Reportagens

Lixo aos pedaços

O lixo que bóia na Baía de Guanabara virou arte nas mãos de famílias que vivem da pesca. Ele agora é recolhido, picotado e transformado em mosaicos.

Carolina Elia ·
21 de outubro de 2005 · 19 anos atrás

Lixo quando cortado em quadrados de um centímetro por mãos caprichosas dá dinheiro. E não é simpatia. É mosaico ecológico. Um tipo de artesanato que mudou a natureza de algumas coisas em Mauá, um distrito de Magé, no interior da Baía de Guanabara, atingido pelo vazamento de óleo da Petrobras, em janeiro de 2000.

Antes do óleo, o que chegava às praias era lixo vindo de vários municípios no entorno da baía. No bolo vinha muito plástico. Não só saco, mas embalagens de xampu, de desinfetante, de produtos de limpeza, pedaços de eletrodomésticos… um supermercado lançado ao mar. Uma das primeiras ações custeadas com a multa paga pela empresa ao Ibama foram mutirões de limpeza. Em seguida, uma parte do dinheiro foi rateada entre prefeituras e ongs que prometeram em troca desenvolver atividades sócio-ambientais na região. Algumas, como a Onda Azul, se concentraram na recuperação dos mangues. Outras, como a Roda Viva, focaram em educação ambiental. Mirando atingir os pescadores, a ong começou a trabalhar com as mulheres, que revelaram a necessidade de aumentar a renda familiar. O talento da maioria era para cozinha, mas Mauá não tem água encanada, portanto não oferece condições sanitárias ideais para a fabricação de produtos comestíveis, como biscoitos. O plano B foi fazer artesanato.

Testa vaso feito de jornal aqui, bolsa feita de engradado de leite ali, nada com muito valor comercial. Mas de oficina em oficina se chegou ao mosaico ecológico, que casava produção de objetos de qualidade com educação ambiental e reaproveitamento de lixo – um dos piores problemas da Baía de Guanabara. Com o projeto, boa parte do plástico depositado pela maré nas praias ganhou serventia. Bastava lavá-los bem, tirar qualquer rótulo e cola que permanecesse na superfície e picotá-los em quadradinhos de mais ou menos 1 centímetro. Depois era criar. Colá-los lado a lado, misturando cores, para formar desenhos que resultassem em quadros ou enfeitassem porta-lápis, caixinhas e vasos de diversos tamanhos.

Segundo Elias Antoane, artista plástico que acompanha o trabalho desde o começo, os primeiros temas foram a fauna e a flora locais. Uma forma de valorizar a ecologia da região. Mas em Mauá, além de peixes, caranguejos e camarões não existe muito bicho diferente dos domésticos. Dizem que os morros que cercam a cidade tinham micos e lobos-guarás, mas há muito tempo não se vê um por lá. A mata também já se foi. O que ficou para inspirar as artesãs foram as paisagens da Baía de Guanabara, a história da cidade – que abrigou a primeira ferrovia do Brasil e tem igrejas coloniais – e o mangue.

Produto do Mangue

Todas as peças produzidas pelo que hoje se tornou a Cooperativa Novo Amanhã de Mauá (COONAM) levam o selo Produto do Mangue. O artesanato que começou com ares de terapia ocupacional num galpão exposto a sol e chuva na Praia do Limão, ganhou uma doação de 150 mil dólares da Fundação Interamericana (IAF) em 2003 e uma sede no ano passado. No início, muitas mulheres foram atraídas a participar do projeto por uma ajuda de custo mensal de 50 reais, mas aos poucos essa assistência acabou e só ficou quem realmente se entusiasmou em transformar o colorido lixo de Mauá em artesanato de ponta. Maria, de 59 anos, se descobriu uma inventora de mão cheia. Até pouco tempo, seus dotes manuais se limitavam a costurar roupas para os filhos, mas hoje não pode ver um plástico ou um jornal jogado fora que transforma em boneca, gato, minhoca ou em delicadas cortinas de PET (foto). “Fico feliz da vida quando dizem que é bonito”, confessa sorrindo.

No começo do ano a cooperativa tinha cerca de trinta integrantes e uma linha de montagem com equipe de corte, lavagem, dia de coleta de lixo e toda uma disciplina administrativa. Com direito a tabela de horas trabalhadas e cálculos de oferta e demanda, custo e lucro. Fruto do contato direto com uma administradora que lhes ensinou o caminho das pedras para a auto-suficiência. Mas a ong Roda Viva não considerou benéfica essa influência, pois o espírito de cooperação entre as integrantes ainda não estava consolidado. A administradora foi afastada, o que  provocou insatisfação, conflitos internos e, por coincidir com um período em que a IAF interrompeu o envio de verba por problemas burocráticos, a cooperativa enfraqueceu.

No dia 13 de outubro, apenas quatro mulheres trabalhavam na casa comprada para a COONAM. Nas mesas, havia várias peças prontas à espera de interessados, já que as lojas diminuíram o ritmo das encomendas. Mesmo assim, Maria Gomes Dias, sua filha Mariuza Dias, Marilda Barros e Maria Lucia Brasilina trabalhavam normalmente. Contaram que, quando a coisa aperta, elas não esperam a verba da Roda Viva para comprar material. Tiram de um fundo onde é depositado 10% das vendas. E se não tem caixinha de madeira reaproveitada para trabalhar em cima, elas batem na porta das lojas de fotografia atrás dos rolos usados para enrolar papel de revelação. Na mão das artesãs, eles viram porta-lápis e porta-clipe (foto). Além da técnica do mosaico, às vezes elas também usam folhas secas e cascas de árvores para decorar a peça, que fica igualmente bonita e com valor comercial. No momento, elas tiram cerca de 50 reais por mês dividindo o lucro por horas trabalhadas. Mas já ganharam o dobro.

O mosaico ecológico mudou alguns velhos hábitos em Mauá. Hoje, tem muito morador que guarda embalagem de xampu, desodorante ou produto de limpeza para as mulheres recolherem. Quem ganha a vida catando latinhas ou garrafas PET, costuma pegar também peças de plástico para trocar pelo PET que as artesãs recolhem em suas andanças pela cidade.

Desde agosto o IAF regularizou novamente o envio da verba para a Roda Viva, que tem o compromisso de aplicar o dinheiro no desenvolvimento da COONAM, em Mauá, e da PESCARTE, em Itambi, outro distrito localizado no interior da Baía de Guanabara. Cláudia Jurema Macedo, gerente-executiva da Roda Viva, diz que a verba permitirá a reorganização da cooperativa. E para atrair as pessoas que se afastaram, a ong oferecerá cursos de informática, de inglês e de beleza na casa da COONAM – que precisa de obras.

Até agora, apenas metade dos 150 mil dólares foi sacada pela ong. Portanto, ainda tem dinheiro para investir na consolidação de um projeto que conseguiu mudar a visão de uma população sobre o lixo. Aliás, muda o olhar de qualquer um. Depois de ver o que se pode fazer com o plástico que bóia na Baía de Guanabara, não se joga mais uma simples embalagem de ketchup fora impunemente. Antes se pensa “Nossa, que vermelho bonito. Isso pode virar um mosaico ecológico”.

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