Reportagens

A última fronteira

Pesquisadores são processados ao denunciarem adulteração no estudo ambiental de hidrelétrica no rio Tibagi. A área é prioritária para conservação no Paraná.

Andreia Fanzeres ·
10 de novembro de 2005 · 19 anos atrás

Neste mês de novembro a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) autorizou o início das operações na hidrelétrica de Barra Grande. Foi o desolador ponto final na batalha dos ambientalistas que alertaram o governo sobre ilegalidades no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da usina, que vai acabar com cerca de 4 mil hectares de florestas com araucárias entre Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Pois se você achava que a mancada do governo em permitir fraudes no licenciamento ambiental fosse ensinar alguma lição às autoridades brasileiras, se enganou de novo. No Paraná, a novela pode se repetir e com direito a nuances pra lá de absurdas.

O cenário desse novo embate é o caudaloso rio Tibagi, principal tributário do rio Paranapanema e único no estado que ainda não tem grandes hidrelétricas em seu leito. Os atores do momento são três pesquisadores que realizaram o Estudo de Impacto Ambiental da usina de Mauá, a ser erguida entre os municípios de Telêmaco Borba e Ortigueira, na porção média do rio. Os especialistas estão sendo processados pela empresa CNEC Engenharia, do Grupo Camargo Corrêa, responsável pelo empreendimento, por danos morais ao falarem em público que o EIA entregue ao Instituto Ambiental do Paraná (IAP) tinha sido adulterado. Até o fechamento desta edição, a empresa não apresentou justificativas para tal atitude.

O ictiólogo Tom Grando e sua esposa Gislaine, da ong Liga Ambiental, mais o ornitólogo Marcos Bornschein, foram contratados em 2002 pela consultoria IGplan, que por sua vez prestava serviço para CNEC Engenharia, para fazer análises ambientais da área de influência da usina de Mauá. Como desde meados da década de 90 eles já percebiam que era recorrente a prática de alteração do EIA — conseqüentemente comprometendo o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) –, decidiram registrar em cartório o documento original assim que o trabalho terminou, em 2004. Foi tiro e queda. Como previam, o estudo que chegou ao IAP não era aquele que haviam produzido. “Para citar apenas um exemplo, foram simplesmente retiradas oito páginas que falavam justamente dos impactos ambientais sobre as espécies de peixes migratórias de grande porte do rio Tibagi, que serão localmente extintas com a construção da usina”, explica Grando. Segundo um assessor da Camargo Corrêa, os biólogos reclamam que uma avaliação sobre tribos indígenas na área de influência do empreendimento foi omitido, coisa que caberia a antropólogos, não a eles.

Mas a gota d’água veio em agosto deste ano. O que irritou os técnicos da CNEC Engenharia foram os pronunciamentos em alto e bom som dos pesquisadores nas audiências públicas marcadas para discutir a construção da usina com as comunidades de Telêmaco Borba e Ortigueira. “Sou responsável sobre o que escrevo e não posso deixar que um documento sério como o EIA tenha o meu nome e engane assim a sociedade”, diz Grando. Para o advogado da ong, Rafael Filippin, foi tudo muito simples. “Eles manipularam informação e na audiência pública denunciamos o caso”. Mas, dois meses depois, veio a mordaça.

“Só posso classificar isso como um ato de revanchismo”, considera Grando, já que a Liga Ambiental tem pelo menos três ações na Justiça contra a empresa. Segundo o jurista Filippin, para a instalação de usinas hidrelétricas no Paraná é obrigatório apresentar uma avaliação ambiental estratégica de toda bacia hidrográfica, o que ainda não foi feito. “Eles estão com medo e vão perder essa briga porque não vão conseguir nos calar”, avisa. “Não temos nada contra a CNEC. Estamos processando também outras empresas que têm projetos danosos ao Tibagi”, lembra.

“Megabiodiversidade”

E isso é o que não falta. De acordo com um inventário hidrelétrico feito pela Companhia Paranaense de Energia (Copel) em 1994, estão previstas nada menos que sete hidrelétricas ao longo dos 616 quilômetros do rio, que corta o estado no sentido sul-norte. E uma das mais perigosas à região é justamente a de Mauá.

A localização da usina não poderia ser mais prejudicial à natureza. Ela foi planejada para ser construída exatamente em uma das áreas mais preservadas do estado, o médio Tibagi, com uma cobertura nativa que só perde para a Serra do Mar e o Parque Nacional do Iguaçu. Segundo a bióloga da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Taís Benato, a região do Tibagi é uma das maiores áreas de mata preservada do estado, que só tem cerca de 9% de florestas. E não é importante só por causa de sua extensão. O local proporciona o encontro de pelo menos quatro ecossistemas: floresta estacional (Mata Atlântica do interior), Floresta com Araucária, Campos sulinos e até Cerrado. Trata-se de uma área de transição tão rica que foi reconhecida pelo Ministério do Meio Ambiente como de altíssima prioridade para conservação.

Tom Grando, da Liga Ambiental, chama toda essa riqueza de “megabiodiversidade”. Segundo ele, não é difícil entender por quê. No caso dos peixes, sua especialidade, o pesquisador diz que enquanto na Floresta Atlântica do estado existem 51 tipos diferentes, no Tibagi foram identificados 83. Além disso, só na área da bacia hidrográfica há todas as ordens de mamíferos registradas no estado, inclusive as de grande porte mais ameaçadas como onças, antas e tamanduás-bandeira. Das 154 espécies de répteis no estado, 118 ocorrem no médio Tibagi e no litoral do Paraná. Quando o assunto são aves, pelo menos 530 espécies foram identificadas na bacia. Esse número equivale ao que foi encontrado na Serra do Mar e nas planícies litorâneas do estado até agora. Algumas, como a maria-leque e o pato mergulhão, raramente são encontradas em outros lugares.

Além de tudo isso, nunca é demais lembrar que a bacia do Tibagi drena uma das regiões de solo mais fértil do mundo, a terra roxa, e oferece outros serviços ambientais diretos às populações de seu entorno. Por exemplo, abastecimento de água. Graças ao desnível de quase mil metros entre a nascente e sua foz, as águas correm com força e os nutrientes são reciclados através das inúmeras cachoeiras e córregos. “A água recupera sua qualidade ao passar pelas quedas, ela é sempre oxigenada”, explica Grando. É por isso que mesmo depois de receber esgoto e efluentes industriais na altura do município de Telêmaco Borba onde apenas 8 tipos de peixes sobrevivem, o Tibagi consegue apresentar, 50 quilômetros adiante, uma variedade de 75 espécies. Mas com as águas represadas pela barragem de Mauá, muita coisa vai mudar.

Conseqüências da barragem

O primeiro problema decorrente do represamento poderá ser sentido pela população de Londrina, segunda maior cidade do Paraná. “Haveria queda na qualidade da água usada para o consumo de 50% da população da cidade, ou 250 mil habitantes, com um agravante: a matéria orgânica dissolvida, ao entrar em contato com o cloro dos sistemas de tratamento de água, gera produtos organoclorados cancerígenos”, alerta José Marcelo Torezan, biólogo da UEL. Segundo o pesquisador, a inundação das terras pode ainda trazer à tona inúmeros depósitos de pesticidas que foram enterrados por muitos proprietários rurais de maneira clandestina depois que sua comercialização foi proibida no país, como DDT, BHC e “Aldrin”. “É impossível localizar tais depósitos. Isso significa envenenar um rio e toda uma população”, diz.

Sem falar na cobertura vegetal. Com capacidade de geração de 382,2 megawatts (MW), a usina vai alagar uma área de 83,30 quilômetros quadrados, informa a CNEC Engenharia. Grando prevê que o empreendimento deixe debaixo d´água cerca de 5 mil hectares de florestas em vários estágios de conservação, sendo que pelo menos 2 mil hectares são de mata primária, coisa muito rara no Paraná. Além disso, o Salto Alemão e o Salto Aparado, além de dezenas de pequenas quedas e corredeiras, ficarão submersos. O Salto Mauá (foto), por sua vez, ficar praticamente seco.

Mesmo com todos esses riscos e as ações que ainda correm na Justiça, o Ministério de Minas e Energia selecionou o projeto da usina de Mauá entre os empreendimentos do setor elétrico que vão ser leiloados no dia 16 de dezembro. Com um detalhe: Mauá ainda não tem sequer licença ambiental prévia. Segundo a Aneel, se o empreendedor não apresentá-la até 10 dias antes do evento, não poderá participar da licitação. Nesse caso, a batata quente vai para as mãos do presidente do IAP, Rasca Rodrigues. E ele logo se defende. “Esse não é o prazo que movimenta o licenciamento ambiental. O que importa é que o projeto tenha um custo-benefício socioambiental e seja de baixo impacto, correspondendo à perspectiva das comunidades”, diz.

Rodrigues informa que o IAP está analisando de forma rigorosa os estudos ambientais entregues pela CNEC Engenharia e aguarda complementações aos documentos porque considera exagerada a altura da barragem de Mauá. “Não são as denúncias de falsificação do EIA que vão inviabilizar a liberação da licença prévia, e sim o fato de o conhecimento técnico do documento não ser satisfatório. Por isso, estamos aguardando mais informações solicitadas sobre o empreendimento”.

Mas para Tom Grando, já existe uma determinação política para a aprovação do projeto. “Nas audiências públicas, representantes do IAP confessaram que sequer haviam analisado o estudo de impacto ambiental até aquele momento”, revela. Por esse motivo, segundo ele, o Ministério Público Federal considerou nula a audiência. Enquanto o CNEC Engenharia não apresenta as informações pedidas pelo IAP, a Liga Ambiental já apresentou pelo menos 47 quesitos não abordados pelo estudo, além do documento original registrado em cartório com os dados omitidos pela empresa. Nas palavras de Grando, essas provas “inexoravelmente inviabilizam o empreendimento”.

Se a decisão está tomada, o que não resta é esperar. “Eu tenho muita esperança que esse hábito de falsificar os estudos ambientais mude a partir da experiência do Tibagi”, diz Grando. Ele e Rafael Filippin, o advogado da ong, garantem que vão continuar chamando a atenção para o escândalo que se delineia e avisam que um documentário está sendo preparado para mostrar à sociedade as imagens da preciosa região ameaçada pela barragem, tal como fez a ambientalista Miriam Prochnow . Com a feliz diferença de que ainda há bem mais tempo para mudar o destino do Tibagi. Ninguém merece outra Barra Grande.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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