A sobrevivência é o primeiro desafio quando se pensa em uma expedição para a Antártica. No manto de gelo que cobre 14 milhões de km², a temperatura média anual é inferior a 50 graus negativos e não há vida além de microorganismos, liquens e raros musgos. Mas é lá que os cientistas procuram respostas sobre as mudanças ambientais que preocupam o planeta.
Os anos de 2007 e 2008 devem marcar importantes avanços nesse conhecimento. É quando acontece o IV Ano Polar Internacional, um fórum científico dedicado à Antártica e ao Ártico. Pesquisadores brasileiros vêem o encontro como uma chance de ampliar a presença nacional no continente gelado.
O Programa Antártico Brasileiro (Proantar) existe há mais de 20 anos, mas as pesquisas do país estão restritas às áreas periféricas dessa massa de gelo. A Estação Antártica Comandante Ferraz está a 500 km da linha imaginária do Círculo Polar Antártico. A unidade fica na Ilha Rei George, no Arquipélago Shetland, a 3.100 km do ponto mais ao sul do Brasil.
“Temos que marcar o ano polar no Brasil com as primeiras missões dentro da Antártica”, afirma o glaciologista Jefferson Cardia Simões (foto), do Núcleo de Pesquisas Antárticas e Climáticas (Nupac) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ele coordena a participação brasileira em avançados programas internacionais de investigações do gelo antártico. Por exemplo, na estação russa Vostok, onde já foram feitas perfurações com 3.750 metros de profundidade para retirada de registros químicos que, como um arquivo vivo, revelam a evolução do clima e da atmosfera da Terra em milhares de anos.
A grande aventura
Quando Cardia fala em entrar na Antártica significa realizar uma das tarefas que mais gosta – os acampamentos. “A grande aventura se dá dentro do continente”, diz. Na opinião dele, as experiências nos laboratórios da Estação Comandante Ferraz são como férias em hotel cinco estrelas. Nos navios de cabines aconchegantes que transportam cientistas para expedições no oceano Austral ainda há um pouco de adrenalina, em dias de tempestades e ondas altas. Mas a verdadeira expedição à Antártica é nos comboios que seguem em direção ao pólo. Por isso, a equipe brasileira planeja acampamentos e longas caminhadas de madrugada, em que vão enfrentar tempestades e precisar de perícia para não cair nas profundas fendas escondidas sobre a neve.
Jefferson Cardia tem 47 anos e esteve em 15 expedições no Ártico e na Antártica. Ele foi o primeiro brasileiro a percorrer 1.150 km entre as montanhas Patriot e o Pólo Sul geográfico, o ponto central do continente. Viajou em comboio com uma equipe de doze chilenos na mais avançada missão latino-americana na Antártica, entre outubro de 2004 e janeiro do ano passado, num total de 2.300 km (ida e volta), a mesma distância que separa Brasília e Belém. Enfrentou a sensação térmica de 52 graus negativos e adquiriu experiência para as missões brasileiras que pretende realizar por conta do Ano Polar.
O Nupac é o único grupo nacional com especialistas em acampamentos em geleiras. Nas barracas, os pesquisadores enfrentam o lado agressivo da natureza. Mesmo nas regiões costeiras. “Geralmente somos desembarcados pelos helicópteros que levam às vezes uma ou duas toneladas de equipamentos, alimentos para o dobro do período que pretendemos ficar, motos de neve e trenós. Usamos barracas polares preparadas para enfrentar ventos e temos uma alimentação com 3.500 a 4.000 calorias diárias, por causa da perda de energia pelas mãos, pés e rosto”, conta Jefferson Cardia.
Os cientistas brasileiros estão em campanha junto ao governo federal e a iniciativa privada para ampliar as pesquisas na Antártica. Usam o Ano Polar como barganha. Afinal, cerca de 40 países vão enviar expedições para examinar os processos ambientais no continente e sua influência no resto do mundo. O Brasil não pode ficar de fora. Não só pela ciência, mas por motivos estratégicos. Pelos acordos internacionais, não estar na Antártica significa não ter direito a voto em decisões globais sobre os destinos da região, que tem influencia direta sobre o clima e meio ambiente nacional.
Mudanças
A Antártica se espalha mais de 13 milhões de km², é 99% coberta por gelo e concentra 70% da água potável da Terra. Sabe-se que as friagens que em curtos períodos do inverno atingem a Amazônia são formadas no oceano que circunda o continente. O gelo antártico é o principal sorvedouro de energia (heat sink) do planeta e, portanto, um dos principais controladores do sistema climático. O oceano Austral tem 36 milhões de km² e suas águas estão relacionadas ao processo de formação de correntes marinhas. Por isso, a região também tem especial influência sobre nutrientes do mar brasileiro.
Segundo o cientista, nos últimos 12 anos cerca de 15 mil km² de gelo se desprenderam de áreas periféricas da Antártica. Cardia diz que o derretimento não é significativo, pois o continente é imenso e permanece estável. Mas o degelo é indício do aquecimento global e preocupa. Os pesquisadores querem saber se esse processo é contínuo, pois a alteração do nível do mar pode ter conseqüências ambientais, econômicas e sociais catastróficas.
Nos últimos 20 anos, pesquisadores brasileiros observaram redução da camada protetora de ozônio da atmosfera, a desintegração parcial do gelo na periferia do continente e a sensibilidade da Antártica às mudanças ambientais. A partir de 2002, passaram a investigar especificamente as inter-relações da região com a América do Sul, já que a Antártica interfere nas condições ambientais do hemisfério austral. “Para o Rio Grande do Sul estão previstos distúrbios no padrão climático, como distribuição de chuvas e aumento de temperatura”, diz Cardia.
Os cientistas brasileiros têm o compromisso de voltar das expedições com resultados, pois a parte científica do Proantar custa anualmente entre R$ 1,6 milhão e R$ 2 milhões anuais. E os gastos logísticos são no mínimo cinco vezes maiores. O Brasil é líder em pesquisas científicas na América Latina, mas investe cada vez menos na Antártica. Entre 2002 e 2005, os investimentos foram de R$ 5 milhões para toda a atividade científica, envolvendo 20 instituições e mais de 120 cientistas.
Fascínio
Mas nem tudo é trabalho e preocupação. Os cientistas que se dedicam a esse ambiente inóspito ficam fascinados por sua beleza. “Por mim, eu nunca iria embora da Antártica”, afirma sem hesitar a carioca Rosemary Vieira, de 39 anos, que faz doutorado em Geologia Marinha na UFRGS. “Lá nunca um dia é igual ao outro. Um dia pode estar um céu limpo e no outro a gente não conseguir sair da barraca por causa de vento e neblina”, conta ela.
A pesquisadora esteve na Antártica durante 25 dias entre 2003 e 2004, já com bastante experiência em pesquisas a 4.700 metros nas cordilheiras andinas, ao norte do Chile e ao sul da Patagônia. Está acostumada a dormir embalada por rajadas de ventos. E a ficar quase um mês sem banho. Os pesquisadores se defendem com lencinhos úmidos e líquidos diversos. “Passamos o Ano Novo na Estação Comandante Ferraz com um banho delicioso de chuveiro. Consegui lavar meus longos cabelos, que estavam há tantos dias embaixo do gorro que não entrava nenhum pente”, ela lembra.
Agruras que têm compensação. “Uma das maiores emoções foi ver colônias de pingüins com 10 mil a 20 mil aves. São amigáveis, bonitos e fedorentos!”, exclama. A costa do continente é habitada por sete espécies de pingüins. O menor tem pouco mais de 40cm e o maior é o chamado Imperial, com 1,20m e quase 50 kg. A fauna é rica, com focas e andorinhas que migram do Ártico, no Pólo Norte. Além de surpreendentes espécies de peixe, como o peixe-do-gelo, que tem sangue transparente pela falta de hemoglobina e capacidade anticoagulante.
A Antártica recebe pouco mais de mil pesquisadores do mundo no inverno e até 5 mil no verão, entre dezembro e fevereiro. Alguns ficam durante poucos dias, mas há quem fique até dois anos no continente. No ano passado, 27 mil turistas foram levados principalmente por agências européias e norte-americanas. Mas eles não saem dos navios. Ou, no máximo, fazem passeios curtíssimos. Geralmente são idosos que pagam até 30 mil dólares por pacotes turísticos de dois ou três dias.
Perigos e dieta
As caminhadas exigem perícia. Um dos maiores riscos são as famigeradas fendas, buracos profundos escondidos em camadas de neve. Outro cuidado é com a desidratação, que atinge o organismo lentamente, provoca um sono inesperado e pode levar à morte. Sentir frio é sinal de perigo: a hipotermia é constatada quando o corpo fica abaixo dos 35 graus.
Já a dieta dos pesquisadores não é tão mortal como se imagina. A história de que se mantêm apenas com alimentos desidratados e barras de chocolate é fantasia. É verdade que ficam sem ver saladinhas durante o período em que estão no continente, mas comem bem.
“A gente leva comida congelada a vácuo. Comemos de tudo, até estrogonofe. E bifes nos acampamentos. Os argentinos levam a melhor carne do mundo para a Antártica”, relata, sorridente, o pesquisador Jefferson Cardia Simões. O inconveniente é ficar virando o botijão de gás de cozinha, que insiste em congelar.
* Cristina Ávila é jornalista freelancer em Porto Alegre
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