Pior do que a indefinição quanto aos rumos da Amazônia — com ou sem concessões para a exploração de florestas públicas — foi constatar o despreparo dos senhores senadores que tinham em suas mãos a responsabilidade de votar o futuro florestal do país nesta quarta-feira, dia 1°.
Longos discursos e apaixonados argumentos não faltaram, na sessão que começou às 18h45 e terminou às 23h com a aprovação do projeto enviado pelo governo. Mas, na forma e no conteúdo, em diversos momentos o desempenho dos oradores na tribuna evocou o Festival de Besteiras que Assola o País (Febeapá), criação de Stanislaw Ponte Preta que nunca sai de moda em Brasília.
Inconstitucional
Um dos primeiros a falar foi o senador Mozarildo Cavalcanti, do PTB de Roraima, que chegou a ser relator do projeto no Senado. Recorreu à leitura de documentos para embasar sua tese. Entre eles, o parecer de uma “mestranda da Universidade Católica de Brasília”, segundo o qual a lei em votação é francamente inconstitucional. Isso porque o governo estaria se apropriando das florestas públicas, que são bens de interesse coletivo. Entendeu? O governo não pode gerir bens públicos. Surpreende que o senador não tenha recorrido ao STF diante de tamanha ilegalidade. Seguindo este raciocínio, o próprio ato de governar, qualquer coisa, seria inconstitucional.
Em seguida, Mozarildo fez questão de ler trechos de reportagem publicada no jornal “Hora do Povo”, de São Paulo. O não muito conhecido veículo “noticiou” que o projeto de lei serve à “pirataria imperialista”, promovida por ongs estrangeiras vinculadas à exploração de petróleo.
“Não se trata de paranóia conspiratória”, bradaria mais tarde da tribuna a senadora Heloísa Helena (P-SOL/AL). “Isso existe mesmo”, explicou. Segundo ela, há um esquema internacional cujo objetivo é limitar a soberania sobre a Amazônia e implementar uma “administração compartilhada do patrimônio mundial”. E não reconhecer isso é “desonestidade intelectual”.
Claro que uma maldade como esta não poderia ser obra de Marina Silva. “Marina é minha irmã de coração. Tenho com ela uma relação de amor”, derreteu-se a senadora, antes de mais uma vez atacar a “legalização dos grileiros internacionais”, um dos resultados previsíveis da lei em votação.
Pura e santa
Bater no governo e elogiar Marina Silva foi atitude compartilhada por vários senadores. Magno Malta (PL/ES), enquanto chamava a ministra de “irmã Marina”, disse que recebe e-mails de “brasileiros desesperados” por causa do projeto, que uma lei como essa só dá certo “no país da Alice” e que, depois de uma empresa ganhar concessão de uma área por 40 anos, “ninguém mais tira ela de lá”.
O gaúcho Pedro Simon (PMDB) foi além. “Sou um apaixonado pela ministra Marina. É uma das pessoas mais puras, mais santas que eu já conheci”. O projeto acalentado por ela, no entanto, foi classificado como uma “monstruosidade”. “Estamos concedendo como que capitanias hereditárias para grupos internacionais”, atacou Simon, ressuscitando a lenda de que livros escolares americanos apresentam a Amazônia como “patrimônio internacional”. Ele mesmo diz ter um exemplar, “comprado numa livraria de lá”.
Capitanias hereditárias foi também a comparação escolhida por Geraldo Mesquita Jr. (Sem Partido/Acre) para definir a concessão de exploração das florestas públicas para empresas estrangeiras.
Mas por que os senadores só se referem às estrangeiras? Santa ignorância… “Brasileiro produz carro? Produz telefone? Brasileiro produz aço? Não. Brasileiro é varredor da fábrica”, explicou João Batista da Motta (PSDB/ES), que não apenas é brasileiro, como (ninguém diria, ao bater o olho) índio. “Não sei se é porque sou índio. Não sei se é porque amo este país. Mas não admito um projeto desses. E os nossos netos, o que vão falar da gente?”, interrogou, para em seguida defender a soberania da grilagem: “Aqueles que foram para lá, incentivados pelo governo, são chamados de grileiros. Os estrangeiros, não”.
Bala no Ibama!
A julgar pelos discursos, a impressão era de que a gestão das florestas públicas não seria aprovada. Poucos foram os senadores que subiram à tribuna para defender os planos do Ministério do Meio Ambiente. Ana Júlia (PT/PA) tentou, sem sucesso, desmontar o quadro de futuro terrível que os opositores do projeto anunciavam. Disse que apenas 3% da Amazônia entraria no regime de concessões, e acusou: “Os maiores grileiros de terra é que são contra. Eu sei porque conheço”, exaltava-se, quando foi interrompida por Magno Malta. “Eu não tenho terra e sou contra. Tenho terra só nas unhas”, contestou.
Ana Júlia retomou a palavra com outro assunto: a nova autarquia a ser criada diminuirá as atribuições do Ibama. “O Serviço Florestal Brasileiro (SFB) vai fortalecer o Ibama, que não consegue cuidar bem de tanta coisa”, argumentou. Para quê. O Ibama virou alvo de tiroteio. Literalmente. Gilberto Mestrinho (PMDB), três vezes governador do Amazonas, contou que, certa vez, passou a seguinte instrução para ocupantes de uma área: “Se chegar fiscal do Ibama, atire no fiscal”. O órgão é “famigerado” e os funcionários corruptos, explicou o senador.
Mestrinho deu importantes contribuições para o Febeapá florestal em que se transformou o plenário do Senado. “A floresta é secundária. O valor está na biodiversidade”, teorizou. Melhor dizendo: “Uma bactéria, um fungo, podem ser levados aos milhares numa caixa de fósforo. Tive informações de uma empresa que faturou 1 bilhão de dólares com uma bactéria do meu estado”. Recorreu também à opinião de personalidades. “Gisele Bündchen disse que Lula precisava demitir metade dos ministros”. Fez denúncias graves (“O código de crimes ambientais foi feito para dar de presente ao Clinton”) e previsões alarmantes (“Os povos da floresta vão virar mendigos e marginais na cidade”).
Por fim, deu sua opinião sobre sistemas de manejo florestal. “Estamos fugindo do modelo que o mundo adota. No mundo todo, quem cuida das florestas é o Ministério da Agricultura”, afirmou.
Exemplo finlandês
Mas em matéria de comparação com modelos internacionais, houve exemplos mais contundentes. A exploração florestal da Finlândia aparentemente conquistou os senadores. Valdir Raupp (PMDB), ex-governador de Rondônia, comparou a área explorada no gelado país nórdico à de um “município grande da Amazônia”, e tinha números à mão para enriquecer seu raciocínio: ela exportou 17 bilhões de dólares em madeira. “A Nokia, líder dos celulares, surgiu de uma madeireira”, acrescentou, a título de curiosidade.
Sibá Machado (PT/AC), defensor do projeto, também louvou o cultivo de florestas finlandês, comparando o tempo de rodízio entre as áreas de corte, que é muito maior por lá, para defender as vantagens econômicas do modelo proposto para o Brasil. O fato de a composição florestal nórdica ser ligeiramente diferente da selva tropical brasileira, e de o cultivo deles ser plantado, enquanto o manejo na Amazônia se refere à floresta nativa, foram detalhes sem direito a menção ou aparte.
Cheio de orgulho capixaba, Gerson Camata (PMDB/ES) tratou de deixar claro que os senadores do seu estado “têm autoridade para falar de floresta” porque lá está a maior área de madeira plantada da América Latina. Referia-se à produção de eucalipto para papel e celulose. Tudo a ver.
Nessas horas, um instante de auto-crítica cai bem. Ela veio através de Pedro Simon. “Não entendo mais nada. Não entendo o que está acontecendo. Não entendo que apaixonados pela Amazônia estejam tão tranqüilos, defendendo com tanta convicção este projeto”. E emendou com a pergunta fatídica: “Qual o estudo que o Congresso brasileiro tem feito sobre a Amazônia?”.
Constatada sua insegurança e a de seus pares para opinar sobre o assunto, ele propôs adiar a votação. Por alguns anos. Pra que pressa? “Afinal, a Amazônia não está pegando fogo”.
Não?
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