Reportagens

Macaquinho sob estresse

Crescimento de Manaus acaba com 5 mil hectares de áreas verdes por década e põe em risco o sauim-de-coleira, espécie endêmica dos arredores da capital amazonense

Vandré Fonseca ·
23 de junho de 2006 · 18 anos atrás
O Saguinus bicolor está classificado como Criticamente em Perigo de extinção, conforme a Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da Fauna Brasileira. Foto: Whaldener Endo/Wikipédia.

O sauim-de-coleira (Saguinus bicolor) é um animal pequeno e ágil. Mede 30 centímetros de comprimento, mais 40 centímetros de cauda e pesa cerca de meio quilo quando adulto. É fácil identificá-lo. A cabeça preta sem pelos contrasta com a pelagem branca do pescoço e forma uma espécie de coleira. O resto do corpo é negro. Ele pode ser encontrado a até 40 quilômetros ao Norte de Manaus, em uma faixa que começa a Leste, no rio Cuierias (afluente do rio Negro), e a Oeste, no rio Urubu (afluente do Amazonas), que passa por Manaus, Rio Preto da Eva e Itacoatiara uma área de 7.500 quilômetros quadrados.

O sauim-de-coleira é considerado criticamente em perigo de extinção devido à redução de seu habitat. Nas áreas rurais, o animal é ameaçado pela expansão da agropecuária. Mas é na cidade de Manaus que o animal sofre as maiores pressões. Embora o Amazonas ainda mantenha mais de 95% da cobertura florestal preservada, a capital do estado vive a tendência inversa.

Manaus perde, em média, 1,5 hectares de mata urbana por dia. Nos últimos 18 anos, foram derrubados 9.601 hectares de área verde dentro da cidade, de acordo com os dados do Centro Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia em Manaus (Sipam). A equipe de Análise Ambiental do Sipam comparou imagens do satélite Landsat 5, de 1986, 1995 e 2004 e divulgou na última semana os números do desmatamento no perímetro da cidade.

Desmatamento em Manaus

De acordo com o estudo, a área urbana de Manaus, que ocupa 44.130 hectares – o equivalente a 4% da área total do município – tinha 24.866 hectares de florestas em 1986. Em 1995, este número tinha sido reduzido para 20.612 hectares. E em 2004, restava apenas 15.265 hectares de áreas verdes. Isso significa que, apenas durante o período estudado, a cidade perdeu 22% de matas nativas.

As fotos de 1986 mostram que existiam grandes manchas verdes nas Zonas Leste, Norte e Oeste da Cidade, justamente para onde a cidade avançou até 2004. Na Zona Leste, conforme o estudo, a área institucional da Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), onde está o Distrito Industrial, serve de barreira ao avanço do desmatamento. Na outra ponta da cidade, Zona Oeste, embora esteja mais preservada, no bairro Tarumã, a construção de condomínios está reduzindo a cobertura da florestal.

Além de identificar o desmatamento, o estudo procurou as origens do problema. E para analisar melhor os dados em duas invasões na periferia da cidade o Sipam recorreu ao Quickbird, satélite que oferece imagens com mais precisão. Em menos de seis meses, áreas de 60 a 95 hectares foram completamente devastadas e transformadas em bairros.

O verde que sobra do crescimento da cidade fica fragmentado em pequenas porções, em verdadeiras ilhas que preservam o que resta de biodiversidade e conferem maior qualidade de vida a quem mora nas proximidades.

Fragmentação das matas e dos sauins

Mas estas áreas também estão ameaçadas. Os pesquisadores do Sipam visitaram outras duas áreas que ainda pareciam preservadas. Eram fundos de vales, onde não é possível construir casas. No entanto, eram usados pela população como lixeiras.

Segundo um levantamento de Sâmia Amorim, que estuda biologia na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), existem 214 fragmentos florestais em Manaus com mais de três hectares. Se forem desprezados os cinco parques municipais existentes no perímetro urbano e as Áreas de Preservação Permanente (APPs), sobram 79 fragmentos. Ou seja, a maior parte da área verde em Manaus não possui proteção legal.

Com a fragmentação da mata, os sauins ficam isolados e sujeitos a problemas de alimentação, variabilidade genética e estresse. É o que conclui um grupo de pesquisadores da Ufam, coordenado pelo biólogo Marcelo Gordo, que estuda o macaquinho. Os estudos desenvolvidos pela equipe indicam que, apesar do recente isolamento das populações de sauins, em 20 anos elas já começam a apresentar problemas na variabilidade genética, o que ameaça o futuro da espécie, pois aumenta o risco de doenças e diminui a adaptabilidade da espécie.

Os pesquisadores usam equipamento de telemetria para acompanhar grupos de sauins em diferentes ambientes, em áreas de mata primária com e sem interferência humana, além de áreas de floresta secundária e outras recentemente desmatadas, em recuperação.

Dificuldade para sobreviver

Na floresta contínua, os sauins enfrentam o perigo de predadores como gaviões, gatos maracajás ou jibóias. Já na cidade, eles têm de fugir das brincadeiras de mau-gosto de moleques armados com baladeiras, que praticam tiro ao alvo nos ágeis macaquinhos. Isso em falar nas perseguições por animais domésticos, como cães e gatos. “Eles correm o risco de serem atropelados ou de morrerem eletrocutados na rede elétrica”, afirma o biólogo Fabiano Calleia, que faz parte da equipe de monitoramento dos sauins. Tais perigos, aliados ao barulho da cidade e ao pouco espaço para sobreviver, deixam os sauins estressados. “O estresse diminui a resistência imunológica dos sauins”, explica Marcelo Gordo.

Os pesquisadores já perceberam que nas áreas de floresta primária, os grupos, formado de 5 a 8 indivíduos, ocupam áreas maiores, enquanto nos fragmentos a densidade dos grupos é maior. Na floresta, o grupo monitorado se desloca por cerca 100 hectares, mas no Campus da Ufam (mata primária com interferência humana) os sagüis usam apenas 35 hectares. E aos que vivem em áreas menores, ainda mais fragmentadas, resta apenas andarem em círculos. Um dos objetivos da pesquisa é mostrar se as distâncias percorridas são muito diferentes entre os grupos.

Nos fragmentos, os sauins sofrem também de déficit alimentar. Nas áreas em que a floresta está se recuperando, eles encontram alimento o ano inteiro graças às espécies pioneiras, como melastomatáceas e clusiáceas. Mas não basta ter frutos, é preciso que eles existam em quantidade suficiente, estejam disponíveis e tenham boa qualidade.

Os pesquisadores estudam outro fenômeno que ameaça os sauins. Mesmo onde a cidade ainda não chegou, a área de distribuição da espécie está diminuindo. O limite norte de onde ele é encontrado vem encolhendo. Ainda não se sabe por que, mas especula-se que seja devido à concorrência de outra espécie de sauins, o midas. “Não sabemos se é devido à concorrência, até porque já encontramos grupos de midas e bicolor juntos, sem brigar. Então não sabemos se há realmente a concorrência ou se, por exemplo, ela ocorre só durante alguns meses, quando falta comida”, explica o biólogo.

As pesquisas demonstraram que eles hoje têm uma alimentação mais variada do que se acreditava. Se antes eram conhecidas entre 20 e 30 variedades de frutos usados pelo macaquinho, hoje já se conhecem quase 100 espécies. “Eles preferem cipoais ou bainhas de palmeiras, como inajás. Eventualmente, usam oco de árvores”, explica Gordo, sobre os locais preferidos dos macaquinhos.

O estudo com os sauins começou com o acompanhamento dos animais no campus da Ufam e no Parque Municipal do Mindu, uma área de 33 hectares com floresta primária e áreas já alteradas. Em 2001, conseguiu financiamento de quase 300 mil reais do Ministério do Meio Ambiente e dinheiro foi usado em equipamentos de telemetria, carro e contratação de bolsistas para a pesquisa.

Depois de dois anos, o projeto conseguiu outro financiamento, do Fundo Nacional do Meio Ambiente, desta vez para implementar um plano de manejo da espécie. Com pouco mais de 300 mil reais, estão sendo construídos recintos de uso temporários dos animais (onde eles podem ficar em quarentena ou enquanto se readaptam antes de serem soltos) laboratórios e comprados novos equipamentos. A idéia do projeto é transferir grupos ou animais em áreas ameaçadas para regiões onde estarão protegidos e acompanhá-los, para saber se conseguem se adaptar.

Marcelo Gordo faz estudos também para a criação de uma unidade de conservação para o sauim em outras regiões. “Quanto maior o local, melhor. Mas estamos prevendo uma área de 40 ou 50 mil hectares, onde acreditamos que a unidade possa ser criada”, diz Gordo. Essa área deve ficar em municípios próximos a Manaus, como Rio Preto da Eva e Itacoatiara.

Corredor ecológico

Apesar das ameaças, este ano, o sauim-de-coleira ganhou mais espaço para viver dentro da cidade. A prefeitura de Manaus começou a implantar um corredor ecológico que vai unir vários fragmentos de mata existentes ao longo de um dos principais igarapés da cidade, o Mindu. O igarapé Mindu que corta a cidade no sentido Nordeste-Sudeste, e hoje está completamente poluído. Mesmo assim, abriga alguma vida selvagem.

“Ao longo do Mindu, vivem mais de uma centena de espécies de aves, além do sauim-de-coleira, que ocorre justamente na área da cidade de Manaus”, conta Carlos César Durigan, coordenador da Fundação Vitória Amazônica, organização não-governamental que prestou assistência técnica durante os estudos para a expansão do parque do Mindu. Na área prevista para a ampliação do parque, podem ser encontrados ainda buritizais, onde papagaios e araras se refugiam. Entre os animais que vivem nestes fragmentos, estão também gatos maracajás, cotias, porcos-espinho, dois tipos de preguiça e tamanduaís.

O corredor ecológico pode salvar fragmentos ameaçados por empreendimentos imobiliários e pelo projeto do governo do estado de construir uma avenida marginal ao igarapé. Além disso, pode ser o primeiro passo para limpar o rio, poluído pelos dejetos que recebe de casas e empresas existentes ao longo do percurso.

Graças a Lei Municipal 886, de 14 de outubro de 2005, que regulamenta as Reservas Particulares do Patrimônio Natural dentro de perímetro urbano de Manaus, pelo menos duas grandes áreas privadas serão incorporadas ao corredor ecológico. A regulamentação da lei para a criação dos corredores urbanos era uma exigência para incluir o Mindu no Projeto Corredores Ecológicos da Amazônia. A previsão é que o corredor chegue a 218 hectares, entre terrenos particulares, públicos e as APPs do igarapé.

A idéia de criar corredores ecológicos dentro da cidade não é nova. O Plano Diretor da Cidade, do início da década de 90, previa a criação de cinco deles para unir diversos fragmentos florestais. Os corredores serviriam para manter o fluxo genético entre populações de animais e plantas quase isoladas no perímetro urbano de Manaus e a floresta que existe fora da cidade. “A ligação destes fragmentos poderia, além de manter as populações de espécies ameaçadas, até incrementar a população de algumas espécies”, afirma Durigan. E quem sabe, reduzir o estresse dos sauins de Manaus.

*Vandré Fonseca é jornalista formado em São Paulo, há oito anos vivendo na Amazônia. Após sete anos em Roraima, trabalhando para a TV Roraima e jornais de movimentos populares, mudou-se para Manaus. Atualmente, é repórter da TV Amazonas.

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