Reportagens

Trombada na floresta

Ministérios do Meio Ambiente e Transportes travam luta tenaz sobre obras na BR-319. Um quer que elas tenham licença ambiental. O outro diz que não precisa.

Manoel Francisco Brito ·
25 de novembro de 2005 · 19 anos atrás

Na sexta-feira, dia 18 de novembro, advogados do Ministério dos Transportes (MT) derrubaram a liminar que impedia a continuação das obras na BR-319, que liga Manaus à Porto Velho. A paralisação foi pedida pelo Ministério Público Federal, sob a alegação de que os trabalhos estavam sendo feitos sem uma licença ambiental do Ibama. “Retomamos imediatamente as obras de recapeamento e limpeza das laterais da estrada ao longo do quilômetro 178”, informa Edson Cavalcanti, chefe do do Serviço de Obras no Amazonas do Departamento Nacional de Infra-estrutura de Transportes (Dnit). Foi mais um capítulo de uma novela que começou em março, quando Alfredo Nascimento transformou a BR-319 na principal bandeira de sua gestão e utilizou-se de uma portaria interministerial, a 273, assinada há um ano por ele e Marina Silva, para driblar a necessidade da obra passar pelo crivo da diretoria de fiscalização do Ibama. A decisão colocou os dois ministros em rota de colisão.

Enquanto os engenheiros de Nascimento colocavam asfalto e trocavam bueiros no leito da estrada, a ministra deu o troco. Na quarta-feira, publicou uma nova portaria condicionando a liberação de obras de restauração e conservação de rodovias a apresentação, num prazo de cinco dias, de uma lista das obras que estavam sendo tocadas com base na 273. O texto determina ainda que cada uma dessas obras, apesar de dispensadas do licenciamento, precisarão de autorização individual do Ibama para serem feitas, num prazo máximo de 90 dias. Na prática, o Ministério do Meio Ambiente reburocratizou levemente todo o processo para dar um nó nas intenções do Ministério dos Transportes. Na última sexta-feira, foi a vez do Ibama desferir suas estocadas.

Sua diretoria de licenciamento mandou à Advocacia Geral da União (AGU), que tentava conciliar as diferenças entre as duas partes, parecer rejeitando proposta de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) feito pelos técnicos do MT para tentar liberar a obra de vez da necessidade do licenciamento ambiental. Também foi devolvido um estudo escrito pela Universidade Federal do Amazonas sobre as obras na BR-319 com o argumento que ele não faz qualquer análise decente sobre seu impacto ambiental. “Nossa idéia era entrar na Justiça contra o Dnit”, diz Luiz Felippe Kunz Júnior, diretor de licenciamento do Ibama. Mas há uma ordem do governo proibindo que órgãos federais se degladiem nos tribunais.

A AGU chegou a estabelecer uma câmara de conciliação onde técnicos do Ibama e dos Transportes pudessem ventilar suas desavenças e buscar um acordo. A primeira reunião na câmara de conciliação aberta para resolver o conflito aconteceu no dia 24 de outubro. “O encontro foi cordial, mas tenso. A distância entre nós é imensa”, conta Kunz. O clima, na verdade, apenas reflete o ar de briga de foice que se instalou entre Nascimento e Marina e que envolve diretamente pelo menos dois outros ministros, Miguel Rosseto, da Reforma Agrária, e Ciro Gomes, da Integração Nacional. Os três últimos, com o suporte do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC) e sob a coordenação da Casa Civil, trabalham desde 2003 com a hipótese que a obra viária prioritária do governo Lula era o asfaltamento da BR-163, a Cuiabá-Santarém, que corta o Sudoeste do Pará e o Norte do Mato Grosso.

Juntos, começaram a alocar verbas e tempo de suas equipes para elaborar um plano com o objetivo de evitar que o asfaltamento da estrada repetisse as consequências históricas da expansão ou recuperação da malha viária oficial na Amazônia: desmatamento e grilagem de terras. O plano foi batizado de BR-163 Sustentável e apresentado em audiências públicas em municípios do Norte do Mato Grosso e Sudoeste do Pará em julho e agosto do ano passado. Os técnicos do governo voltaram à prancheta para incorporar as sugestões feitas nas reuniões e elaborar as ações para a criação de Unidades de Conservação, a implantação de Distritos Florestais – onde seriam desenvolvidas atividades econômicas pelo menos em teoria pouco danosas à mata – e a ordenação fundiária. Rosseto chegou a destinar o maior naco do orçamento de seu ministério, algo em torno de 30 milhões de reais, para essa última atividade.

Prioridade nova

Tudo pronto, tudo combinado, surge Nascimento com uma idéia diferente da prioridade rodoviária do governo para a região. Amazonense, de olho na campanha eleitoral do ano que vem em seu estado natal, ele elegeu a BR-319 como a obra que marcará a sua gestão como ministro. Alocou 80 milhões de reais para trabalhar em 200 dos 875 quilômetros de extensão da estrada e começou a tocar as obras. Para driblar a licença ambiental, utilizou-se de portaria interministerial negociada no final do ano passado entre Marina e seu antecessor nos Transportes, Anderson Adauto. Ela dispensa obras de recuperação de estradas do licenciamento ambiental. “Mas apenas de recuperação. Qualquer coisa que envolva reconstrução de pontes ou viadutos ou obras para aumento de carga numa estrada demandam a licença”, diz João Paulo Capobianco, diretor de Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente (MMA).

Os lados envolvidos na disputa têm diagnóstico bastante semelhante sobre a situação da BR-319, inaugurada em 1977. Seu trecho inicial de 180 quilômetros, que vai de Manaus até Careiro da Várzea, está com o asfalto em bom estado. Na outra ponta, de Porto Velho, capital de Rondônia, até 34 quilômetros depois do entrocamento da BR-319 com a Transamazônica, a estrada está cheia de buracos, mas trafegável. O miolo disso, pouco mais de 470 quilômetros, é puro atoleiro. Em alguns pontos, o leito da estrada ruiu. Passar nele exige espírito de aventura e uma oração de agradecimento à Embratel, que o mantém aberto porque precisa da estrada para fazer trabalho de manutenção em torres de telecomunicação instaladas na região. Esse miolo é o pomo da discórdia entre a turma dos Transportes e o pessoal de meio ambiente da área federal.

“Os dois trechos onde ainda há asfalto se enquadram na portaria interministerial. Demandam apenas obras de recuperação”, diz Kunz. “Mas no resto, estamos falando de fazer estrada nova, porque a velha sumiu. Aí precisa de licença”. Ele conta que no miolo da estrada há 120 pontes de madeira precárias substituindo bueiros que foram levados pelas águas, atoleiros imensos e extensões inteiras onde a estrada desapareceu. “A estrada não sumiu. Continua lá. O que se fará é apenas trabalho de recuperação”, retruca Cavalcanti, do Dnit no Amazonas, que reconhece que qualquer obra nesse trecho, independente da qualificação que receber, representa aumento de carga. Mas diz que o desmatamento será mínimo, com no máximo 5 metros de largura nas laterais. “Só vamos tocar em mata secundária, que cresceu pelo abandono da estrada”, garante.

Sobre outras questões ambientais, Cavalcanti diz que esse problema precisa ser resolvido pelos “ecologistas”. Bem que um grupo deles se mexeu. Técnicos da Secretaria de Desenvolvimento Sustentável (SDS) do Amazonas desenvolveram um plano para mitigar o que o secretário Virgílio Vianna qualifica como os impactos indiretos. “Vai-se abrir uma área que ainda está praticamente intocada à penetração de grileiros, madeireiros e migrantes”, diz. “Ali a biodiversidade é alta, mas ao mesmo tempo frágil. A equipe da SDS que vistoriou o local encontrou predadores de topo, muitas pegadas de onça. Há pouco, descobriu-se na região até uma espécie nova de gralha, coisa que não acontecia há 250 anos”, diz Rita Mesquita, assessora direta de Vianna. “Nosso plano para reduzir o impacto da estrada contém o óbvio. Aumentar a presenca do Estado, criar Unidades de Conservação e fazer ações de fomento que conciliem atividades econômicas com a conservação da floresta”, afirma o secretário.

Traição

“O plano da SDS do Amazonas é meritório, mas precisa ser analisado dentro do processo de licenciamento ambiental”, diz Kunz, do Ibama. De todo o modo, nem mesmo no Amazonas ou no Ministério dos Transportes ele parece ter sido levado à sério. Vianna mandou para Nascimento a conta total do seu plano. Pediu exatos 10 milhões, 551 mil e 691 reais. Não viu a cor do dinheiro e nem sabe se um dia verá. “Não obtivemos qualquer resposta”, informa. Um outro assessor seu, sob anônimato, deixa as coisas mais claras. “Não acho que vamos por a mão nesse dinheiro se depender de Brasília. É uma pena. Vamos apenas repetir a tragédia habitual das estradas na Amazônia, abrindo a floresta para os grileiros e o desmatamento”, diz. O desmatamento ainda não chegou. Mas a grilagem, definitivamente, já está se espalhando ao longo da BR-319. A equipe da SDS que a percorreu em agosto viu várias áreas com piquetes para demarcar lotes.

Para além do debate técnico, Marina e sua turma no Meio Ambiente se sentem pessoalmente traídos pela súbita mudança de rumo que Nascimento imprimiu às prioridades do Ministério dos Transportes. Para começar, acham que ele se utilizou unilateralmente de uma portaria conjunta, mantendo sigilo sobre isso. O baixo interesse do ministro no asfaltamento da BR-163 no Pará começou a ficar evidente em março desse ano. “A participação dos Transportes nas reuniões que fazíamos sobre ficou subitamente acanhada”, conta Capobianco, do MMA. Depois, Nascimento e sua equipe, ainda sem deixar clarro o que pretendiam, começaram a hostilizar abertamente a idéía de recapear a BR-163. “A resistência ficou tão aberta que numa reunião entre ministros para discutir o problema, Ciro Gomes ficou exasperado a ponto de desferir socos na mesa”, diz um dos participantes do encontro.

Marina não declarou guerra de uma vez ao seu colega de ministério porque atendeu um apelo de Eduardo Braga, governador do Amazonas. Foi ele quem abriu para a ministra o segredo que os olhos de Nascimento estavam voltados para a BR-319. Disse que era contra a idéia, mas que no seu estado o tema era sensível e que não poderia se pronunciar publicamente contra ele. Mas pediu que ela continuasse a combater a proposta. Para surpresa da ministra, ao comparecer em agosto a um jantar em Manaus no Palácio do governo, foi obrigada a ouvir discurso do governador em apoio à recuperação, ou reconstrução, da BR-319. “Ela saiu de lá fula”, relata Capobianco. Foi depois disso que o Ibama e o MMA descobriram que a ação dos políticos do Amazonas em favor da estrada já tinha ido muito além do palavrório. As obras já tinham sido iniciadas.

Sentindo-se apunhalada pelas costas, a ministra ainda tem que enfrentar o risco, bastante provável, de ser deixada pelo governo pendurada na brocha em uma ação a qual dedicou boa parte de suas atenções desde que assumiu o ministério. Trata-se do plano para minorar os impactos de um agora improvável asfaltamento da BR-163. “Seu asfaltamento tinha forte apelo social e econômico”, diz Capobianco, secretário de Biodiversidade do MMA. “Mas seu risco ambiental era imenso”. Trabalhou-se durante dois anos para descobrir medidas que evitassem a biodegradação de sua região de influência. “Agora temos plano para conter o uso predatório da floresta e buscarmos uma economia compatível com a região e o ministro tira do bolso a BR-319, sem plano nenhum”, diz Tasso Azevedo, diretor de Florestas do MMA. “E o que foi feito para a BR-163, para funcionar, precisa do asfalto”. As chances de esse recapeamento acontecer, a cada dia que passa, estão mais remotas. Além dessa derrota, Marina tem tudo para tropeçar em mais um problema na Amazônia. Do jeito que anda a BR-319, tudo indica que ela servirá como referência da mais nova fronteira de pressão humana a ser aberta na floresta.

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