Veneno lançado por um avião agrícola atingiu a zona urbana de Lucas do Rio Verde, município de 22 mil habitantes localizado na região norte de Mato Grosso, a 350 quilômetros de Cuiabá. O produto pode ser o herbicida Gramoxone, um dessecante da Classe I – o mais elevado nível de toxicidade – banido em vários países e que pode causar fibrose pulmonar e lesões no fígado e rins.
Hortas, jardins e pomares expõem sinais da contaminação – folhas secas, manchas e flores abortadas – por toda a cidade. Muitos horticultores perderam toda a produção. Em um centro de cultivo e distribuição de plantas medicinais, canteiros contendo mais de 60 variedades terão de ser integralmente descartados.
“Encontramos pequenas propriedades que foram afetadas por completo. Não sobrou sequer um pé de alface”, apontou o biólogo Rodrigo Ferreira de Morais, secretário-executivo do Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Formad) que, juntamente com um médico e um engenheiro agrônomo, esteve no município colhendo informações para elaborar uma denúncia ao Ministério Público.
O grupo já solicitou à Secretaria de Saúde do município um relatório detalhado das internações e atendimentos realizados na rede pública desde o dia 1º de março – data em que teria sido feita a aplicação. O objetivo é confirmar os muitos relatos que indicam um aumento dos casos de náusea, febre e diarréia, especialmente entre as crianças. “O mais importante agora é identificar o produto. O segundo passo é descobrir quem foi o responsável por esta aplicação irregular”, apontou Morais.
Durante a visita à cidade, a comitiva do Formad teve motivos para acreditar que este segundo ponto já poderia estar elucidado. “Pelo teor das conversas, pudemos perceber que a cidade inteira sabe de onde partiu o avião, mas ninguém quer tocar no assunto. Até mesmo aqueles sitiantes que foram mais prejudicados têm medo de denunciar”.
Não é difícil entender o comportamento dos moradores. A agricultura é o coração da economia de Lucas do Rio Verde: emancipado há menos de 20 anos, o município ocupa o segundo lugar na lista dos maiores produtores de grãos do país – quase 1% da produção nacional, perdendo apenas para a também mato-grossense Sorriso. A área plantada supera os 220 mil hectares, a maior parte ocupada por soja, algodão e pelo milho de segunda safra.
Tamanho poderio econômico também significa poder político. Em visita ao prefeito da cidade, Marino José Franz, o grupo de especialistas viu o caso de contaminação ser tratado como um acidente sem maiores conseqüências. “O prefeito nos disse o gramoxone não faz mal algum. E que o produto é utilizado sem problemas no manejo dos canteiros da cidade”, relatou o biólogo Rodrigo Ferreira de Morais.
Além de ignorar por completo o potencial lesivo do veneno, o prefeito também não sabia que havia confessado uma irregularidade. De acordo com o engenheiro agrônomo que acompanhou o grupo, James Frank Mendes Cabral, o gramoxone (também conhecido como paraquat) não pode ser utilizado a menos de 15 quilômetros de áreas habitadas.
Uso em larga escala
O exemplo extremo de Lucas do Rio Verde ajuda a lançar luz sobre o uso indiscriminado dos agrotóxicos em Mato Grosso, estado que concentra as nascentes de alguns dos principais rios das bacias Platina e Amazônica. Na esteira do desenvolvimento do agronegócio e da demanda por produtividade a qualquer custo, o consumo destes produtos aumenta a cada ano.
Em 2001, um levantamento do Instituto de Defesa Agropecuária do Estado (Indea) revelou um consumo anual superior a 20 milhões de litros. No ano passado, o Instituto Nacional de Processamento de Embalagens Vazias (InpEV) divulgou que Mato Grosso liderava o balanço nacional da devolução de embalagens de agrotóxicos, com mais de 2,6 mil toneladas – um aumento de 19% em relação ao ano anterior.
Os efeitos desse processo já começam a ser mensurados pela ciência. Em 2005, uma pesquisa coordenada pelo Departamento de Química da Universidade Federal de Mato Grosso em 16 rios do Pantanal – Jauru, Paraguai, Sepotuba, Cabaçal, Cuiabá, São Lourenço, Vermelho, Correntes, Itiquira, Coxim, Taquari, Negro, Apa, Aquidauana, Salobra e Miranda – encontrou resíduos de substâncias tóxicas em 83% das amostras de sedimentos, dentre as quais o endosulfan, de alta toxicidade para os peixes.
Só um lembrete: não há agricultura no Pantanal.
* Rodrigo Vargas é jornalista free-lancer em Cuiabá (MT) e faz parte da Rede Brasileira de Jornalistas Ambientais.
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