Se Lucio Costa é o arquiteto, Oscar Niemeyer o desenhista e Athos Bulcão o colorista, o jardineiro de Brasília é Ozanam Coelho. Ele arejou com o elemento orgânico o concreto e as formas monumentais da capital federal e acabou realizando um sonho de infância. Recordista mundial no que faz, o engenheiro agrônomo já plantou em Brasília 50 milhões de metros cúbicos de gramado, mil jardins e a inacreditável marca de 3 milhões de árvores.
O pequeno Francisco Ozanam era mais um brasileirinho do sul do Ceará, filho de um José e de uma Maria, quando já queria ser doutor. “Eu me lembro muito bem que era um ciclo de pobreza e um ciclo de riqueza. Mas mesmo com a seca inclemente, falta de chuva ou ratos-de-cana (praga que atacava as plantações de seu pai), sempre se tirava alguma coisa”. Homem de fé, na tentativa de introduzir outra cultura no solo ingrato, o pai levou junto com ele o menino de 11 anos para escolher umas mudas de laranjas em um campo de sementes perto do município de Barbalha. “Aquilo foi para mim um encontro marcado. Quando avistei o campo e vi aquele homem dominando tudo, explicando por que sim e por que não plantar, eu acordei para a vida”, recorda-se. “Voltei para casa sonhando, querendo ser aquele tipo de doutor”, referindo-se ao engenheiro agrônomo que o impressionou com o conhecimento de sementes, enxertos e combinações de espécies.
Mas a fé do pai de Ozanam falhou em 1958. “Foram dois anos de uma pobreza franciscana, haja vela. Uma coisa medonha”, lembra. Desiludido, José juntou as economias e montou um pequeno negócio: o Armazém Brasília. Apenas a primeira das incríveis coincidências que ligam a capital federal à história de vida de Ozanam. “Ele era impressionado com o Juscelino. Abriu a loja no mesmo dia da inauguração de Brasília. Morreu feliz lembrando do dia em que viu o presidente de perto”. Mas Ozanam não se deixava contaminar pela tietagem do pai.
“Brasília para mim era o armazém, justamente o que eu não queria para minha vida”, sem imaginar a ironia que se armava em seu destino. Em 1963, ele entregou a chave do armazém de volta ao pai e disse que queria voltar para as plantas. Em 12 de dezembro de 1968, depois de muita dificuldade, Ozanam formou-se em agronomia pela Universidade Federal do Ceará. “No dia seguinte, saiu AI-5. Não houve festa nem formatura”.
Foi quando Melquíades Pinto Paiva, professor do jovem Ozanam, eleito um dos 200 cientistas mais relevantes do século XX e que praticamente adotou aquele estudante, fez o convite para que ele fizesse a capital. “Ele disse: Olha, suas chances de emprego aqui no Ceará são praticamente nulas. Fechou tudo, não se pode contratar… Você quer ir pra Brasília?”. Aceitou sem pensar. Melquíades era amigo do então chefe do Departamento de Parques e Jardins da Nova Capital, Stênio de Araújo Barros. “Ele estava querendo um recém-formado, e eu apareci do nada”.
Caos planejado
Ele conta o primeiro impacto que lhe causou Brasília, ainda dentro do avião: “Fiquei horrorizado com aquele imenso caos planejado, um grande nada. Quando a aeromoça anunciou o já chamado Aeroporto Internacional de Brasília, e eu olhei lá embaixo um barracão de madeira, pensei: Valha-me, tá ruim isso aí!”. Quando conheceu de perto, o susto foi ainda maior. Era um “inferno vermelho”. Ozanam lembra que tudo em Brasília era superestimado. “Me hospedei em um hotel, um barracão caindo aos pedaços, chamado Londres Palace”.
Segundo Ozanam, os pioneiros trabalhavam até domingo sem contabilizar prejuízos porque acreditavam que estavam construindo um lugar para eles. “Eles ouviam isso. Depois da inauguração, os trabalhadores nordestinos descobriram que aqueles apartamentos eram para os ricos. Ninguém sabia onde enfiar aquele povo pobre. Eles foram empurrados para as cidades vizinhas”, recorda-se.
Antes de Brasília emergir, foi preciso derrubar o cerrado até onde alcançavam os olhos (foto). Quando prédios e monumentos começaram a revelar suas formas e dimensões, a Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil (Novacap) começou o plantio das árvores. Ozanam já estava à frente dos trabalhos, aprendendo com o chefe. “Tudo era monumental. Se era para plantar cinco mil árvores na W3 Sul, por exemplo, a gente entrava em contato com escritórios parceiros no Rio e outras cidades, e perguntava: O que é que tem de muda de árvore aí? Manda tudo o que tiver. Eram caminhões e caminhões de mudas de Mata Atlântica”.
Naquele tempo não se pensava em meio ambiente com o sentido que tem hoje. “Meio ambiente era o meio da sala de estar. O objetivo era concluir um projeto de cidade”. Foi um erro que Ozanam nunca mais voltou a cometer. Em 1975, as árvores de Mata Atlântica começaram a morrer, todas de uma vez, e a claridade chegou a tal ponto que um deputado causou frisson ao declarar a inadaptabilidade social do oeste brasileiro, clamando no Congresso que o Rio de Janeiro voltasse a ser a capital do Brasil. E o movimento não foi isolado.
“O negócio ficou feio. Voltamos praticamente à estaca zero. Recomeçamos a fazer excursões no Cerrado, num raio de 500km em volta de Brasília, observando floração, coletando sementes. Depois estudamos como as sementes germinavam”.
Enquanto isso, as máquinas saíam para cortar as árvores fadadas a morrer, de madrugada. “Era para não chocar a população. Cortamos naquele ano 50 mil”, confessa. “Mas a ditadura gostou do descampado. Havia mesmo uma sensação de que não havia trincheiras contra as armas”.
Avesso e imune às oscilações políticas locais, Ozanam está há 35 anos plantando árvores em Brasília e já distribuiu a terceira geração de espécies nativas do Cerrado. “Conheço de onde veio cada muda. Conheço a avó da planta. Fui mais longe do que minha mãe sonhou pra mim. Plantei mais árvores do que eu podia imaginar. Já tive filho e escrevi um livro, mas não parei ainda. Meu desafio agora é plantar árvores para resgatar pessoas”.
Ozanam toca dois projetos sociais nos viveiros da Novacap, que resguardam 300 meninos em situação de risco social. Ano passado, a companhia abriu 300 estágios destinados a multiplicadores desse modelo social pelo Brasil. “Resolvi agora plantar até os sonhos dos outros”, brinca.
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