A pavimentação da BR-319, que liga Manaus (AM) a Porto Velho (RO), é uma das bandeiras do ministro dos Transportes, Alfredo Nascimento. Ele já foi prefeito da capital do Amazonas e deve sair candidato ao governo do estado ou ao Senado no ano que vem. Até 2006, quer investir R$ 300 milhões na nova estrada.
Mas primeiro precisa dobrar a Justiça. As obras foram suspensas pelo juiz substituto da 2ª Vara da Justiça Federal, Ricardo Augusto Sales. Motivo: não foi feito nenhum estudo sobre o impacto ambiental que o asfaltamento de 858 quilômetros em plena floresta amazônica pode causar.
Construída na década de 70, a estrada já foi asfaltada, mas virou um enorme atoleiro no meio da Amazônia, devido aos estragos provocados pelas chuvas e falta de manutenção. As condições da maior parte do trajeto, praticamente intrafegável, mantêm Manaus isolada por terra de outras capitais brasileiras. A dificuldade de tráfego acabou sendo benéfica para a preservação da floresta no estado do Amazonas.
É isso que preocupa os críticos da obra. A pavimentação da BR-319 pode abrir caminho para o avanço do desmatamento de Mato Grosso e Rondônia rumo ao norte. “Além do impacto causado ao redor da estrada, ela vai levar o fluxo migratório do Arco do Desmatamento até Manaus e Roraima”, adverte Paulo Maurício Lima de Alencastro Graça, doutor em Sensoriamento Remoto do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). “Antes de melhorar a estrada, deveria haver um aparato para evitar danos, com o controle do desmatamento, criação de reservas de proteção e o cadastro fundiário na área”, defende o pesquisador.
Impacto do asfalto
Com base em estudos realizados sobre a ocupação de áreas ao longo de outras rodovias na Amazônia, o ecólogo Phillip Fearnside, também do Inpa, fez uma projeção dos estragos que podem ser causados pela pavimentação da estrada nos próximos 15 anos. Na área mais próxima das margens, o impacto de estradas asfaltadas ou de terra é bastante parecido. Mas à medida que a distância aumenta, os efeitos do asfalto tornam-se mais evidentes.
Estradas de terra comprometem em média 5% da floresta, até uma distância de 50 quilômetros das margens. Em rodovias asfaltadas, o dano chega à distância de 100 quilômetros das margens. Isto significa que uma faixa de 200 quilômetros de florestas ao longo da BR-139 deve sentir os efeitos da ação do governo federal, sem contar as estradas secundárias abertas a partir da rodovia, que podem ampliar ainda mais os estragos.
O governo federal não se sente obrigado a fazer Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (Eia-Rima) para asfaltar a Manaus-Porto Velho. A posição se baseia em uma portaria firmada entre os Ministérios dos Transportes e do Meio Ambiente (n° 273/2004), que elimina a exigência do estudo para a recuperação de rodovias pavimentadas.
Já o governo do Amazonas, apesar de favorável à obra, quer compensações ambientais do Ministério dos Transportes. Enquanto o dinheiro não chega, a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Sustentável faz estudos para a criação de um mosaico de áreas de conservação ao longo da estrada até o rio Madeira.
A BR passa pelos municípios do Amazonas com os maiores índices de desmatamento, como Humaitá, Apuí e Lábrea, no sul do estado. Em Humaitá, o corte cresceu 16% no ano passado em relação a 2003, segundo dados do Sistema de Proteção da Amazônia (Sipam). “Em maio deste ano, viajamos 100 quilômetros entre Porto Velho e Humaitá, no Amazonas. Encontramos muita pressão em busca por terra, de trabalhadores sem-terra e migrantes avulsos. Vimos também agricultores de maior aporte de capital em busca de áreas para a agricultura mecanizada”, afirma Paulo Maurício Lima, do Inpa.
“Já existe especulação e grilagem de terra na área. Em áreas públicas, os grileiros já colocaram placas indicando fazendas particulares. Essa pressa para asfaltar só atende ao aumento da área de soja”, reforça Adilson Vieira, secretário-geral da ong Grupo de Trabalho Amazônico (GTA).
De Manaus a Roraima
Rondônia serve como ponte para migrantes de outros estados que chegam à região. A nova estrada pode atrair esta população para Manaus, cidade com Produto Interno Bruto (PIB) per capita entre as cinco maiores do país. A migração, segundo Phillip Fearnside, afetará não só a floresta, mas também a área urbana de Manaus e seu entorno, com o agravamento de problemas sociais e invasões de áreas públicas.
Os problemas podem ir além do Amazonas e chegar ao extremo Norte do país, pela BR-174, que liga Manaus a Boa Vista (RR). “O impacto vai até Roraima, um estado que não tem um Zoneamento Ecológico e está despreparado para resolver o problema da grande migração”, adverte o ecólogo. Ele argumenta que, quando a estrada estava asfaltada e havia linhas de ônibus regulares entre Manaus e Porto Velho, houve um grande fluxo migratório para Roraima.
Os críticos também apontam a diferença de tratamento entre a rodovia Manaus-Porto Velho e um caso semelhante de asfaltamento na Amazônia: a BR-163, que liga Cuiabá (MT) a Santarém (PA).
“Nós queremos os mesmos cuidados que estão sendo tomados com a BR-163, as discussões com a sociedade, um plano de desenvolvimento sustentável, a criação de reservas e medidas para proteger os pequenos produtores”, pede Adilson Vieira. A pavimentação da Cuiabá-Santarém recebeu R$ 13,6 milhões este ano, enquanto o asfalto da Manaus-Porto Velho avançou a toque de caixa, com R$ 100 milhões e nenhuma discussão social ou ambiental. “O asfalto é necessário, mas não do jeito que está sendo feito. Não vejo outra razão para a pressa que não a eleitoral, para conquistar votos para o ministro Alfredo Nascimento e para o governador Eduardo Braga, que é aliado do presidente Lula”, conclui.
Zona Franca
O ministro dos Transportes ignora as críticas e mantém o empenho em pavimentar a rodovia. Seu principal argumento para priorizar a estrada no Amazonas é que o transporte terrestre vai melhorar a competitividade dos produtos da Zona Franca de Manaus.
“Este raciocínio é uma ficção completa. O transporte por navio até o Porto de Santos, em São Paulo, sai muito mais barato do que pela estrada”, afirma Phillip Fearnside. Ele acredita que, com um terço do que será investido no transporte por terra, seria possível modernizar o Porto de Manaus e utilizar a cabotagem (transporte em balsas) para abastecer o Pólo Industrial de Manaus com insumos e escoar a produção, com um frete bem mais barato.
O cientista é cético também em relação ao argumento de que a estrada seria um caminho para os produtos da Zona Franca até o Pacífico, utilizando uma rodovia que vai cortar a Cordilheira dos Andes, a partir do Acre. “Quando a BR-174 foi asfaltada, diziam que ela levaria a produção da Zona Franca de Manaus até a Venezuela, de onde iria para os Estados Unidos. Depois que asfaltaram a rodovia, não apareceu um único caminhão para fazer o transporte. É muito mais barato colocar em um navio em Manaus e levar direto”, diz o cientista do Inpa.
A pavimentação de dois trechos de 100 quilômetros, entre Manaus e Humaitá, já estava em andamento quando a obra foi suspensa. A Justiça determinou que sejam feitos estudos de impacto ambiental no prazo de 60 dias. Caso a decisão seja descumprida, o Departamento Nacional de Infra-estrutura Terrestre (Dnit) terá que pagar multa diária de R$ 50 mil. O Ministério dos Transportes avisou que vai recorrer da decisão.
* Vandré Fonseca é jornalista que há nove anos trocou São Paulo pela emoção de viver na Amazônia. Depois de oito anos trabalhando como repórter em Roraima, agora está em Manaus.
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