“Não é água, mas um tipo de anti-água. A coloração é mais preto-esverdeada do que azul esverdeada….as garrafas de plástico brilham por toda Nova Orleans, como uma constelação diurna….o cheiro – de excremento, peixe morto e gasolina – lhe persegue não importa aonde você se esconda.”A descrição feita pelo New York Times da cidade arrasada pelo furacão Katrina soa como ficção. Garimpar os principais jornais americanos em busca de notícias sobre a situação ambiental de Nova Orleans resulta em relatos do que acontece quando o homem aposta contra a natureza e constrói uma cidade abaixo do nível do mar e na rota de furacões.
Um artigo publicado em 1987 na revista New Yorker, descreve New Orleans como uma cidade cercada por diques , enterrada entre o lago Pontchartrain e o rio Mississipi como se fosse uma vasilha rasa. “Nenhum lugar em Nova Orleans é mais alto do que os bancos naturais dos rios. Pessoas menos favorecidas moram nas partes mais baixas, e sempre o fizeram. Os ricos ocupam as terras mais altas”, detalha o repórter John McPhee, que revela a fragilidade da cidade ao dizer que seu sistema hidráulico precisa bombear água da chuva para fora do centro urbano porque não tem para onde escoar.
Naquela época, há quase 20 anos, já era sabido que os diques do rio Mississipi precisavam de reparos e que as obras para contê-lo privavam os manguezais de receber sedimentos. Junto com a criação de novos bairros, isso acelerou a degradação dos mangues. Uma política de desenvolvimento arriscada porque esse tipo de ecossistema funciona como um escudo contra enchentes por ser capaz de absorver água como esponja. Como informava a matéria na década de oitenta, 80 km a menos de mangue significam aumentar em 1,3 metro as ondas formadas por tempestades. Segundo dados apresentados em um artigo intitulado “Nós pedimos por isso”, publicado no Los Angeles Times depois da passagem do Katrina, a cidade de Nova Orleans tinha mais de 241 km de mangues a separando do Golfo do México quando foi criada em 1718. Hoje só existem 48 km. Além disso, 17 dos 20 condados que mais crescem nos Estados Unidos estão localizados na costa da Flórida e do Golfo.
Um grande atrativo para os empreiteiros construírem às margens do Mississipi foi a liberação dos cassinos. A repórter Jane Mayor, da New Yorker, foi atrás de Carol Browner, chefe da Agência de Proteção Ambiental (EPA) americana durante a administração Bill Clinton, quando boa parte das casas de jogos foi erguida. Segundo Browner, elas foram construídas na água porque a lei do estado proibia jogos em terra. O que significou colocar grandes estruturas em meio a estuários, provocando distúrbios na vida aquática e drenagens que erradicaram manguezais. A EPA alertou que as alterações ambientais deixariam a cidade mais vulnerável a tempestades, mas senadores do Mississipi ignoraram o alerta e fizeram lobby para a liberação dos cassinos. “O argumento era de que o jogo iria atrair investidores para o estado”, lembra Browner.
Imagens de satélites da Nasa tiradas de Nova Orleans 20 dias antes da passagem do furacão e 12 dias depois mostram que a agência ambiental estava certa. Enfraquecidos, os estuários foram engolidos pela água. Cientistas temem que os mangues não sejam capazes de se recuperar por causa da concentração de óleo e gás na água e por causa do tempo que ficaram submersos nessa mistura de poluentes que passou a ser chamada pelos jornais de “Sopa tóxica”. A expressão chegou a ser usada como título de um editorial do Washington Post sobre a importância de não se negligenciar os danos ambientais provocados pelo furacão. O jornal lembra que a água que está sendo bombeada de volta para o Mississipi e para o lago Pontchartrain contém pesticidas, herbicidas, químicos de uso doméstico, gasolina, óleo cru de refinarias próximas (os vazamentos podem chegar a 30 milhões de litros), metais pesados e poluentes que vazaram dos lixões da cidade. Além de bactérias de corpos putrificados, outros transmissores de doenças e lama contaminada com alta concentração de chumbo que adormecia no solo de Nova Orleans.
Uma reportagem do Washington Post lembra que a costa do Golfo por muito tempo atraiu indústrias químicas e serviu como aterro sanitário para seus dejetos. Alguns foram fechados recentemente por terem alcançado o nível máximo de contaminação. O Katrina inundou pelo menos dois lixões de produtos tóxicos e, até o dia 10 de setembro, um dos principais aterros sanitários da cidade ainda estava submerso. Esses locais contêm substâncias cancerígenas e recentemente o governo incentivou a população negra a comprar a primeira casa própria nas redondezas.
Mas para Robert D. Bullard, sociólogo e diretor do Centro de justiça ambiental da universidade Clark Atlanta, na Geórgia, toda a cidade de New Orleans se tornou potencialmente tóxica. Ele foi entrevistado por uma equipe do The New York Times para uma matéria especial sobre a contaminação do solo da cidade. Quase 80% de Nova Orleans foi parar embaixo d´agua e as autoridades temem que o sistema de água tenha sido contaminado pelas substâncias tóxicas. Segundo um especialista do ramo, todos os canos terão que ser esterilizados, o que levará no mínimo 3 meses. E Nova Orleans não poderá ser habitada por uma população significativa até seus sistemas de água e esgoto estarem normalizados. A EPA calcula que mais de 200 centros de tratamento de esgoto em Louisiana, Mississipi e Alabama foram danificados. Sendo que quase todos que abastecem Nova Orleans estão fora de combate. Um outro problema é o fornecimento de energia. Os fios são protegidos por camadas impermeáveis, mas elas não foram planejadas para ficarem semanas embaixo d’água. Os transformadores estão ensopados.
A própria reconstrução da cidade está comprometida. Muitas casas que ainda estão de pé tiveram suas estruturas danificadas e terão que ser demolidas. O mesmo destino terão escolas, hospitais e delegacias. Um outro problema é o que reconstruir. Alguns cientistas alegam que o ideal seria deixar a natureza tomar conta de bairros sujeitos a inundações porque restaurar a paisagem significaria construir barreiras naturais. Mas como diz o artigo do Los Angeles Times, é bem possível que a ganância das empreiteiras, combinada com os subsídios do governo para desenvolver e reparar a área costeira do Golfo, leve à reconstrução de bairros pobres em áreas de risco. Proposta que já foi defendida por Bush em seu discurso à nação no dia 15 de setembro, como chamou atenção o The New York Times. Na tentativa de fazer a opinião pública esquecer a demora ainda mal explicada do socorro federal às vitimas, Bush pode errar mais uma vez.
Um outro problema será a reparação dos diques. Há controvérsias sobre o quão grande eles deveriam ser. Recentemente, descobriu-se que Nova Orleans está afundando e o aquecimento da terra só tende a aumentar o nível dos mares. Fora isso, todos os projetos estão orçados em bilhões de dólares e engenheiros divergem sobre a melhor solução para uma região naturalmente instável. Mas Bush já prometeu que eles não vão ser apenas reconstruídos como serão maiores e melhores.
Enquanto o futuro da cidade não é decidido, quem ficou tenta voltar à vida normal, o que significa trabalhar. Joann Guidos reabriu o seu bar, já o pescador Chauvin não teve a mesma sorte. Saiu para pescar e teve que devolver os camarões contaminados ao mar. Fora isso, não há comprador e o preço do diesel aumentou em 50%. Até a chegada do Katrina, Nova Orleans era considerada o principal centro comercial de pesca do Golfo do México e movimentava 1 bilhão de dólares por ano.
O Katrina também provocou um êxodo de mão-de-obra. Sem perspectiva de volta, milhares de pessoas tentam recomeçar a vida em outros estados onde companhias abriram vagas para vítimas do furacão. Mas a medida recebeu fortes críticas dos sindicatos locais, que consideram a solução injusta com os desempregados que já moravam nas cidades, como revelou o Wall Street Journal. Há dificuldades também de se encontrar escolas para as crianças e abrigos para tantas vítimas. Algumas igrejas começaram a oferecer teto na esperança de converter os desabrigados. Mas quem ficou mesmo na rua foram os animais domésticos, proibidos de abandonar a cidade junto com seus donos.
Histórias de todos os tipos surgiram a partir do Katrina e uma horda de repórteres americanos e estrangeiros correu para lá atrás delas. Os jornais brasileiros cobriram o assunto e é possível resgatar algumas reportagens usando o recurso de “busca” em suas versões online.Mas o que vale mesmo a pena é treinar um pouco de inglês e visitar os sites dos principais jornais americanos, que prepararam séries especiais sobre o desastre. Revistas com a Slate chegaram a fazer uma espécie de tudo-o-que-você-sempre-quis-saber em relação ao Katrina e a Nova Orleans, que vai desde informações culturais a explicações médicas sobre os riscos à saúde pública. Fora dos Estados Unidos, o jornal inglês Guardian abusou dos recursos gráficos para mostrar com animações e fotos o que aconteceu. Todos as dicas podem ser acessadas gratuitamente.
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