A temporada é farta em mudanças nas regras do jogo ambiental. Umas recebidas com entusiasmo, outras com desconfiança, todas têm em comum o traço marcante das leis à brasileira: a distância entre as intenções do texto e sua aplicação à realidade.
Depois da aprovação, em seqüência, do Projeto de Lei que instituiu a concessão de florestas públicas para exploração privada, e daquele que regula as formas de intervenção na Mata Atlântica, a novidade da vez é a resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) que mexe com as Áreas de Preservação Permanente (APPs).
Novidade em termos, porque a proposta vem sendo discutida desde 2003, causou forte reação dos ambientalistas quando foi apresentada em maio de 2005, e foi parar até no Supremo Tribunal Federal (STF), que por uns tempos se perguntou se não seria inconstitucional o Conama interferir nas APPs.
Resistências vencidas uma a uma, o conselho aprovou, nesta quarta-feira, uma série de normas pelas quais as APPs podem ser alteradas, em nome de duas razões maiores — a “utilidade pública” e o “interesse social” — ou ainda em casos de “baixo impacto”. Fica portanto afrouxada, de norte a sul do Brasil, a prioridade de proteção aos mangues, nascentes, encostas, margens de rio, dunas, restingas, escarpas, brejos, topos de morro e outras áreas consideradas estratégicas para a manutenção do equilíbrio dos ecossistemas e dos serviços ambientais essenciais para a sociedade.
Flexível demais
“É claro que o Código Florestal de 1965 era extremamente restritivo e que o Brasil da época era outro país. Sei que a lei precisava de modificações. Mas abriram demais”, lamenta Maria Tereza Pádua, colunista do O Eco e ex-presidente do Ibama.
De fato, “utilidade pública” e “interesse social” ganharam interpretações muito abrangentes. As APPs poderão ser modificadas ou suprimidas para obras de transporte, saneamento, energia e mineração — o que inclui areia, argila, cascalho e outras matérias-primas da construção civil. E não só. O Conama aproveitou a oportunidade para propor a criação de “parques urbanos” nessas áreas, dar uma mãozinha à regularização fundiária e incentivar um certo “manejo agroflorestal ambientalmente sustentável”, seja lá o que isto for.
“É o manejo que não descaracteriza a cobertura vegetal nativa. Como extrair castanhas, frutos, sementes”, explica Dominique Louette, coordenadora técnica do Conama. Quanto à regularização fundiária em APPs, ela só será permitida para populações de baixa renda. “É um problema social. Os moradores que moram nas margens de rios têm direito à moradia e não têm outra alternativa”, argumenta. E o direito de viver em um lugar a salvo de enchentes? Dominique reconhece que este ponto causou controvérsia entre os ministérios do Meio Ambiente e das Cidades.
O Conama queria manter uma faixa mínima protegida às margens dos rios, mas o Ministério das Cidades, interessado em regularizar as favelas e invasões, “não queria nem ouvir falar nisso”. Por isso ela considera uma vitória o texto final, que determina uma faixa de 15 metros, na qual as ocupações não poderão ser regularizadas (para APPs fora de área urbana ocupada, a faixa é de 30 metros). Seguem ilegais, e o poder público responsável por desocupá-las. Como já é, e não o faz.
Quem decide
O problema é quem vai botar na balança, de um lado, as áreas naturais (outrora) protegidas, e de outro as inúmeras versões possíveis para “manejo agroflorestal”, “parques urbanos”, “ocupações consolidadas”, “baixo impacto”, mineração e etc. A decisão caberá ao “órgão ambiental competente”, na esfera municipal ou estadual.
“No perímetro urbano as APPs não valem mais nada: pode fazer parque, pode andar de bicicleta. A maioria dos municípios não tem Plano Diretor, e quando tem o prefeito muda o quanto quiser. Em pequenas propriedades qualquer pessoa também vai querer mexer. Quem não vai querer regularizar sua casa à beira do rio? E qualquer prefeito vai deixar”, resume Maria Tereza Pádua.
A (in)competência dos poderes locais preocupa o próprio Conama. “Sabemos que é um risco. Mas a intenção é reforçar o Sisnama [Sistema Nacional do Meio Ambiente]. Se nunca delegarmos nada, se não descentralizarmos, nunca vamos fortalecer a capacidade dos órgãos locais”, diz Dominique Louette. Ela explica que a sociedade poderá acompanhar todas as licenças, que estarão cadastradas no Sinima, o Sistema Nacional de Informação sobre o Meio Ambiente, outra novidade a ser lançada em breve. O Conama também vai criar um Grupo de Trabalho para acompanhar, no primeiro ano, a aplicação da resolução pelo país, para fazer ajustes, se necessário.
Papel do Conama é ser otimista quanto à sua própria resolução. “A autoridade local agora tem a chance de adaptar a lei à sua realidade”, espera Dominique. Papel dos ambientalistas é temer justamente essa “adaptação”. “Foi uma enorme infelicidade. O Conama ficou com medo de enfrentar outras áreas, cedeu a muitos interesses e violentou as APPs”, critica Maria Tereza.
No abismo entre lei e realidade, o Brasil dá mais um salto no escuro. Mas tem outro jeito?
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