Reportagens

Casa de ferreiro

Criar unidades de conservação e não implementá-las é prática antiga no Brasil. O déficit de dinheiro está na origem do problema. Mas a falta de informação piora a situação.

Gustavo Faleiros ·
31 de agosto de 2006 · 18 anos atrás

Criar Unidades de Conservação é um ótimo negócio para o meio ambiente. Uma simples canetada presidencial, destinando uma área para a proteção integral ou uso sustentável, tem um impacto positivo imediato para a natureza. Um estudo da Conservation International (CI) conduzido em 93 países mostra que mesmo num estágio onde a unidade só existe no papel – sem chefe, sem estrutura, sem plano de manejo e com desapropriações por resolver – ela serve para ordenar a estrutura fundiária ao seu redor, funciona como barreira a possíveis desmatamentos e permite a regeneração da vegetação em áreas já degradadas. Felício Pontes, procurador federal em Belém, lembra que um estudo feito pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) corrobora essa conclusão.

“O trabalho indica que em áreas demarcadas como Unidades de Conservação na Amazônia a média de desmatamento está em 1,5%. Nas outras, em 20%”, diz. A explicação para tamanha diferença é simples. Do ponto de vista legal, desmatar em áreas de proteção é muito mais arriscado. “Se eu flagrar alguém cortando fora de uma área de proteção, vou ter primeiro que provar que ele está em cima de área pública federal. Se ele tiver algum papel registrado em cartório dizendo que a área é dele, o processo vai para as calendas”. Mas se o grileiro for pego em cima de terra que virou uma Unidade de Conservação está frito. “É muito mais fácil conseguir uma ordem judicial para botá-lo para fora de lá e conduzir um processo contra ele pedindo indenização”, diz Pontes.

Apesar desse claro benefício, a decretação de uma Unidade de Conservação no Brasil gera ao mesmo tempo um problema imediato. Ela aumenta o estoque de um passivo ambiental da burocracia estatal criada justamente para resolvê-los e impedir que se repitam. Tome-se como exemplo o atual governo. Desde que Lula assumiu a presidência, seu Ministério do Meio Ambiente (MMA) destinou 19,86 milhões de hectares de território brasileiro para Unidades de Conservação. Nenhuma delas, no entanto, está sequer próxima da consolidação. Por enquanto, são unidades que existem apenas no papel ou porque não têm chefes ou estrutura, ou porque continuam com gente não autorizada dentro por falta de recursos para pagar por desapropriações.

Nesse aspecto, a ministra Marina Silva está tendo desempenho semelhante a de praticamente todos os seus antecessores. Criar Unidades de Conservação e não implementá-las inteiramente é uma velha mania nacional. Itatiaia, o primeiro Parque Nacional do país, tem chefe, tem estrutura, tem plano de manejo, mas quase 70 anos depois de sua fundação mais da metade de seus 30 mil hectares continuam ocupados por particulares. Trocando em miúdos, ainda não é uma área de proteção que possa ser considerada consolidada. Esse passivo histórico das unidades de conservação não é exclusivo do governo federal.

Alto custo

Ana Cristina Barros, da The Nature Conservancy (TNC), coordenou recentemente um grupo de trabalho do Fórum Nacional de Áreas Protegidas, grupo consultivo organizado pelo MMA para estudar o assunto, e conseguiu números impressionantes. Ela estima que o Brasil tenha cerca de 1 mil e 300 Unidades de Conservação federais, estaduais e municipais. Segundo ela, em torno de 800 existem apenas no papel. As restantes estão em níveis variados de estruturação. A proporção é semelhante a que se encontra nas 277 Unidades de Conservação federais, cerca de 64 milhões de hectares, que estão sob a responsabilidade direta do MMA e do Ibama. “Cinqüenta por cento delas estão em estágios primários de consolidação”, diz Valmir Ortega, chefe da diretoria de ecossistemas do Ibama. Traduzindo, ainda existem apenas no papel. “As outras estão em algum estágio mais avançado de consolidação” – o que significa que pelo menos um chefe elas têm.

O maior problema para resolver esse passivo é tão histórico, em se tratando de Estado brasileiro, quanto ele: falta dinheiro. O orçamento que ano após ano os sucessivos governos destinaram para sua área ambiental sempre foi cronicamente insuficiente para reverter esse quadro. Nos ano passado, o MMA destinou 250 milhões reais para as Unidades de Conservação sob sua responsabilidade. Segundo estudo conduzido pelo Fórum liderado por Barros, seria preciso dispensar anualmente 300 milhões de reais para colocar todas as unidades do país em condições adequadas de operação – pagando por salários de funcionários, combustível e equipamento. Mas mesmo que houvesse esse dinheiro, para ele ser bem aproveitado, o Fórum estima que haveria necessidade prévia de investimentos de 1 bilhão e 400 mil reais nas Unidades de Conservação para dar a elas um mínimo de estrutura em termos de número de funcionários, benfeitorias e execução de planos de manejo. Esse valor não inclui o montante necessário para a desapropriação de particulares, presença comum nas áreas de proteção do Sul e Sudeste.

Tanto no caso de investimentos quanto no de custeio anual, o principal gasto é contratação e manutenção de pessoal para trabalhar nas áreas protegidas. Excluindo-se cargos gerenciais, a pesquisa do Fórum indicou que nas reservas e parques brasileiros seriam necessários cinco mil funcionários. Seriam servidores em uma categoria chamada guarda-parque e, na visão dos autores do estudo, o que mais se aproximaria hoje das funções deste cargo é a mão de obra do PrevFogo. O problema é que os membros do PrevFogo, atualmente, são apenas 1,1 mil e a maioria trabalha em regime temporário. A lacuna em recursos humanos não afeta só as funções de base. O diretor de Áreas Protegidas do MMA, Maurício Mercadante, conta que uma das dificuldades primordiais na implantação das novas UCs tem sido a nomeação dos chefes.

Só um

Até o momento, apenas um chefe, o do Parque Nacional da Serra do Itajaí, criado em 2004, assumiu suas funções nas novas áreas protegidas. A escolha de Itajaí como a primeira das novas UCs em ter um chefe e um plano de implementação se deve à estratégia de evitar críticas de que se criam áreas apenas no papel. “Para tentar reverter a imagem de que parques são criados mas não são implementados, fizemos um trabalho especial que deu resultados promissores”, afirma Mercadante. O saldo positivo ao qual ele se refere diz respeito a parcerias que a chefia do Parque Nacional de Itajaí está firmando com prefeituras e organizações não governamentais da região.

Mercadante diz que a dificuldade origina-se na escassez de funcionários concursados e de cargos comissionados no Ibama. O déficit de mão de obra não permite suprir uma vaga na Amazônia abrindo uma brecha em Brasília, por exemplo. Esse entrave burocrático foi reduzido graças a dois concursos do Ibama, um em 2002 e outro no ano passado, para a contratação de novos funcionários. Mas o impacto não chegou a ser tão positivo para a conservação porque houve uma decisão de concentrar funcionários do órgão na capital federal, para atender às necessidades do próprio governo, como o licenciamento ambiental para obras de infra-estrutura. Dos 545 milhões de reais que o Ibama têm à disposição para pagar aos seus empregados, pouco mais da metade destina-se aos salários de pessoal lotado na sua sede.

Parcerias têm funcionado bem melhor para as unidades localizadas na Amazônia. Um exemplo disso é o programa Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA), que tem o valor total de 400 milhões de dólares, obtido através de doações de organismos multilaterais, Ongs internacionais e dos governos do Brasil e de outros países. Parte do dinheiro será usado em investimentos nas áreas protegidas da região. E 240 milhões de dólares foram destinados a um fundo administrado pelo Fundo Nacional para a Biodiversidade (Funbio), que tem como objetivo render dividendos anuais para financiar a estruturação e manutenção de Unidades de Conservação na Amazônia no longo prazo. “É uma forma de sempre poder atender as demandas dos chefes das áreas com rapidez”, explica o gestor do Programa de Apoio ao ARPA do WWF, Fernando Vasconcelos. Em 2006, o ARPA financiou a conclusão de 16 planos de manejo em UCs na Amazônia e mais 17 estão em andamento.

Mas fora a bonança do ARPA, a realidade de caixa com que Ibama e MMA lidam é infinitamente mais apertada. Uma saída que vem sendo buscada pela burocracia é fazer com que pelo menos algumas das Unidades de Conservação do país se tornem auto-sustentáveis, estruturando programas que incentivem a visitação de Parques Nacionais. O primeiro passo foi a escolha de 23 parques que terão prioridade nos investimentos em infra-estrutura de visitação. Agora, o Ibama está contratando uma empresa de tecnologia que vai uniformizar a rede de cobrança de entradas dos visitantes e impedir que os recursos desapareçam no caixa-geral da instituição. Segundo o diretor de Ecossistemas do Ibama, Valmir Ortega, dentro da estratégia de revitalização dos Parques Nacionais, estão previstas até o fim do primeiro semestre de 2007 as regularizações fundiárias de Itatiaia e da Chapada Diamantina.

Nem só dinheiro

“Essa escolha do governo é totalmente válida. Abrir os parques para visitação aumenta a arrecadação e ajuda dar a dimensão do valor ambiental e social das unidades de conservação”, diz Barros, representante da TNC e coordenadora do Fórum de Áreas Protegidas. Em sua opinião, a principal forma de atrair recursos financeiros para as áreas protegidas é traçar para elas estratégias de utilização. Nesse ponto, entraria em jogo o pagamento por serviços ambientais. Por exemplo, a qualidade da água retirada de um rio cuja nascente está em uma UC pode ser remunerada por usuários. Ou ainda, a propriedade de seqüestrar carbono por uma larga extensão de floresta intacta seria financiada por países que necessitam reduzir suas emissões. O único problema das alternativas identificadas como serviços ambientais é que elas ainda estão engatinhando.

De imediato, o que o governo tem em mãos para a implementação das UCs são os parcos recursos orçamentários e a compensação ambiental. A compensação está prevista no artigo 36 da Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (9985/ 2000). Trata-se da obrigação para empreendedores que causam impacto ambiental de investir no mínimo 0,5% do valor total de uma obra em áreas protegidas. “A lei nos dá opções para o financiamento de uma unidade de conservação, o único problema é que ainda não conseguimos consolidá-las”, explica Ortega, que considera a compensação um instrumento “vital” para a saúde financeira das áreas protegidas. Ele diz que a novela para acertar o método de cobrança da compensação está próxima do fim. Até o momento, o Ibama já pactuou 350 milhões de reais com a iniciativa privada por compensações.

São recursos valiosos, mas que estão sob risco, pois empresários, liderados pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) estão em uma briga ferrenha para tornar a compensação inconstitucional. O gerente de Economia da Conservação Internacional (CI), Alexandre de Almeida Prado, levanta outra dúvida sobre a validade da compensação. Para ele, o instrumento pode se tornar uma espécie de “caixinha” do setor privado aos órgãos ambientais. Seria como trazer para as instâncias licenciadoras uma pressão para aprovar projetos degradantes que ao mesmo tempo renderiam bom dinheiro às áreas protegidas. “Temos que olhar a compensação com visão crítica. É como se prostituir”, diz Prado.

Apesar da temática financeira dominar o debate sobre UCs, alguns especialistas observam que, para as medidas de implementação saírem do papel, será preciso também melhor planejamento. Em outras palavras, transformar o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) em um sistema operante. No momento, ele enfrenta muitas lacunas de informação, coisa que prejudica a capacidade de sua gestão. As lacunas atuais são falta informação e, por conseqüência, gestão organizada. Barros conta que a primeira grande dificuldade enfrentada pelo seu grupo de trabalho foi encontrar informações sobre a situação de cada área. Prado vai na mesma linha: “o problema não é só receita, é a gestão do sistema”. Segundo ele, a área ambiental do governo não conhece bem as necessidades do SNUC para pressionar o Congresso por mais recursos orçamentários.

O diretor de Áreas Protegidas do MMA reconhece que o Cadastro Nacional de Unidades de Conservação, que seria um instrumento precioso de gestão e é uma obrigação prevista na Lei do SNUC, ainda está longe de estar pronto. Com relação ao planejamento, Mercadante argumenta que o recém-aprovado Plano Nacional de Áreas Protegidas deverá ter um papel crucial, pois no documento estão definidas metas e diretrizes a serem implementadas até 2015.

A necessidade de resolver o problema de consolidação das áreas protegidas, na medida em que seu número cresce, fica cada vez mais urgente. A blindagem imediata que um decreto criando uma unidade oferece a um terreno tende a se esvair com o passar do tempo. “Não dá para deixar as unidades eternamente só no papel”, diz Pontes, o procurador federal no Pará. “Isso acaba dando um recado que o país não se importa com as suas áreas de proteção e as deixa novamente vulneráveis aos desmatadores”. O estudo feito pela CI em 93 países mostra que Pontes tem toda a razão. Das unidades de papel investigadas mostra que elas são até oito vezes mais vulneráveis a atividades ilegais do que aquelas que acabaram sendo consolidadas.

  • Gustavo Faleiros

    Editor da Rainforest Investigations Network (RIN). Co-fundador do InfoAmazonia e entusiasta do geojornalismo. Baterista dos Eventos Extremos

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