mata Atlântica original. E a Reserva de Linhares protege pouco mais de 1/3 dessa relíquia.

Os primeiros lotes da mata foram adquiridos pela siderúrgica na década de 50 com o objetivo de fornecer dormentes para a construção da Estrada de Ferro Vitória a Minas. Chegou-se a derrubar árvores, mas logo se descobriu que era mais barato adquirir o material de terceiros. A mata virou um estoque de madeira nobre e com o tempo foi transformada oficialmente numa reserva.

Cultivar mudas é uma prática antiga por ali. Quando o técnico agrícola Natalino Rossmann começou a trabalhar na propriedade, há 31 anos, o viveiro já existia. Mas como ele mesmo descreve, era um viveirinho, sem grandes ambições. A história mudou em 1977, com a chegada de Renato à reserva. Sua única obrigação era cuidar dela. Tarefa perfeita para quem tinha como sonho de criança pertencer à polícia montada das florestas canadenses – aquela dos filmes – e teve o projeto RadamBrasil como primeiro emprego na década de 70. “O legal é que a companhia esqueceu de mim”, brinca, ao mostrar a sua fantástica fábrica de árvores tropicais.

Ao chegar na reserva, Renato saiu plantando. Atualmente 700 hectares são destinados à pesquisa e por ali já se experimentou de quase tudo com 1.600 espécies. Numa área chamada palmeto existem 100 diferentes tipos de palmeiras de várias partes do mundo. Em outra há um pomar composto por 104 espécies de frutíferas tropicais, que vai desde a asiática lychia à nossa pitanga (foto acima). A parte que foi desmatada por causa dos dormentes hoje é uma microfloresta em estado de restauração (foto abaixo). As árvores já retomaram o espaço de direito e o que se tenta agora é recuperar o ecossistema. O que inclui a reintrodução detalhada de espécies, como orquídeas sobre galhos de jequitibá-rosa.

“Você pode reabilitar ou restaurar uma mata”, explica Renato. “O primeiro caso é a UTI, você faz o que é necessário para manter o paciente vivo. A restauração é a recuperação de todo o ecossistema, o aperfeiçoamento, a plástica”, descreve. Cada passo é pesquisado nos laboratórios da reserva, que variam de salas equipadas com microscópicos e geladeiras especiais a um bosque experimental a céu aberto.

“Está vendo essa fileira de árvores dentro da mata?”, pergunta Renato. “É uma técnica de recuperação de floresta chamada enriquecimento em linha. É uma besteira, testei com mais de 80 espécies e vi que o custo não compensa”, conta quem há 28 anos estuda formas de reflorestamento. A prática não é um hobby, é um serviço para a Vale. Renato viaja o Brasil para aplicar seus conhecimentos na recuperação de áreas degradadas pela mineradora.

“Numa área de exploração de bauxita no Pará nem foi preciso replantar”, conta Renato. “Bastou cobrir o terreno com o solo original e brotaram 60 espécies diferentes. As sementes tinham sobrevivido na terra”. Mas nem sempre é assim e o engenheiro conta com a ajuda de outros pesquisadores para aperfeiçoar as técnicas. Em agosto, esteve na reserva o carioca Sérgio de Faria, especialista da Embrapa em agrobiologia. Seu objetivo era estudar leguminosas capazes de ajudar a recuperar encostas. Esse tipo de planta tem como espécie mais popular o feijão, mas brota em forma de árvore, arbusto ou erva. Seu dom natural é, com a ajuda de bactérias e fungos, captar nitrogênio para as plantas e devolver nutrientes ao solo. O que cria uma situação favorável para o surgimento de outras espécies menos resistentes. Renato a chama de carro-chefe do reflorestamento.

“Um traço marcante no trabalho do Renato de Jesus é não ter preconceito em trabalhar com a biodiversidade”, diz o engenheiro agrônomo Jaeder Lopes Vieira, gerente ambiental do Instituto Terra. “No plano de recuperação da Mata Atlântica da fazenda Bulcão ele plantou árvores do Cerrado e da Amazônia onde achou que seria necessário para recuperar o solo mais rápido”, relata. A fazenda pertence ao fotógrafo Sebastião Salgado, que em 1998 convidou Renato a elaborar o reflorestamento da propriedade. Nos quatro primeiros anos, as mudas foram adquiridas no viveiro da Reserva de Linhares, mas a partir de 2003 o Instituto Terra já tinha capacidade de extrair sementes de seu próprio banco genético. Além de recuperar áreas da Vale, Renato também presta serviços a terceiros que estejam interessados em reflorestar suas terras.

Segundo Renato, não existe área irrecuperável. É só uma questão de custo e tempo. Mas até para isso tem solução. “Ele conseguiu quebrar a dormência das sementes”, conta Mario Montavini, diretor da ong SOS Mata Atlântica, ao ser perguntado sobre o trabalho do engenheiro florestal em Linhares. Ao submeter as plantas a diferentes luzes, umidades, temperaturas e substratos, Renato descobriu como acelerar o processo de germinação das sementes. Espécies que antes demoravam até um ano para germinar, em suas mãos passaram a brotar em dois dias. O engenheiro florestal também deu um jeito de baratear os custos do reflorestamento. Se não, como ele mesmo reconhece, o pessoal não faz. “Desenvolvemos técnicas que nos permitem gastar 20 mil dólares na recuperação de áreas em que os japoneses precisariam de 120 mil a 150 mil dólares”, afirma.

Os resultados motivam mais pesquisa. Em um rápido passeio de carro pela reserva, Renato mostra a área onde ele observa a capacidade da floresta de se auto-regenerar. Em seguida, passa sobre um riacho e avisa que ali está sendo restaurada a mata ciliar e que até pouco tempo nem água se via. “Aqui os visitantes podem plantar árvores”, completa. Mais à frente, outra jovem floresta, que além de estar sendo restaurada com a ajuda de 140 espécies – um número extremamente alto para esse tipo de finalidade – ainda serve para o estudo de monitoramento de estocagem de carbono. E a excursão prossegue. Um dos xodós de Renato é o bosque de castanheiras do Pará (foto). São 200 árvores de uma única espécie que não existe mais no estado que lhe empresta o nome. A raridade faz o engenheiro florestal considerar essa parte da reserva uma espécie de banco genético ex-situ. Afinal, a espécie não é nativa dali, como é o jacarandá. A floresta da Vale abriga uma reserva de jacarandá, os únicos que sobraram na região, equivalente a 50 milhões de dólares.

Mas nem tudo é sempre verde. Uma das maiores preocupações da administração da reserva é não permitir que o patrimônio seja lambido pelos incêndios que se alastram pela região na época da estiagem. No norte, a mata faz fronteira com a Reserva Biológica de Sooretama, mas de resto é cercada por plantações e pastos. “A nossa brigada é treinada para não deixar o fogo chegar”, diz Renato, que conta com uma torre de 40 metros de altura para detectar qualquer perigo.

A mata também é ameaçada pela presença de caçadores, que parecem não ter medo das onças que moram por ali. A conclusão de pesquisadores que estudam os felinos é de que não há muitos espécimes na reserva, mas que eles existem, existem. “Eu já vi, mas ela foge da gente”, conta Eliseu da Silva, ex-funcionário de madeireiras locais e atual guardião dos limites da reserva. Diariamente, ele percorre as trilhas com a sua moto para verificar se há intrusos. Quando encontra rastros, pede reforço para prendê-los. Já houve casos em que a justiça determinou que o caçador cortasse capim na reserva como pena.

Ao todo, 104 pessoas trabalham na Reserva de Linhares sob a direção de Renato (foto), que nem por isso perde o foco de seu trabalho: “Me sinto um grande guarda florestal”, diz sorrindo. Há 28 anos ele mora ali sem mulher e sem filhos e só tem dois vícios: torcer para o Flamengo e criar receitas. Quem visita a reserva experimenta suas criações no restaurante do hotel. Uma das mais populares é o creme de palmito. Como ele disse para um jornalista americano que passou por lá: “Quer comer palmito sem culpa? Plante-o”. É o que ele faz todos os dias.

* A repórter Carolina Elia teve a passagem paga pela Vale do Rio Doce e esta pauta foi iniciativa da redação de O Eco.

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Comentários 1

  1. Robson Jr diz:

    Caros senhores,
    Matéria interessantissima!
    Só como modo de curiosidade, gostaria de plantar cerca de 2000 mudas de Ormosia arborea, é possivel fazer com o projeto?
    Fico contente com a iniciativa!

    Obrigado,

    Junior