Elas andam em bandos, aos gritos. Atacam quem se aproxima. Brigam entre si pelo domínio do território. Comem qualquer porcaria. Mas sua chegada é muito bem-vinda.
A partir de março, as gaivotas se multiplicam nas ilhas costeiras do litoral sul do país, enfeitando a paisagem com seus vôos rasantes e vigorosos, adequados para se alimentarem à beira da praia ou na superfície das águas. É época de reprodução.
Nas Ilhas de Arvoredo, Moleques do Sul e Xavier, em Santa Catarina, alguns ninhos já são avistados sob a vegetação rasteira, em depressões de areia. E ai de quem ousa chegar perto deles. Para protegê-los, as gaivotas voam sobre as pessoas que passam por ali e não poupam bicadas. Edson Barbieri, ornitólogo e pesquisador do Instituto de Pesca de São Paulo, diz que a espécie é extremamente atenta e estrategista. “As ninhadas em colônia, assim como os gritos, são nada mais do que formas de proteção”.
Geralmente, cada gaivota coloca de um a três ovos por temporada, mantendo o hábito de pousar nas praias, junto às demais companheiras de viagem, para descansar. “Mas quanto mais próximo fica o nascimento dos filhotes, menos exemplares da espécie — que chegam a 3 mil naquelas ilhas, nesta época — são avistados na areia”, diz Barbieri.
O início do ciclo reprodutivo é marcado pelo deslocamento dessas aves, que partem das praias e falésias onde habitam boa parte do ano, para as ilhas costeiras. Lá as gaivotas encontram as condições ideais para se protegerem dos predadores naturais – as fragatas, que ameaçam ovos e filhotes, e os tubarões, que podem comê-las quando pousam na água. “Esse ciclo tem uma razão de começar agora. O fim do verão corresponde a períodos de maior produtividade marinha, ou seja, quando há maior quantidade de comida”, explica Alexandre Filipini, oceanógrafo e pesquisador de aves marinhas de Santa Catarina.
Um dos pontos altos das manobras voadoras que encantam turistas é quando as gaivotas mergulham no mar. Quer dizer, não é exatamente um mergulho. “Elas apenas pousam, levemente, na água, para capturar alimento e também para limpar a plumagem”, explica Filipini. O corpo longo e flexível permite ainda que, voando muito alto, mantenham o equilíbrio e planem durante um longo tempo.
Os filhotes só vão nascer em setembro. Ainda assim, seus pais permanecem nas ilhas por mais três meses. Os machos exercem o papel fundamental de proteger a ninhada. As jovens gaivotas logo aprendem a voar sozinhas. É o sinal para as adultas voltarem a se abrigar nas áreas costeiras, pertinho da praia, e só retornarem às ilhas para buscar mais comida.
Urubus da praia
E como elas comem! Muitos pesquisadores sustentam que as gaivotas são equivalentes a “urubus da praia”: alimentam-se do rejeito da pesca do camarão à carniça de animais mortos. “Fazem um verdadeiro trabalho sanitário. Mas, vá lá, são mais bonitas que os urubus”, brinca o oceanógrafo Filipini. O ornitólogo Edson Barbieri classifica a espécie como oportunista. “É só ter carniça que elas aparecem”.
Por conta desse comportamento, muitas gaivotas caem em armadilhas. Em Florianópolis, as armações de pescadores com restos de peixes acabam aprisionando as mais jovens, atraídas pela isca. E como elas tomam conta de uma parte considerável da areia, o equipamento pode, sim, desordenar o ambiente reprodutivo. “Os pássaros fogem, assustados com a estrutura dos acampamentos. Compromete o período de incubação dos ovos, que demora mais de 25 dias”, ressalta Barbieri, que é também analista ambiental do Ibama de Florianópolis.
O Ministério Público tem acolhido várias denúncias de degradação do espaço físico das ilhas do estado – com danos que vão muito além do hábitat das gaivotas. Na prática, o problema é o mesmo que atinge quase todas as esferas do meio ambiente no Brasil: carência de organização e orientação. “A estrutura dos órgãos que fiscalizam e fomentam o setor está praticamente desmontada. Falta fiscal e falta vontade política”, reclama o ornitólogo.
Por sorte ou vontade da natureza, as gaivotas da Ilha de Santa Catarina vivem na contramão dessas ameaças. A população de Larus dominicanus, uma das espécies mais comuns na região, só tem aumentado. Encontram em Santa Catarina o seu ponto fraco: muita, mas muita comida. “Há abundância de rejeito da pesca do camarão, além do crescimento dos lixões, fonte de carniça para elas”, salienta.
Sobrevida no desequilíbrio? Pode ser. Mas, de todo jeito, o que todo mundo quer mesmo é ver esse bando elegante voar.
* Fernanda Martorano é jornalista no Rio de Janeiro mas vive indo a Florianópolis, onde nasceu.
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