Dante Martins Teixeira tem um dom incomum. Ao observar gravuras antigas de paisagens nordestinas, ele vê um Brasil que sumiu. Nele, um dia existiu uma arara com como essa da imagem ao lado, conhecida como arara-maracanã.
Essa habilidade de achar o que desapareceu Teixeira desenvolveu durante 17 anos de pesquisas no Nordeste, que resultaram em uma tese de doutorado em Zoologia defendida no Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Chama-se “O mito da natureza intocada” e mostra, para quem quiser ver, como tocamos muito além da conta na nossa natureza .
De família, Teixeira herdou o gosto pela leitura, sobretudo em história e antropologia. Formado biólogo, foi trabalhar no Museu Nacional, onde hoje é professor. Foi lá que descobriu que aliar o estudo do passado com a paixão pela fauna e flora poderia gerar resultados interessantes. Decidiu basear sua pesquisa zoológica em fontes históricas brasileiras.
Fontes históricas foram justamente seu primeiro obstáculo. Um país com apenas cinco séculos e pouquíssimos registros feito pelos colonizadores é carente de informação sobre seu própio passado. Foi nos desenhistas e pintores que vieram junto com a invasão holandesa do Nordeste no século XVII, que Dante encontrou a documentação da natureza do país que buscava.
Perseguiu iconografias e textos da época do domínio de Maurício de Nassau em Pernambuco, que estavam espalhados pela Europa, em bibliotecas, museus e gabinetes. Sua persistência rendeu-lhe acesso ao maior acervo existente de gravuras de animais, plantas e habitantes do Nordeste Colonial. Da Ilha de Maranhão até o Sergipe.
Passou então a viajar para a região, atrás dos locais registrados há séculos pelos holandeses. Especialista em avifauna, o professor havia identificado mais de 173 espécies de aves nas gravuras. Foi quando passou a vê-las desaparecer diante de seus olhos. Gaviões, jaburus e várias espécies de araras sumiram por completo da região. Mamíferos seguiram o mesmo caminho. A anta e grandes espécies de macaco, por exemplo, só sobraram nas gravuras holandesas. Na foto acima, a arara-canindé é acompanhada por inscrições do próprio Maurício de Nassau.
Causas da devastação
Os desenhos foram utilizados por Dante como evidência da ocorrência de animais que atualmente não existem mais no Nordeste. Muitos sequer são considerados pela ciência como nativos da região. “Quati, iara e onça, em livros recentes, são registrados como habitantes de várias partes do Brasil, menos do Nordeste. Mas os holandeses viram e pintaram esses bichos e estudos na região comprovam que eles existiram ali”, revela o professor.
“Quanto maior o bicho, mais chance tem de se extinguir. Na listagem de animais do Nordeste de hoje, só tem bicho pequeno”. As conclusões levaram Dante a desenvolver sua tese do mito da natureza intocada. A composição atual da fauna e da flora no mundo resulta de dois tipos de fenômeno: os naturais, como catástrofes e mudanças climáticas, e a ação antrópica, ou seja, a mão do homem. Até aí, nenhuma novidade. O que o professor se propõe a demonstrar é que essa influência vem de muito longe.
Os agentes da devastação de antes são os mesmos de hoje, resguardando as devidas proporções tecnológicas e populacionais. No Nordeste, a ação mais contundente foi sem dúvida a substituição da paisagem natural por monocultura de cana-de-açúcar ao longo dos séculos XVI e XVII, o que levou à perda de 73,63% das florestas da região. “Não nos perguntamos, por exemplo, por que nenhum animal que viva na caatinga tem capacidade fisiológica e morfológica para preservar água. Isso é uma prova de que esse bioma um dia não foi tão árido como se vê hoje”, ressalta Dante.
Exemplos curiosos para comprovar a falsidade da teoria da natureza intocada não faltam. O professor volta às Guerras Púnicas — em que Roma lutava contra Cartago pela hegemonia na região do Mediterrâneo — para falar da distribuição dos elefantes sobre a Terra. Para surpreender o exército romano com um ataque por terra, Aníbal, o general cartaginês, valeu-se de uma enorme falange de elefantes de guerra, com a qual saiu da região onde hoje é a Tunísia e cruzou Espanha, França e os Alpes, antes de chegar ao norte da Itália.
Hoje sabe-se que existem apenas dois tipos de elefantes: os indianos, encontrados na região leste da Índia, e os africanos, que habitam a África sub-saariana. Cartago localizava-se no norte da África. “Como não existe disque-Paquiderme, de onde Aníbal conseguiu seus elefantes?”, pergunta o professor. “Alguns podem até ter atravessado o deserto para se unir à falange, mas a teoria mais possível é a de que existiram elefantes também no norte da África e na Ásia menor, que foram exterminados pelos romanos após a vitória, temendo que Cartago se reerguesse”.
Impacto indígena
Os estudos da influência do homem neolítico na modificação do espaço natural são feitos principalmente em ilhas, ecossistemas menores. A ilha Henderson, no Pacífico Sul, só foi repovoada no século XX. Fora abandonada pelos polinésios três séculos antes. Mas estudos de paleobotânica e de pólens demonstraram que ela já havia perdido 43% de sua avifauna até o século XII.
O Brasil também tem longa história de devastação. No clássico livro A ferro e fogo, Warren Dean menciona registros de carga de navios portugueses, datados de 1532, que provam que em uma só embarcação foram levados para a Corte 3 mil peles de leopardo, 300 macacos e 600 papagaios. Esses últimos eram especialmente apreciados pelos portugueses, que acreditavam tratar-se de anjos decaídos, por sua habilidade de imitar a voz humana.
Dean conta ainda que, até o século XVIII, registros de cronistas revelam a existência de uma arara inteiramente preta, a araraúna (una significa preto em tupi). Depois disso não houve mais registros da arara preta no Brasil, e o nome araraúna passou a designar, equivocadamente, uma ave azul. “Seriam esses pássaros, agora não identificáveis, as primeiras extinções provocadas na Mata Atlântica pela invasão européia?”, pergunta-se o historiador ambiental americano.
O professor Teixeira recorre a outro exemplo para mostrar as precoces investidas que alteraram a fauna brasileira: o das tartarugas na Amazônia. “Até a época do Império, usava-se a manteiga de ovos de tartaruga, vendida em potes, como combustível para a iluminação doméstica. Em uma só cidade no Amazonas, na ilha de Tupinambarana, eram comercializados 12 mil potes num ano. Através de cálculos, concluimos que eram necessárias 132 mil fêmeas para produzi-los. Hoje, se vêem bem menos tartarugas por lá”, conta o zoólogo.
Para ele, pesquisas que ignoram os registros históricos correm o risco de formular lógicas falaciosas. “Um estudo acadêmico sobre a distribuição dos elefantes no mundo vai afirmar que o animal só pode existir no leste da Índia e ao sul do Saara, pois tem como limite de expansão o deserto. Supomos fenômenos naturais onde na verdade houve ação do homem”. Dante acredita que a desinformação também prejudica o discurso ambientalista. “Falamos em defender as áreas teoricamente intocadas, verdadeiras heranças ancestrais. Mas a existência desses locais intocados não passa de sonho”, afirma o pesquisador.
Dante pretende agora ir ainda mais para trás no tempo. Em seu próximo trabalho, quer avaliar os impactos das populações indígenas na natureza, antes da colonização. Um caso típico é o dos índios Tupinambás, que usavam penas de guarás-vermelhos para fazer mantos. Um só manto consumia 100 animais. Já para fazer um cocar colorido, eram necessários 75 papagaios. Hoje o guará-vermelho corre risco de extinção.
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