Depois de atropelar o cerrado brasileiro, a soja está em ponto de bala para roubar de madeireiros e pecuaristas o título de vilão-mor no desmatamento das florestas tropicais úmidas da Amazônia brasileira. Quem diz isso é a Campanha Amazônia do Greenpeace em relatório recém-lançado na Europa cuja versão em português está recebendo os toques finais dos seus tradutores. Concluído depois de dois anos de investigações e estudos, o trabalho mostra que 5% da produção nacional do grão entre 2004 e 2005 cresceram em 1, 2 milhões de hectares onde antes se enraizavam exuberantes matas amazônicas. É o que aconteceu, por exemplo, na região de Santarém, cidade plantada nas margens do Tapajós, no Pará, ponto final da famigerada rodovia BR-163.
Lá, a febre da soja, aquecida pela construção de um terminal portuário da Cargill em 2002, fez o índice de desmatamento no município dar um salto em 2004, quando foram derrubados 28 mil hectares de floresta para o plantio do grão. É quase o dobro do desmatamento ocorrido dois anos antes. A presença da Cargill no meio da indústria do desmatamento pela soja no Brasil não é uma exceção, mas a regra. Como explica o estudo do Greenpeace, a simples presença de obras de infra-estrutura, como estradas, e de compradores de grandes quantidades do grão do porte da Cargill basta para empurrar o avanço do grão sobre a floresta.
Mas agora ela faz muito mais do que estar apenas presente em áreas de desmatamento. A Cargill hoje substitui os bancos no financiamento do custeio da produção de soja, adiantando dinheiro mediante a assinatura de contratos de compra antecipada da produção com os fazendeiros. E ela não está sozinha nessa prática. Bunge, ADM, Dreyfus e o grupo Maggi, que tem entre seus controladores Blairo Maggi, sojicultor e governador de Mato Grosso, também assumiram a responsabilidade de financiar a produção dos grãos que compram. Junto com a Cargill, elas respondem pela compra e processamento de 80% da safra de soja brasileira – hoje estimada em 50 milhões de toneladas anuais.
Para além das empresas que exportam a soja brasileira para o mercado externo, há uma outra ponta importante nessa rede de incentivo do plantio do grão que já consumiu boa parte do cerrado e hoje mordisca as bordas da Amazônia: os consumidores na Europa e nos Estados Unidos. O relatório do Greenpeace diz que nossa soja, transformada em ração, alimenta boa parte dos frangos e bois que suprem as necessidades de supermercados e restaurantes de fast-food que se espalham pelas cidades do chamado Primeiro Mundo. Há um caso específico fartamente documentado no relatório do Greenpeace, o do McDonalds, responsável pela compra de 5% dos alimentos produzidos pela Cargill e suas subsidiárias como a Sun Valley.
Irresponsabilidade ambiental
Apesar de professar responsabilidade social e ambiental em sua atividade, a McDonalds até bem pouco tempo jamais se preocupou em saber se a ração de soja que alimenta os frangos que ela compra da Sun Valley para seus restaurantes tinha algo a ver com a destruição da floresta amazônica. E segundo a investigação do Greenpeace, tem tudo a ver. Levantamento das exportações de soja brasileira da Cargill em 2005 e 2006 indica que ela transportou para a Europa 220 mil toneladas do grão produzido em três estados amazônicos – Rondônia, Mato Grosso e Pará. A maior parte disso acabou no terminal portuário da Sun Valley em Liverpool, na Inglaterra, de onde seguiu para engordar frangos em suas granjas junto com soja de outras regiões do Brasil e do mundo.
O Greenpeace resolveu cobrar publicamente da McDonalds a adesão à sua própria política. A partir de março, em ações na Europa, seus ativistas, fantasiados de frango, invadiram restaurantes da rede e se acorretaram às mesas, chamando a atenção para a questão. A empresa não agüentou a publicidade negativa e sentou-se à mesa para discutir o assunto com representantes da Ong. No último dia 9, como adiantou a coluna Salada Verde aqui em O Eco, houve encontro entre as duas partes para que a turma do Greenpeace pudesse explicar ao pessoal da empresa quais os conceitos que definem a produção de soja no ecossistema da floresta amazônica, primeiro passo para dizer aos seus fornecedores que ela não aceitará mais comprar frangos alimentados com esse grão.
Essa cadeia que começa nos confins da região Norte e acaba no estômago das populações da Europa e Estados Unidos, além de já ter incentivado a transformação do cerrado num imenso deserto de soja que agora se projeta sobre a Amazônia, faz prosperar uma corrente de ilegalidades que vão desde derrubadas de árvores sem autorização até a grilagem ou ocupação irregular de terras no Brasil. A investigação da Ong a levou a concluir que três quartos do desmatamento de Mato Grosso nos últimos anos foram irregulares.
Na fazenda Roncador – um colosso de 150 mil hectares que pertence a Pelerson Penido – localizado no município de Querência e já dentro de ecossistema amazônico, imagens de satélite comprovam a derrubada de floresta em mais de 50% do terreno, em flagrante violação da regra do Código Florestal brasileira que obriga a manutenção de reserva legal cobrindo 80% dele. Em Santarém, onde 100% dos desmatamentos recentes não foram autorizados, os fazendeiros estão sentados sobre terras das quais nenhum deles detém o título de posse e onde também não cumprem a obrigação de manter reserva legal de 80% nos terrenos que controlam.
Falta de governo e realidade
O Greenpeace anda pondo pressão nos outros elos dessa corrente de irregularidades. Em abril, uma manifestação de seus militantes paralisou as atividades de um porto da Cargill em Amsterdan, Holanda. Agora, ela planeja trazer o confronto para a própria área de Santarém, onde um de seus três navios, o Arctic Sunrise, ancorou na quinta-feira de manhã bem em frente ao terminal que a Cargill erigiu irregularmente – sem a execução de um Estudo de Impacto Ambiental – às margens do Tapajós. O embate com os sojicultores da região foi aberto em março, quando denuncia da Ong levou à prisão, por grilagem de terra e desmatamento ilegal, de José Donizetti de Oliveira, flagrado derrubando 1 mil e 645 hectares de floresta primária à Leste de Santarém.
A intenção do Greenpeace é impedir a expansão da soja para dentro dos ecossistemas da floresta amazônica. “O volume da produção nessa área, apenas 5% do total da soja produzida no Brasil, ainda é pequeno o suficiente para ser barrado e forçado a recuar”, diz Paulo Adário, coordenador da Campanha Amazônia do Greenpeace. Mas este é apenas um dos passos na estratégia geral da Ong para a região que, segundo Adário, baseia-se na constatação que a defesa de uma proposta estrita de conservação esbarra em dois problemas fundamentais: a falta de presença do Estado e a realidade.
“Existem hoje 22 milhões de pessoas na Amazônia”, diz ele. “Não há como reverter esse processo e expulsá-las daqui”. O que o Greenpeace quer é a imposição de uma moratória na exploração em escala industrial do solo que a floresta ainda ocupa na região. “Isso abre espaço para a busca de exploração em bases comunitárias ou de manejo florestal”. Naquelas áreas próximas à regiões onde existam florestas primárias que já sofreram algum impacto, a Ong propõe que sejam permitidas operações de extrativismo ou manejo, mas desde que elas se comprometam a serem parceiras na proteção das áreas que ainda estão intactas.
Isso, na visão do Greenpeace, não apenas abre alternativas de renda para quem já está na região, ordenando o uso do solo e da floresta, mas resolve um dos principais problemas para a conservação na Amazônia, a ausência do governo. “Concretamente, não dá para achar que o Estado sozinho garantirá a integridade de uma Estação Ecológica na Terra do Meio, no Sul do Pará”, diz Adário. “Conservação não é uma prioridade da população e muito menos dos políticos. Tudo aqui ainda é razão para se fazer justiça social. Inclusive derrubar florestas”.
Parede verde
Para virar esse jogo e suprir as deficiências governamentais, o Greenpeace acha que Unidades de Conservação precisam estar cercadas por projetos comunitários, terras indígenas e operações de manejo florestal, que em troca de assistência técnica e dos recursos que extraem da floresta, ajudariam a manter as Áreas de Preservação Permanente na Amazônia. Funcionaria como uma espécie de barreira verde, ajudando a monitorar e controlar a devastação. Adário sabe que não é uma proposta de solução definitiva. Sabe também que a falta de governo na Amazônia pode, mesmo nesse caso, fazer tudo ir pelo ralo.
Afinal, a mesma falta de autoridade que incentiva a derrubada contínua de árvores pode muito bem tentar índios, comunidades e empresários certificados a adotar práticas selvagens e avançar sobre áreas onde a floresta ainda permanece intacta. “A idéia tem riscos. Mas ela é, sobretudo, uma alternativa que busca ganhar tempo, desacelerando o avanço sobre a floresta”, afirma Adário. A esperança é que uma pressão continuada sobre a cadeia de desmatamento da Amazônia, que vai da produção em escala industrial, passa pelas grandes obras de infra-estrutura e chega até os mercados consumidores, um dia reverta toda essa prática e impeça destruição total da maior área de floresta que ainda resiste no mundo.
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